Pesquisa comprova: pandemia agrava abismo criado pelo racismo estrutural

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Dados coletados por jovens pesquisadores de favelas do Rio de Janeiro evidenciam aprofundamento das desigualdades sociais em tempos de luta contra a covid-19

Por Tamyres Matos, em 03/10/2021 às 07h. Editado por Daniele Moura

Supervisionados pela experiente socióloga Julita Lemgruber e pela ativista dos direitos humanos Rebeca Lerer, um grupo de jovens pesquisadores, através do estudo Coronavírus nas favelas: a desigualdade e o racismo sem máscaras, transformou em dados a dura experiência do morador de periferia no Rio de Janeiro no período da pandemia. Além dos desafios universais, quem vive em regiões como o conjunto de favelas da Maré, o Complexo do Alemão e a Cidade de Deus ainda precisa conviver com o desrespeito de representantes do Estado à proibição de operações policiais desde a época em que as tentativas de isolamento social eram mais rígidas.

Mais da metade dos entrevistados, inclusive, nunca conseguiu aderir ao isolamento, principalmente por causa das demandas de trabalho (apenas 26% afirmaram ter carteira assinada) na busca pela sobrevivência. Entre os dados mais marcantes da pesquisa, 63% das pessoas relatam ter ficado sem água em algum momento da pandemia – a falta de água faz parte da rotina de 37% dos moradores -, o que é uma dificuldade central na prevenção à covid-19. Uma das conclusões da pesquisa, evidente pelo nome escolhido, está na relação entre as consequências sociais e o perfil racial destes moradores.

“Eu sou essa população de favela, essa população preta que está nos dados. Faltou água na minha casa, faltou luz, fiquei sem internet… infelizmente, o que era pra ser um problema excepcional se tornou algo comum, algo cotidiano. Essa situação é estrutural e acontece há décadas. Essa desigualdade é acentuada pela questão racial e a pandemia só veio pra agravar isso”, afirma Sabrina Martina, conhecida como MC Martina, rapper que mora no Complexo do Alemão.

Sabrina Martina/MC Martina, uma das coordenadoras da pesquisa. Foto: Divulgação

O trabalho do coletivo Movimentos está associado à desmistificação do debate sobre as drogas no Rio de Janeiro, por acreditar que uma nova abordagem no que diz respeito às políticas públicas sobre o tema é urgente. E o que a pandemia tem a ver com isso? A violência da “guerra às drogas” não deu trégua. É só lembrar que João Pedro, de 14 anos, foi morto a tiros durante uma operação no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. O adolescente tentou acalmar a mãe preocupada: “Estou dentro de casa”, disse em um áudio do WhatsApp. Isso aconteceu em 18 de maio de 2020, quando o Brasil acumulava oficialmente 16.856 vítimas fatais de covid-19 e a campanha #fiqueemcasa ganhava ainda mais força na internet.

“A gente precisa do fim da ‘guerra de drogas’. Essas operações policiais nas favelas que as tornam um campo de guerra, onde moradores acabam sendo os alvos, precisam acabar. São gastos milhões e milhões dos cofres públicos com essa política de segurança que está falida. É o sangue da população que escorre, muitos policiais acabam mortos nesse confronto sem vencedores entre os nossos”, diz o historiador Aristênio Gomes, morador do Parque União e um dos coordenadores do coletivo.

Aristênio Gomes é morador da Maré e um dos integrantes do estudo. Foto: Divulgação

O racismo estrutural também fica explícito ao analisar os dados das vítimas desta “guerra”. Um levantamento da Rede de Observatórios de Segurança Pública divulgado no fim do ano passado mostrou que 86% das pessoas mortas em operações policiais no Rio de Janeiro são negras. 

