Redução de danos: humanidade para incentivar autonomia e criar laços

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Estratégia é adotada no trabalho desenvolvido pelo Espaço Normal, equipamento da Redes da Maré que completa quatro anos no dia 7 de maio 

Por Tamyres Matos, em 06/05/22 às 07h. Editado por Daniele Moura

Acolhimento, construção coletiva, reconhecer que não há soluções simples para problemas complexos: essa é a base onde se assenta a redução de danos, estratégia centrada na valorização da vida e na prevenção dos problemas que podem ser causados pelo consumo excessivo de álcool e outras drogas. O Espaço Normal, equipamento da Redes da Maré, foi idealizado a partir deste conceito e completa quatro anos de existência no próximo dia 7 de maio, Dia Internacional da Redução de Danos.

Apesar das diversas experiências com resultados positivos, o quadro geral no Brasil não é dos mais favoráveis atualmente. O país ocupa a última posição no ranking internacional que avalia as políticas públicas de drogas em 30 países. The Global Drug Policy Index é uma pesquisa ligada ao Consórcio de Redução de Danos (Harm Reduction Consortium), que buscou medir e comparar o quanto as políticas nacionais de drogas e suas implementações estão alinhadas aos princípios de direitos humanos, saúde pública e desenvolvimento socioeconômico.

“A experiência brasileira com redução de danos tem lugar de destaque na construção de uma rede de pessoas e movimentos empenhados em fazer avançar a reflexão sobre políticas de drogas no Brasil, depois de quase um século de hegemonia absoluta de pensamento retrógrado sobre drogas. Neste sentido, estamos trabalhando juntos em uma linda irmandade latino-americana, que pensa e faz uma RD bastante avançada.”, afirma Dênis Petuco, pesquisador em saúde pública da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV – Fiocruz).

Paulo Ricardo Santos de Azevedo, de 38 anos, morador da Nova Holanda, é uma das vidas tocadas por essa estratégia de criação de vínculos e no estrito respeito pelos direitos humanos. Ex-morador da cena de consumo de drogas da Rua Flávia Farnese, Papa (como é conhecido) atualmente é redutor de danos do Espaço Normal. Ele explica que RD é “trabalho de formiguinha”, e acredita não haver outro jeito de se lidar com o vício. Em seu tom de voz, é possível notar o orgulho da própria trajetória e do trabalho que vem sendo realizado pelo Espaço Normal desde 2018.

Antes atendido pelas iniciativas da Redes da Maré, Papa é redutor de danos no Espaço Normal | Foto: Matheus Affonso

“Os proibicionistas entendem que o problema das drogas se resolve com internação compulsória. Essa pressão das regras excessivas gera um constrangimento, representa uma perda na autonomia. Não tem como ser dessa forma. As pessoas precisam ser ouvidas, não dá pra impor. Muita gente acredita que a pessoa vai ficar internada e sair de lá curada. Não é assim, mas é possível parar de fazer o uso ou converter de uso abusivo para um mais leve. Sou uma prova viva do trabalho da redução de danos. Passei a entender qual era a minha relação com as drogas”, diz ele.

Dênis analisa que ainda há muita resistência na sociedade no que diz respeito à redução de danos, o que explica até mesmo um olhar de “clandestinidade” em relação à adoção da estratégia. “Trata-se de um marco quando se estuda a história do cuidado de pessoas que usam drogas no Brasil e uma posição que segue produzindo controvérsias profundas até hoje. A redução de danos fala tanto do ambiente conservador que nos empurra, como também do quanto mudamos o contexto a partir de práticas sempre inovadoras. Veja o caso do pessoal que faz RD em festivais de música eletrônica: mesmo antes de este retrocesso começar, o pessoal estava arriscando, atuando nas franjas da legalidade, fazendo testagem de drogas antes de qualquer regulamentação desta prática, que carrega uma ousadia análoga àquela de pioneiras e pioneiros que promoveram as primeiras trocas de seringas na década de 1990. Existe algo na RD que não se acomoda e que, mesmo num contexto desfavorável, leva as experimentações ao limite”, pondera o especialista.

