Projeto reúne relatos de pessoas em isolamento com autores da Maré

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Dos 60 textos do Projeto Literatura Comunica, doze são de autores da Maré.

Dani Moura

Ela começou fazendo contações de histórias e promovendo outras atividades de comunicação popular em 2013 nas favelas da Maré e de Cerro Corá, no Rio de Janeiro. Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Miriane Peregrino morou por dois anos na Vila dos Pinheiros, na Maré, e durante este período, criou o projeto Literatura Comunica com várias atividades de leitura. Uma dessas ações resultou num jornal literário que fez junto com Anísio Borba e Carlos Gonçalves – dois mareenses – sobre as rodas de leituras que aconteciam em vários lugares do país, inclusive na Maré. 

A segunda publicação do Jornal Literatura Comunica foi sobre rodas de leitura que aconteciam no exterior. Nela há escritos de alunos da primeira turma do projeto na Maré que estão em intercâmbio fora do país.

O terceiro número seria sobre Poesia Falada, mas pandemia do coronavírus atrapalhou os planos de Miriane. Mas foi durante o isolamento que surge a ideia para a nova edição: uma espécie de diário sobre a vivência da pandemia. Convidou alguns amigos e ex-alunos do projeto para embarcarem nessa ideia. Miriane também fez chamadas nas redes sociais e recebeu um volume tão grande de escritos que criou três números especiais: Brasileiro no exterior, que tem 15 autores, entre eles Bárbara Horrana, mareense que atualmente está intercâmbio no Colorado, nos Estados Unidos;  Brasil, Norte a Sul, com 21 escritores, sendo a Isadora Gran – uma das poeta do Slam Maré Cheia – representante da Maré; e Rio de Janeiro, com 27 textos, sendo 10 de autoria de moradores da Maré. 

O Diário de Emergência Covid-19 teve como inspiração três livros que retratam isolamentos em diferentes épocas e situações: Diário de um Hospício, de Lima Barreto; O diário de Anne Frank, de Anne Frank; e Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus. Você pode conferir todas as publicações do projeto aqui.

A coordenadora do Literatura Comunica, Miriane Peregrino, e dois autores da Maré – Pablo Marcelino, morador da Vila do João e Barbara Horrana, mareense, que está em intercâmbio nos Estados Unidos – conversaram com o Maré de Notícias.

MARÉ DE NOTÍCIAS: Como surgiu a ideia deste projeto?

MIRIANE PEREGRINO: A ideia dos Diários de Emergência Covid-19 surgiu em abril. Durante o isolamento social, lembrei muito do Diário do Hospício, de Lima Barreto e do Diário de Anne Frank, da própria Anne, que são diários escritos em confinamento. Lembrei também do Quarto de Despejo: diário de uma favelada, de Carolina de Jesus, que denuncia uma segregação social, o que também é uma forma de isolamento. Foi inspirada nesses diários que tive a ideia de fazer a edição Diários de Emergência Covid-19 no Jornal Literatura Comunica, que é um projeto de incentivo à leitura e à escrita também.

MARÉ DE NOTÍCIAS: Por que a escolha da Maré?

MIRIANE PEREGRINO: A relação com a Maré vem de alguns anos. Eu comecei a trabalhar na Maré em 2013. De lá pra cá fiz muitas rodas de leitura em bibliotecas, museus, escolas. A última roda de leitura que fiz, presencial, foi no EJA da Redes da Maré no CIEP Gustavo Capanema, ano passado. E o próprio Jornal Literatura Comunica nasceu na Maré. Toda diagramação dos dois primeiros números foram realizadas no Pinheiro, com o Anísio Borba, morador e comunicador popular, e lançamos o jornal numa edição do Slam Maré Cheia, que teve no Parque União ano passado. Por isso, a maioria dos diários do número Rio de Janeiro são da Maré, mas também tem relatos do Cerro Corá, Vidigal, Vila Autódromo, Alemão, Ramos… Além de cidades como Itaboraí, Maricá e Niterói. De certa forma, é um itinerário de um Rio de Janeiro afetivo (cidade onde nasci, cresci, alguns lugares em que morei e trabalhei).

MN: Como foi o critério da escolha dos textos?

