Investigações feitas pela Polícia Civil e pela PM deixaram de identificar responsáveis pelo disparo de bala de borracha que atingiu o fotógrafo Daniel Arroyo, em 2019; Justiça arquiva inquérito a pedido do MP
Por Ponte Jornalismo em 07/10/2021
O PM que atirou à queima-roupa com uma arma de bala de borracha no repórter fotográfico da Ponte Daniel Arroyo não vai ser punido. O jornalista foi atingido no joelho durante uma manifestação do Movimento Passe Livre em janeiro de 2019. Após quase dois anos de inquérito, o Ministério Público do Estado de São pediu o arquivamento do caso. Antes disso, uma apuração interna da Polícia Militar também foi arquivada.
Na época do ocorrido, o governador do estado João Doria (PSDB) se manifestou, através de nota, dizendo ser solidário aos jornalistas. “Governo de São Paulo defende a liberdade de imprensa como um direito fundamental para o pleno funcionamento da democracia e esclarece que a Polícia Militar instaurou um inquérito para apurar as condições em que aconteceu o caso.” A Ponte tentou um novo contato, através da assessoria de imprensa, com Doria para saber a opinião dele sobre o arquivamento do caso, mas até o momento não obteve retorno.
Vítima do ataque policial, Daniel Arroyo lamenta que mais um caso de cerceamento da liberdade e de truculência das forças de segurança do Estado fiquem impunes. “É lamentável. Eu tenho a foto e o vídeo do PM que atirou em mim. Mesmo de máscara, havia uma identificação alfanumérica, que mesmo não dando para ver na totalidade nas imagens, uma investigação mais criteriosa poderia concluir quem foi o autor do disparo”, explica Daniel.
“A vítima acostou aos autos as fotografias dos averiguados, contudo, analisando as referidas imagens, não verifiquei, nas vestes dos averiguados, a existência de dados de identificação que pudessem ensejar o esclarecimento da autoria delitiva, razão pela qual a diligência restou prejudicada. Ante o exposto, à míngua de provas suficientes de autoria delitiva, requeiro o arquivamento dos autos, no tocante ao delito de lesão corporal”, decretou em seu pedido de arquivamento do caso a promotora Regiane Vinche Zampar Guimarães Pereira. O pedido foi acatado pelo juiz José Fernadno Setinberg em março deste ano. Antes, em novembro de 2019, a promotora Rafaela Trombini havia pedido o arquivamento da acusação de abuso de autoridade contra o PM, que foi acatado pelo juiz José Zoéga Coelho.
Além da não identificação do PM, outra justificativa dada pela Polícia Militar para arquivar o inquérito é que o policial não teve a intenção de atirar em Arroyo, mas em um manifestante que tentou retirar um amigo que estava em poder da Caep (Companhia de Ações Especiais), que reprimia a manifestação naquele dia.
Entenda o caso
No dia 16 de janeiro de 2019 Arroyo estava na Avenida Paulista, próximo à Praça do Ciclista, para cobrir a manifestação do Movimento Passe Livre contra o aumento da passagem de ônibus de R$ 4 para R$ 4,30. Ainda na concentração do ato, a PM começou a intimidar os manifestantes para que o protesto não andasse.
“Quando chegamos lá já tinha muita polícia, e eles se organizaram de uma forma diferente de outras manifestações, fazendo um cordão de isolamento no cruzamento com a Rua da Consolação e com muitos policiais andando no meio dos manifestantes, abordando aqueles que eles consideravam mais suspeitos e levando para um lugar longe da imprensa para fazer a revista”, relembra Daniel.
Quando um homem foi imobilizado por alguns policiais, um outro tentou tirar ele das mãos dos PMs. Arroyo estava perto da ação quando um dos policiais militares atirou à queima roupa com uma arma longa de bala de borracha. O mesmo policial faz um segundo disparo que atingiu o fotógrafo no seu joelho direito. Toda a cena foi filmada pelo próprio Daniel.
“Eu senti o tiro, mas na hora não achei que o ferimento estivesse tão grande. Depois que eu vi que minha calça estava rasgada e meu joelho estava em carne viva. Eu mostrei para o policial e ele mandou eu ir embora”.
O fotógrafo ainda procurou o comandante da tropa para pedir que fosse socorrido. Mostrando desprezo à solicitação, a policial deu de ombros e disse que não poderia fazer nada. Sozinho, Daniel Arroyo se dirigiu até um hospital particular no bairro do Ipiranga onde foi atendido.
Entidades repudiam arquivamento do caso
O presidente da Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Guilherme Alpendre, lembra que nas manifestações é essencial que os agentes de segurança possam ser facilmente identificados, para que casos como o de Daniel e Sergio não fiquem impunes.
“A Polícia Militar do estado de São Paulo reiteradamente viola direitos de jornalistas, em especial durante coberturas de manifestações. Uma das razões para que esse comportamento não cesse é a impunidade. No caso do tiro em Daniel Arroyo, mais uma vez a impossibilidade de identificação dos autores do disparo levou ao arquivamento do processo. É imperioso que todo agente fardado possa ser facilmente identificado: o controle social dos agentes públicos é uma premissa do Estado Democrático. Infelizmente, casos como esse tendem a se repetir caso a impunidade siga sendo a regra.
