Profissões quase extintas resistem ao tempo

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Apesar dos desafios diversos, trabalhadores mareenses não desistem de ofícios que correm risco de se tornarem obsoletos 

Por Hélio Euclides em 05/05/22 às 07h. Editado por Daniele Moura

Lanterninha de cinema, telefonista, leiteiro, acendedor de poste, vendedor de enciclopédias, telegrafista, operador de mimeógrafo, datilógrafo — essas são algumas das profissões que se extinguiram com o progresso e a transformação da sociedade. Outras resistem ao tempo pelas mãos de profissionais que não desistem, como Atanásio Amorim, o alfaiate da Maré, que trabalhou cortando milimetricamente tecidos até a sua morte em 2020. Como ele, há outros valentes no seu ofício.

Lindanira Avelino da Silva, de 65 anos, tem um ateliê na Nova Holanda onde faz reparo de roupas e calçados, entre outras utilidades. Ela começou trabalhando em uma fábrica de roupas, mas percebeu que era explorada por não receber pelas horas extras que fazia. Decidiu, portanto, dar um novo rumo em sua vida profissional. “Sou de uma família de sapateiros, já atuei como ponteadeira de sapato, costurava toda a parte de pano ao solado”, conta. Sua trajetória já chega aos 30 anos de luta, 16 deles na Nova Holanda. 

Ela pretende se aposentar ainda este ano, mas revela que não vai parar, só diminuir o ritmo. Dona Linda, como é mais conhecida, garante que sua profissão vai continuar por um bom tempo. “Com o desemprego, é muito mais em conta consertar uma bolsa do que pagar R$ 50 por uma nova. Meu irmão é sapateiro e é a mesma coisa, um sapato novo custa mais de R$ 100, em média, mas com R$ 30 a pessoa sai com calçado não apenas colado, mas costurado. Hoje não dá para jogar fora”, explica. A costureira afirma que deixa bolsas e roupas como se fossem novinhas.

Dona Lina em seu ateliê. Foto: Gabriela Lino

A proprietária da Linda Consertos tem orgulho de ter estampado a capa do Censo de Empreendimentos, realizado pela Redes da Maré: “Fiquei famosa. Mas quem me conhece sabe que sou humilde e não trabalho apenas pelo dinheiro — eu gosto do que faço. No início, quando viam uma mulher consertando sapato, me chamavam de doida. Hoje já conquistei o meu espaço e muitos amigos na favela.” Lindanira não menospreza a tecnologia: ela usa uma rede social para conversar com seus clientes.

Um dos seus orgulhos foi ter se tornado microempreendedora individual, em 2013. “Mas do que um trabalho, o que faço é um remédio, me distrai. Não tem tempo ruim, as melhores épocas do ano são o Dia das Mães e o fim das férias. Aparecem muitos reparos em calçados e mochilas. Quando cai o movimento de bolsas e roupas, vou para o segmento de conserto de pula-pula e materiais de academia. Fico feliz quando uma pessoa vai viajar e leva sua bolsa e mala que foi reformada por mim. Acredito que para os meus serviços sempre vai haver clientela”, conclui.

Motor silencioso

No Parque União é possível encontrar uma loja de enrolar motor. Marco Antonio, de 47 anos, é o responsável e se identifica como eletricista e bobinador. “Enrolador tem duplo sentido. É um serviço sério, que abrange o reparo em todos os tipos de motores elétricos. O serviço que mais realizo é de reparo em bomba hidráulica”, explica. O seu ofício começou quando tinha 19 anos, na laje de casa.

Antônio se apresenta também como “psicólogo”. Especialmente quando seus clientes abrem o coração, contando o amor que sentem pelos seus equipamentos, como as bombas: “O meu trabalho vale a pena e vai além de um simples conserto. Tem pessoas que trazem sua bomba d’água já cansada, mas preferem o conserto por valor sentimental.” Ele conta a história de uma senhora que trouxe sua bomba hidráulica para reparo do motor. Ao finalizar o serviço, o equipamento passou a trabalhar silenciosamente. “Dois dias depois da entrega, ela voltou à loja e reclamou que não tinha gostado do serviço, pois antes tinha o barulho e que agora sentia falta dele”, lembra, rindo.