MP: Nesse momento de pandemia, todas as narrativas são muito importantes pois registram, reelaboram o cotidiano no confinamento em muitos lugares no Brasil e no exterior. Recebemos relatos de 62 autores, uns no formato de diário e outros de carta, todos foram publicados nos Diários de Emergência Covid-19. Todos. Os diários foram divididos em três números: “Rio de Janeiro”, “Brasil, Norte a Sul” e “Brasileiros no Exterior”. A Barbara Horrana, por exemplo, é moradora da Maré, mas está fazendo intercâmbio nos EUA. Então o diário dela está no número “Brasileiros no Exterior”. A Isadora Gran mora na Maré, mas quando escreveu estava passando o isolamento social na casa da mãe, em São Paulo. Então, o relato dela ficou em “Brasil, Norte a Sul”. Mas  o número ” Rio de Janeiro” tem vários diários e cartas da Maré.

MN: O que mais te chamou atenção nos textos escolhidos?

MP: De alguma maneira, a angústia do confinamento está presente em todos os textos e as reações são diversas: choro, medo, álcool, insônia… Isso chamou muito a minha atenção. Mas no plano objetivo, os diários vão revelando as diferenças entre seus autores. Ficar em casa não é para todas e todos. 

MN: Houve pontos comuns nos textos de autores das periferias?

MP: Nos diários fica evidente que ficar em casa não é um direito acessível a todas e todos. Principalmente para os mais pobres que enfrentam as dificuldades do desemprego, atraso do auxílio emergencial, operações policiais nas favelas, falta de água, dificuldades no home office também. Essas questões estão presentes nas narrativas.

MN: Qual foi o objetivo da publicação? Na sua opinião foi cumprido?

MP: A iniciativa Diários de Emergência Covid-19 teve como objetivo incentivar escritas no e sobre o isolamento. Além disso, a publicação dos flyers dos diários (que divulgamos semanalmente nas redes sociais do Literatura Comunica desde 02 de maio) e a publicação integral dos diários no jornal on-line (em julho) incentivaram uma leitura compartilhada da experiência do confinamento a partir de muitos lugares. O incentivo à leitura e escrita são a base do Literatura e, nesse momento, em que é tão difícil a gente se concentrar, ver tanta gente escrevendo e lendo diários mostra que alcançamos o objetivo do projeto. Além disso, a publicação contribui com o registro desse momento histórico que vivenciamos.

MN: Há algum novo projeto literário em planejamento que envolva a Maré?

MP: Sim. Quero voltar a fazer as rodas de leitura presenciais na Maré ano que vem, elaborar outro número do jornal também.

Pablo Marcelino é morador da Vila do João e é autor de um dos relatos do Diário de Emergência Covid-19 – Rio de Janeiro. Barbara Horrana, cria do Morro do Timbau, atualmente em intercâmbio no Colorado, EUA, participou do Diário de Emergência Covid-19 – Brasileiro no Exterior. Eles também conversaram com o Maré de Notícias.

MARÉ DE NOTÍCIAS: Qual foi a inspiração para a escrita de seus diários?

PABLO MARCELINO: A escrita do meu relato/diário não teve exatamente uma inspiração e sim uma inquietação. No momento que parei para escrever eu pensei a seguinte coisa: “o que está me incomodando?”, “o que está preso?”, “qual recado eu quero passar para a nossa população em um momento tão delicado como esse que está sendo a pandemia?” 

BARBARA HORRANA: Na verdade, eu não sei bem de onde eu arrumei inspiração porque tudo o que eu escrevi veio da minha real, da vivência aqui nos EUA durante a pandemia. Eu não tive uma inspiração específica, eu apenas me permiti colocar os sentimentos para fora, fiz um exercício de reflexão dessa pandemia e as palavras apareceram. Foi um processo todo natural de sintetização dos sentimentos de uma brasileira que tinha acabado de sair de seu país e que, de quebra, chegou aqui no momento “errado”.

MN: Como foi para vocês fazerem parte desta experiência?