População organizada: potência e (sobre)vivência

O combate aos efeitos devastadores da pandemia reforçou a lógica de diversos coletivos e ONGs nas favelas do Rio de Janeiro: “se o Estado não age, agimos nós”. Ações de assistência social e conscientização foram coordenadas e realizadas pelos próprios moradores e novas frentes de solidariedade que se organizaram para amenizar os danos causados pela falta de assistência.

“Às custas de muito esforço e a despeito dos riscos assumidos por ativistas, defensores de direitos humanos e lideranças comunitárias, as campanhas de arrecadação e distribuição de cestas básicas e kits de higiene nas favelas fizeram (e continuam fazendo) a diferença na vida de dezenas de milhares de famílias, assumindo um papel que devia ser do Estado”, aponta o relatório.

Para Aristênio, o histórico de construção coletiva e mobilização foi o principal elemento para amenizar os impactos da epidemia global nas favelas participantes do estudo. “As ações de combate à fome, a testagem e a vacinação em massa… tudo isso ajudou e ajuda muito para que essa população possa ter um respiro a mais em comparação a outras favelas que, infelizmente, não contam com tantas organizações e coletivos quanto a Maré, a Cidade de Deus e o Alemão”, considera.

O estudo destaca que, em 2020, o governo federal deixou de gastar mais de R$ 80 bilhões do orçamento destinado ao combate à pandemia, permitindo, assim, que a situação escalasse para os mais de 200 mil mortos pelo vírus em 2020, com taxas recorde de desemprego (13 milhões de pessoas).

Construção do estudo

A pesquisa foi realizada entre os meses de  setembro e outubro de 2020, usando o método quantitativo de coleta e análise de dados dos moradores das favelas do Complexo do Alemão, do Complexo da Maré e da Cidade de Deus. É importante ressaltar que outras favelas também participaram da pesquisa, mas por se tratarem de localidades dispersas pela cidade do Rio de Janeiro, foram categorizadas como “Outras”.

As questões foram organizadas em 5 eixos temáticos: perfil socioeconômico; covid-19 e acesso à saúde; impactos da pandemia na saúde mental; uso de drogas durante a pandemia; violência. Com um total de 55 perguntas, a ferramenta utilizada para coleta de dados foi o Google Forms, disponibilizada por aplicativo para celular.

A proporcionalidade dos questionários por favela usou como base dados divulgados pelo IBGE (2010). Sendo assim, o Complexo da Maré contemplava 129.000 habitantes (totalizando 55,1%, necessitando a aplicação mínima de 275 de 500 questionários), o Complexo do Alemão possuía 69.148 habitantes (29,4%, com aplicação mínima de 148 de 500 questionários), e Cidade de Deus contava 38 mil habitantes (15,5%, aplicação mínima de 100 de 500 questionários). Diante disso, foram aplicados 342 questionários na Cidade de Deus, 305 no Complexo da Maré, 165 no Complexo do Alemão e 143 de outras favelas, totalizando os 955 participantes do estudo apresentado.

Outros dados significativos

  • 83% responderam ter ouvido tiros de suas casas durante a pandemia;
  • 69% disseram já ter presenciado ou tomado conhecimento de operações policiais na favela em que vivem;
  • 73,8% dos entrevistados afirmaram sentir que houve um aumento de casos de violência doméstica;
  • 93% dos entrevistados afirmaram conhecer alguém que teve Covid-19;
  • 73% souberam de alguém que morreu da doença;
  • 62% dos entrevistados solicitaram o auxílio emergencial oferecido pelo governo federal, mas somente 52% o receberam;
  • 50% dos moradores solicitaram doações e, dentre esses, 56% receberam ajuda;
  • 76% dos respondentes declararam ter algum distúrbio do sono;
  • 43,1% alegaram ter algum nível de depressão;
  • 34% dos entrevistados disseram que a ansiedade é o sentimento mais presente em relação à pandemia. Os outros sentimentos elencados foram: tristeza, medo, pânico, pensamentos negativos, dores, depressão e palpitação acima da média.

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