Pesquisa da Redes da Maré revela os impactos da covid-19 em escolas públicas das 16 favelas

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Análise traça revelador retrato da pandemia na educação na Maré

Por Adriana Pavlova, em 15/03/2022 às 09h30.

“Às vezes dá até vontade de desistir. Não desisti, continuei estudando, só que numa frequência bem menor do que eu estudava quando tinha as aulas.”(Aluna do 3º ano do Ensino Médio) 

“Eu não consegui, não estudei. Eu não vou ser falso, fingir que eu fui um ótimo aluno. Eu estou boiando nas aulas.” (Aluno do 7º ano do Ensino Fundamental II).

Os dois depoimentos corajosos acima são de estudantes de escolas públicas localizadas na Maré e fazem parte de uma ampla pesquisa realizada com alunos, seus familiares e educadores para tentar dimensionar os efeitos da covid-19 na comunidade escolar local, depois de quase dois anos de pandemia e de 20 meses de aulas remotas e híbridas. O estudo Covid-19 e o acesso à educação nas 16 favelas da Maré: impactos nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, realizado pela Redes da Maré em parceria com o Instituto Unibanco, teve início em março de 2021, estendendo-se até setembro daquele ano. Num primeiro momento, foram realizadas 89 entrevistas aprofundadas, em 18 escolas públicas da região, com gestores públicos de educação do município e do estado do Rio de Janeiro, profissionais de educação (diretores, coordenadores pedagógicos e professores)  e alunos e seus responsáveis. 

Em seguida, foram aplicados 832 questionários: 630 entre alunos do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental II e dos 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio; 101 entre responsáveis; e 101 entre profissionais de educação. Nessa fase, a pesquisa concentrou-se em 13 escolas públicas da Maré (nove municipais e quatro estaduais), incluindo estabelecimentos de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e um de Ensino Técnico. Em 2019, cerca de 20 mil estudantes estavam matriculados nas 50 escolas públicas do conjunto. Naquele ano, as 13 escolas onde foram aplicados os questionários tinham 6.068 estudantes — o equivalente a cerca de 30% do total de alunos na Maré. Os números evidenciam os efeitos dramáticos da pandemia tanto na vida escolar de toda uma geração de estudantes mareenses, como também de seus professores e familiares. 

Entre os dados que mais chamam a atenção está a sensação de os estudantes terem perdido dois anos de aprendizagem. Três em cada quatro alunos contam que aprenderam pouco (48%) ou nada (26%), somando 74% do total. Mais da metade deles  ? 57% ? afirmou que sua vontade de estudar na pandemia diminuiu (33%) ou caiu muito (24%). Entre os motivos apontados pelos estudantes estão a dificuldade de adaptação ao ensino remoto (35%) e os problemas de aprendizagem (28%). No caso da saúde mental, 41% dos estudantes afirmaram terem sido afetados – 257 crianças e adolescentes enfrentaram algum tipo de sofrimento psíquico.

Moradores do Salsa e Merengue, a catadora de latinhas Jéssica Cristina Pinheiro e seus filhos Isaac e Pedro, de 14 e 15 anos, são rostos que ilustram esses números. Aluna do CEJA na Escola Erpídio Cabral, na Nova Holanda, Jéssica é categórica ao afirmar que a pandemia está deixando sequelas enormes nos estudos dela e de seus filhos: “Ninguém aprendeu nada. Nem eu, nem os meninos. E ainda esquecemos o que a gente sabia. Como não tínhamos telefone e nem internet, eles ficaram sem estudar. Às vezes, a gente conseguia falar com os professores pelo celular de um coleguinha”, diz ela, que foi beneficiada com o empréstimo de um tablet, do projeto Conectividade, da Redes da Maré, mas seguiu com dificuldades de comunicação. “O aplicativo Rioeduca era uma dor de cabeça só. Como vamos recuperar esses dois anos perdidos? Se eu tivesse condições, pagava uma explicadora para os meus filhos”, explica, referindo-se ao aplicativo lançado pela Prefeitura do Rio, que disponibilizava aulas ao vivo e gravadas, e materiais didáticos variados.

A pesquisa mostrou que 38% dos estudantes não acompanharam as atividades remotas. O motivo mais citado foi não ter entendido o que era pedido; o segundo motivo, a falta de internet e, em terceiro, a ausência de um dispositivo eletrônico. De acordo com 87% dos profissionais de educação, menos da metade dos alunos aderiu às atividades remotas. Um professor estimou que, “de uma turma de 30 alunos, cinco, quatro acessaram, quando muito”. Muitos estudantes usam o celular dos pais, o que os obrigava a esperar que o aparelho estivesse disponível, além de dividi-lo com os irmãos. A má qualidade da internet na Maré também foi mencionada como um fator complicador.

Pouco mais da metade (56%) dos profissionais de educação acredita que será possível reverter os efeitos negativos da pandemia na vida escolar de crianças e adolescentes. Para isso, eles sugerem aulas de reforço (55%); engajamento comunitário e parceria família-escola (48%); estratégias criativas e busca ativa (45%); e parcerias com instituições locais (43%).

Professora orientadora do Programa de Educação de Jovens e Adultos do CIEP Gustavo Capanema, Janete Trajano da Silva viu grande parte dos alunos matriculados sumir nos dois anos de pandemia. Em 2020, os professores sofriam para dar conta das novas ferramentas digitais de trabalho, e também fizeram um esforço para buscar cada um dos alunos e entender suas dificuldades. O recurso mais usado foi o Whatsapp. 

“O desafio foi manter os grupos ativos, porque é comum que eles troquem de número. Dos 200 estudantes matriculados em 2020, apenas 50 voltaram ao presencial em maio de 2021, porque muitos passaram a trabalhar à noite, na hora das aulas. Aos poucos, conseguimos trazer de volta 80 alunos. Foi um ano muito marcante para o EJA porque muitos alunos se viram sem perspectiva. Que horizontes é possível oferecer aos estudantes? Como transformar a informação em conhecimento num cotidiano tão difícil?” Para Janete, o ano escolar de 2022 na Maré deveria ser iniciado com um grande fórum sobre educação, para tratar das especificidades das escolas locais. “É preciso oferecer olhares diversificados sobre realidades tão complexas”, defende ela. 

Um dado muito impressionante da pesquisa é que 70% dos profissionais de educação disseram que sua motivação para trabalhar durante a pandemia diminuiu. Da mesma forma, 72% relataram o agravamento de problemas de saúde mental e emocional. Quase todos os respondentes (95%) pediram ajuda a colegas ou pesquisaram na internet para atuar remotamente.

Os resultados da pesquisa expõem o enorme desafio das escolas e do poder público neste início de ano letivo, ainda marcado pelas incertezas em relação ao coronavírus. O objetivo imediato é de compreender o contexto e qualificar o diálogo com as diferentes instâncias, sobretudo as secretarias municipal e estadual de educação, a fim de colaborar com políticas educacionais alinhadas às necessidades concretas dos moradores da Maré.

“A pesquisa evidencia o acirramento das desigualdades educacionais de moradores da Maré. Esse cenário só poderá ser enfrentado com uma política robusta não só dos órgãos responsáveis pela educação, como também através de uma perspectiva intersetorial que considere a participação efetiva dos pais e das instituições locais”, defende Andréia Martins, diretora da Redes da Maré e coordenadora do estudo. Ela espera “que, com esse trabalho, possamos trazer à tona questões fundamentais que interferem no desenvolvimento da Maré, mas que também podem ilustrar a realidade das periferias de diferentes estados brasileiros”.

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