Pablo: Eu já venho participando de atividades com o Literatura Comunica há dois anos. Comecei em 2018, quando tive a oportunidade de fazer uma troca dos diários e vida de Carolina Maria de Jesus em Angola/Luanda por meio do próprio projeto. Então agora, em meio a pandemia que estamos atravessando, fazer parte do processo de escrita do Diários de Quarentena foi mais umas das formas que encontrei de manifestar uma série de reflexões e sentimentos no final que notei que precisavam serem externalizados. 

Barbara: Escrever minhas anotações diárias me ajudou a lidar melhor com os sentimentos de angústia e solidão que me acompanharam durante a fase mais restrita do lockdown aqui. Nós entramos em quarentena antes que no Brasil e ainda estávamos no inverno, com temperaturas abaixo do zero. Para mim foi tudo muito desafiador e experimental. Eu tinha acabado de chegar no país, ainda conhecendo minha família anfitriã, as crianças que eu ia cuidar, a cultura do país e tudo isso me abalou demais, eu praticamente não passei pela fase mágica do meu intercâmbio de achar tudo perfeito no início, eu apenas queria ir embora no primeiro mês. Eu tinha um sonho de estar nesse lugar, planejei todos os passos para chegar aqui, juntei cada centavo que pude e me meti nessa loucura toda. Eu coloquei tanta expectativa em tudo isso e simplesmente me frustrei porque, na minha cabeça, se fosse pra eu ficar presa em casa, eu poderia ter ficado no meu país de verdade, com minha real família e amigos. Sei que ninguém teve/tem culpa de tudo isso, mas foi um momento que eu me sentia muito triste e frustrada, achando que o mundo conspirou contra mim. Até hoje me sinto literalmente a estrangeira nesse país e sei que muito desse sentimento foi causado pela pandemia já que esse momento me impossibilitou de fazer amigos logo no começo, de conhecer lugares e experimentar a cultura. Estou aos poucos construindo minha curta vida aqui e é tudo muito cansativo começar do zero.

MN: Escrever ajudou a conviver com a pandemia?

Pablo: A pandemia ainda não acabou, achava que duraria 2, 3 meses e já temos 7 meses, com 130 mil mortes. A maioria dos participantes escreveu um diário, o meu eu considero mais um relato, uma carta. Não consegui escrever um diário, a forma que encontrei de me expressar foi relatando tudo o que eu quero falar em apenas uma página. Escrever é um processo difícil: barulho na rua, barulho em casa, barulho por dentro. Tem sido difícil me concentrar, mas tenho tentado. 

Barbara: Com certeza ajudou. No início, eu achava que não tinha nada de interessante para escrever, dizer para as pessoas, mas quando eu comecei o exercício da escrita isso foi servindo como uma terapia para mim. Eu realmente estava adoecendo na pandemia e eu não tinha percebido. Em uma conversa com minha mãe anfitriã, ela percebeu que eu estava muito abalada, com homesick (saudade de casa), sem vontade de fazer nada e me sentindo muito cansada e sonolenta. Ela realmente ficou preocupada supondo que eu estava apresentando sintomas da depressão. Realmente foi um momento muito difícil para mim e imagino que muitas pessoas tenham se sentindo assim. Começar a escrever me fez olhar para dentro e entender que sim, eu precisava de ajuda. A cada palavra que surgia era como se fosse um soco surgindo no peito que doía na hora, mas depois me curava. Depois de terminar as anotações, eu procurei uma psicóloga que vem me ajudando a passar por esse processo (e por outros) e me orienta da melhor forma para que eu termine meus objetivos aqui nesse país com êxito.

MN: Vocês costumam escrever? Se sim, qual gênero? Já tiveram outros textos publicados?

Pablo: Sim, escrevo textos jornalísticos e artigos de opinião que já foram publicados no jornal Voz das Comunidades e no próprio Literatura Comunica.

Barbara: Não, eu não costumo escrever, infelizmente. Na verdade, escrevia muito na época da faculdade porque fiz comunicação social com habilitação em Relações Públicas, tive disciplinas de texto jornalístico e tive que fazer alguns trabalhos por causa disso. Também durante a faculdade, em alguns estágios que fiz, tive que fazer algumas matérias, alguns textos para os sites e redes sociais das empresas. Enfim, mas toda essa minha experiência foi no tempo da faculdade e no âmbito corporativo. Nunca tive texto publicado ou algo parecido. Esta foi a primeira vez.

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