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Norian Segatto, diretor do Departamento de Saúde, Previdência e Segurança da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), afirma que havia meios para identificar o policial que fez o disparo e, mesmo com a investigação não chegando ao autor dos tiros, era necessário punir seus superiores.
“A alegação de não possibilidade de identificar o autor do disparo não se sustenta diante das imagens do fato e, mesmo que essa hipótese fosse correta, a instituição Polícia Militar e o comandante da operação deveriam ser responsabilizados pelos atos. Atitudes como essa, que levam à impunidade, só contribuem para o aumento da violência policial contra profissionais de imprensa, movimentos sociais e manifestantes.”
A falta de punição nesse caso é preocupante para a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). A entidade teme que casos como estes se repitam no futuro. “O argumento de que não foi possível identificar o policial do 78º distrito de São Paulo que disparou uma bala de borracha contra o fotógrafo Daniel Arroyo, apresentado pelo Ministério Público de São Paulo para arquivar o caso, é inadmissível em uma democracia e, se verdadeiro, evidencia graves problemas de gestão na PM. Se a Justiça aceitar justificativa do MP-SP, estará abrindo um precedente perigoso, que permitirá a agentes de segurança se livrarem de punição por abusos em ocorrências semelhantes no futuro e promoverá a impunidade noutros casos de violações à liberdade de imprensa durante a cobertura de manifestações”, declarou, por meio de nota, o presidente da Abraji Marcelo Träsel.
E nota, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), disse que “infelizmente, o caso de Daniel não é uma novidade para os profissionais de imprensa e, especialmente, para os repórteres fotográficos. Ao não realizar a devida apuração e responsabilização dos agentes de Estado que cometem atos de violência, as autoridades legitimam, na prática, o impedimento contra o livre exercício jornalístico e a garantia de que os profissionais realizem seu trabalho com segurança”.
Impunidade aumenta a insegurança, mas não impede o trabalho de jornalistas
O fotógrafo Sergio Silva também já foi vítima da truculência policial contra manifestantes e jornalistas. Em junho de 2013, ele foi atingido no olho também por um disparo de bala de borracha feito por um policial militar e perdeu a visão do olho direito. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou o recurso impetrado pela defesa de Sergio que pedia uma indenização pelo dano causado pelo Estado. O caso vai para o Supremo Tribunal Federal.
Analisando que o caso de Daniel é parecido com seu, Sergio destaca que não se deve individualizar a punição em quem fez o disparo, mas sim na corporação como um todo. “Não é uma ação que parte de um único indivíduo, é algo coletivo. Tem uma ordem, há uma comando. É uma ação que tem vários agentes envolvidos, então cabe ao Estado ser responsabilizado como um todo”.
Mesmo após o perder parte da visão, Sergio continuou a trabalhar e a cobrir manifestações. Para ele, essa é uma forma de demonstrar resistência, mesmo o episódio tendo deixado marcas para além das físicas. “É sempre muito preocupante, fica um trauma. Eu tenho uma marca no corpo e a gente vai para essas coberturas e ver esses atos da polícia. Sempre volta a lembrança do que ocorreu comigo. Carrego uma cicatriz psicológica”
“Eu já tinha passado por outros episódios de truculência policial, mas nunca nesse nível. É uma coisa que a gente que trabalha nesse tipo de cobertura sempre acha que pode acontecer. A gente precisa cobrir esses atos de perto e essa proximidade faz com que os policiais acharem que podem ultrapassar algumas linhas, da mesma forma que fazem com os manifestantes”, avalia Daniel Arroyo.
Para o diretor de redação da Ponte, Fausto Salvadori, o estado de São Paulo deve, no mínimo, uma retratação pela agressão sofrida pelo fotógrafo.
“O ataque contra Daniel e suas consequências mostram o desprezo da Polícia Militar e do governo João Doria pela democracia e pela liberdade de imprensa. Ele foi baleado à luz do dia, por um policial identificado, diante de dezenas de testemunhas e de outros policiais. Contrariando as próprias normas da PM, que são letra morta quando se trata de ajudar seres humanos, os policiais se recusaram a socorrer o jornalista e identificar os responsáveis. Houve negligência tripla na investigação, tanto por parte da Polícia Militar quanto da Polícia Civil e do Ministério Público, que não fizeram as cobranças devidas. E, por fim, não houve qualquer responsabilização e muito menos um pedido de desculpas, seja do comando da polícia, seja do governador João Doria. Fica claro que, para o governador, balear um jornalista é algo aceitável e corriqueiro”.
Outro lado
O ouvidor das Polícias de São Paulo, Elizeu Soares, destaca que o Estado deveria repensar os instrumentos que utiliza nas manifestações para que episódios como esse não voltem a ocorrer. “É lamentável que infelizmente não foi identificado quem fez isso. O Estado deveria indenizar o jornalista e pensar qual seria o tipo de armamento seria mais adequado para esses atos.”
A Secretaria de Segurança Pública se limitou a dizer que o caso foi repassado ao puder judiciário. “O caso foi investigado pelo 78° DP e relatado à Justiça. Mais questionamentos devem ser encaminhados ao judiciário”, disse a pasta através de nota.
O Ministério Público do Estado de São Paulo foi contatado para se posicionar sobre o arquivamento, mas não respondeu os e-mails enviados pela reportagem.