Perda da liberdade, não da saúde

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Egressos não têm garantido seu direito a atendimento médico dentro do sistema prisional

Maré de Notícias #147 – abril de 2023

Por Samara Oliveira e Teresa Santos

“Não tratam a gente como ser humano e sim como objeto que pode ser descartado”. Esta fala é de Marco Antônio, 56 anos, morador da Pavuna, na Zona Norte. Marco Antônio é artista plástico e colaborador do Instituto Social Encontro Das Artes. O grupo tem sede na Nova Holanda e foi fundado por Odir dos Santos.

Marco esteve privado de liberdade por 26 anos e conta que foi dentro do sistema prisional que perdeu a visão do olho esquerdo. Até ter a vista totalmente comprometida, ele sofreu por anos com fortes dores na cabeça, ardência nos olhos, alta sensibilidade à luz do sol e chegou a perder as forças para se alimentar. Segundo ele, a situação poderia não ter chegado ao extremo, se tivesse acesso a um atendimento digno de saúde. 

“Os companheiros de cela é que colocavam a comida na minha boca porque eu não conseguia. Eu sentia dor 24h por dia”, relembra. 

Durante esse tempo, a situação ficou ainda mais grave quando a ferida no olho esquerdo se tornou exposta e ainda assim, o máximo que Marco conseguiu como atendimento foi tomar quatro injeções em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). O paliativo servia apenas para a dor, mas neste tempo não houve nenhum diagnóstico ou acompanhamento.

Marco narra que o problema no olho começou ainda em 2008; apesar de nunca ter recebido um diagnóstico, acredita que foi uma infecção contraída dentro dos presídios por onde passou. “Eles jogavam os doentes todos em uma cela que mais parecia uma catacumba. Uns gemiam de dor, outros vomitavam, ficávamos todos juntos e espremidos.”

Cenário alarmante

A pneumologista Alexandra Sánchez é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenadora de estudos sobre saúde nas prisões — lugar onde as doenças infecciosas são um grave problema. “Sabemos que a chance de uma pessoa presa morrer por uma doença infecciosa é cerca de três vezes maior do que a de uma pessoa em liberdade, da mesma faixa etária”, diz ela.   

Em se tratando de tuberculose, as chances de se morrer dentro de um presídio sobem 11 vezes, em comparação com quem está fora dele. A doença é a principal causa de morte no sistema penitenciário, segundo dados de 2021 do Grupo de Pesquisa em Saúde Prisional (GPESP), da ENSP/Fiocruz/CNPq, coordenado por Alexandra. De acordo com a especialista, análises de 2022 do GPESP mostraram que 20% dos casos de tuberculose registrados no município do Rio de Janeiro são oriundos das prisões. 

“A tuberculose é 65 vezes mais frequente dentro do sistema penitenciário do Rio de Janeiro do que em todo o estado, e dez vezes mais frequente nas prisões do que nos territórios com maiores taxas de contaminação, como a favela da Rocinha e o Complexo do Alemão”, ressalta a pesquisadora.

Coceira que mata

Cabe lembrar que a tuberculose também é um problema na Maré. Dos 9.476 casos registrados em 2022 no município, 214 ocorreram nos territórios, segundo o Observatório Epidemiológico da Cidade do Rio de Janeiro (EpiRio).

Sendo do tipo respiratória (como a tuberculose) ou de pele (como a sarna e o impetigo, consideradas comuns), qualquer infecção não tratada adequadamente pode evoluir para a septicemia, a forma grave da doença que se espalha por todo o corpo e que pode causar queda drástica da pressão arterial e falência dos órgãos. 

Na lista de doenças com maior letalidade no sistema prisional estão ainda a diabetes, a aids e a covid-19 — esta última foi responsável por 20% das mortes nos presídios em 2020 e 2021.

O ambiente superlotado, confinado, sem ventilação e iluminação adequadas, o convívio forçado com pessoas doentes, o pouco acesso à água, a falta de produtos de higiene e de locais apropriados para lavagem e secagem de roupas são partes de um cenário alarmante. Ainda segundo a médica e pesquisadora da Fiocruz, outro ponto é a falta de ações de prevenção e informação em saúde para os presos.

Livre, mas doente

Se dentro do sistema prisional lhes é negado o acesso à saúde, a situação não muda para aqueles que são libertados. Segundo o Grupo de Pesquisa em Saúde Prisional, eles se tornam vulneráveis socialmente, convivendo com o preconceito inclusive por parte de alguns profissionais de saúde.  

O grupo da Fiocruz relata que há também alguns egressos que saem do sistema sem documentos como RG e CPF, e muitos não conseguem endereço fixo — o que lhes daria o comprovante de residência. Tudo isso se torna uma barreira para conseguir atendimento médico nas unidades de atenção básica de saúde. 

O medo do preconceito está sempre presente, o que faz com que o egresso demore a procurar ajuda médica. “Muitas vezes a pessoa não diz ou demonstra que está doente para a família ou a comunidade. Seria preferível que ela fosse atendida por um médico longe do lugar onde mora, o que frequentemente não é possível”, diz Alexandra.

A questão financeira também pode influenciar no atendimento. No caso de Marco Antônio, ele procurou a clínica da família do seu território e recebeu da médica um encaminhamento para um neurologista. Aguardou semanas na fila do Sistema de Regulação (SISREG) e, quando finalmente foi chamado para a consulta, não tinha o dinheiro para ir até o hospital. Isso fez com que ele tivesse que repetir todo o procedimento, voltando para a fila do SISREG.

Direito, não privilégio

Uma pessoa privada de liberdade continua sendo um cidadão brasileiro. Segundo o artigo n° 196 da Constituição Federal, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. 

Já a Lei de Execução Penal nº 7210/1984 diz, em seu artigo n° 14, que “a assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo compreenderá atendimento  médico, farmacêutico e odontológico”.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o Brasil é o país da América Latina com maior população carcerária e o terceiro do mundo, atrás apenas dos EUA e da China. Em 2022, o número de presos chegou a 909.061, que ficam sob a tutela do Estado. É dele, portanto, a responsabilidade de garantir o acesso à saúde a todos os privados de liberdade (inclusive os menores de 18 anos). 

Para Alexandra, é inaceitável que as pessoas continuem morrendo por doenças que são tratáveis. Segundo ela, alguns passos importantes estão sendo dados para melhorar o cenário no estado. Desde o segundo semestre de 2022, as equipes municipais de saúde já estão atuando dentro das prisões do Rio de Janeiro, embora com restrições. 

A medida já era prevista pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), publicada em 2014, porém só passou a ser posta em prática no estado do Rio no ano passado.

Lei de Execução Penal garante atendimento médico, farmacêutico e odontológico ao preso – Foto: Gabi Lino

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