O seu primeiro curso, uma parceria com o Banco da Providência, foi feito em 1993. Desse diploma se orgulha e o mostra com carinho, pendurado na parede. Outra satisfação é ter conseguido passar o que sabe para o seu filho, já dono da própria oficina. “Não é um serviço no qual o profissional fica rico, mas tem muito trabalho na favela e pouca gente para fazer”, diz. Para quem deseja seguir a profissão, ele dá a dica: a prática é primordial. “O meu diferencial é que gosto do que faço”, resume.

Chave para o sucesso

Nem é tão difícil achar um chaveiro na cidade, mas que seja completo, afiando alicate, faca e tesoura, é mais difícil. Claudio Fernando Firmino Reis, de 43 anos, é esse profissional: “Antes de tudo, vendia chaves na Tijuca e às vezes me atrevia como chaveiro. Pela curiosidade e honestidade, os profissionais me ensinaram o ofício.”

Há 14 anos, começou a trabalhar num trailer e também na feira da Rua Teixeira Ribeiro, até conseguir sua própria lojinha: “Na Maré, comecei como ajudante de chaveiro até me profissionalizar e abrir o meu próprio negócio. Nos meus primeiros passos percebi que a população daqui sentia a necessidade de um chaveiro nos fins de semana. Na época, eram sete dias por semana de trabalho.”

Ele lembra que “meu primeiro passo foi comprar um esmeril e fui me aprimorando, me sentindo muito feliz por ter uma profissão e conhecer gente. Com essa renda sustento a minha família com dignidade. Sou um prestador de serviço da comunidade. É uma carreira que resiste e até está em expansão”. Ele já teve várias profissões, como guardião de piscina, vendedor de cerveja e ajudante de entregador de jornais, mas o que o deixa mais feliz é ser chaveiro. “Foi como chaveiro que consegui comprar minha casa, meu carrinho e educar minha filha”, resume.

Claudio Fernando Firmino Reis em frente a sua loja de chaves. Foto Matheus Affonso

Claudio ressalta que já atendeu pessoas oriundas da Região dos Lagos, do Uruguai e até de Portugal. “Aqui é uma favela-mãe: acolhe moradores oriundos de todo lugar. Como a Maré é um ponto estratégico da cidade, entre vias importantes como a Avenida Brasil e as linhas Amarela e Vermelha, o comércio gira um capital forte. Gosto daqui e sinto gratidão pelos meus fregueses”, diz. A clientela retribui o carinho. “Acho o serviço dele excelente. Sempre que preciso de uma chave é ele quem eu procuro”, diz Sheila Carvalho, moradora da Nova Holanda.

Arte para o inusitado

Um artesão que passava pelo bairro da Lagoa, onde tinha um heliporto e ficava admirando os helicópteros e resolveu fazer miniaturas. Assim começou a história de Sebastião Nunes, de 71 anos, mais conhecido como Tião, que desejou construir seus próprios voos. Ele é um paraibano que chegou à Maré em 1974. Morador do Roquete Pinto, começou em 2000, utilizando a revista Guia de Helicóptero, como parâmetro para construir as suas artes. “Fui desenvolvendo e adaptando, modernizando e atualizando. Já são mais de 50 helicópteros construídos e espalhados pelo Brasil, como Belém, Fortaleza, Recife, Natal e João Pessoa”, comenta.

Apesar de não ser uma profissão em extinção, o artesanato representa a resistência de uma atividade geralmente à margem da modernização e mecanização do trabalho. Para construir as suas artes, Sebastião utiliza materiais recicláveis como garrafas pet e tiras de ventoinha de carro, que busca nas ruas. A cada arte criada o seu sentimento é de felicidade. “Me distrai muito, é uma terapia. Não é um brinquedo, mas sim um objeto de exposição”, afirma.

E não são só helicópteros, a produção já abrange outros meios de transporte: um ônibus para uma banda de forró de São Paulo. A arte ônibus demorou  2 meses para ficar pronta. E, por tanto trabalho não confia em por transportadora a encomenda, irá  pessoalmente entregar.

O ônibus tem 60 centímetros de comprimento, enquanto o helicóptero tem 50, com média de construção de três unidades por mês. Quem desejar adquirir o helicóptero deve desembolsar R$ 80. Tião também constrói retroescavadeira e carro. “Já me sugeriram criar uma página na internet, contudo sem as redes sociais já chovem pedidos”, finaliza. 

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