História, definição e vivência prática

Guiar-se pela redução de danos é compreender que as drogas sempre fizeram parte da vida em sociedade. Segundo a Associação Internacional de Redução de Danos, o conjunto de práticas e políticas se refere a ações que têm como objetivo, primeiramente, “reduzir as consequências adversas para a saúde, sociais e econômicas do uso de drogas lícitas e ilícitas, sem necessariamente reduzir o seu consumo. A redução de danos beneficia pessoas que usam drogas, suas famílias e a comunidade”.

Mas como isso se traduz no dia a dia? Papa compartilhou com o Maré de Notícias um pouco da sua rotina no Espaço Normal, fruto de três anos de pesquisa e intervenção junto com as cenas de uso de crack e outras drogas na Rua Flávia Farnese e na Avenida Brasil. O redutor de danos conta que o espaço ainda não voltou a funcionar com 100% das atividades por conta das restrições da pandemia, mas que são cerca de 60 pessoas atendidas por dia. Os usuários do espaço desfrutam de café da manhã, distribuição de tíquetes para almoço, banho, descanso — acima de tudo, é um local no qual eles são ouvidos.

“Começamos a distribuir o café às 9h e por volta das 10h30 encerramos. Aí liberamos o banho no espaço, com privacidade. Temos duas assistentes sociais, uma psicóloga e uma coordenadora do cuidado, além de cinco redutores de danos. Na verdade, todo mundo atua com base na redução de danos, independentemente da formação. Temos demandas também como documentação, alguma questão pendente com a Justiça, e encaminhamentos para a clínica da família ou qualquer outra clínica”, explica Paulo Ricardo.

Para Papa, o mais marcante é a formação do laço de confiança entre equipe e atendidos. “Eu vivi isso, quando se está nessa situação (de vulnerabilidade) é muito difícil você falar com qualquer um sobre suas demandas, mas a gente conseguiu construir essa confiança. Nosso processo de escuta abre esse caminho de sensibilidade para as demandas dos usuários”, diz.

Equipe do Espaço Normal reunida: em 2022, o equipamento completa quatro anos desde sua inauguração | Foto Matheus Affonso

De usuário nas cenas de uso de substâncias acompanhado pelos projetos da Redes da Maré a redutor de danos, Papa conheceu o centro de convivência É de Lei, voltado à redução de danos em São Paulo, concluiu seu Ensino Médio depois de mais de 13 anos sem estudar, participou de palestras de formação e não quer parar mais. Atualmente, ele participa do pré-vestibular da organização mareense e pretende fazer faculdade de serviço social com um propósito em mente: “retribuir”.

Contexto

A redução de danos foi adotada como estratégia de saúde pública pela primeira vez no Brasil no município de Santos, em São Paulo, em 1989, quando os índices de transmissão de HIV estavam relacionados ao uso indevido de drogas injetáveis. O objetivo prático inicial era minimizar a gravidade do alto contágio via seringas compartilhadas, mas ao longo do tempo se converteu em um trabalho para a produção de saúde alternativa e não na lógica da abstinência. Hoje, a estratégia é observar o que os usuários de álcool e drogas (e da comunidade que o acolhe) precisam e ampliar as ofertas em saúde. Trabalham neste sentido os já citados centros de convivência Espaço Normal e É de Lei, além do programa governamental da cidade de São Paulo De Braços Abertos.

“Tenho profunda admiração pelo Espaço Normal. Considero as experiências de centro de convivência as mais corajosas e inspiradoras que temos hoje no Brasil. São iniciativas da sociedade civil que fazem avançar o pensamento sobre o que pode a política pública, que estão na contramão do retrocesso. Com sua ousadia, são faróis a guiar a política pública”, acredita Dênis Petuco. 

De acordo com Lumena Furtado, coordenadora do Laboratório de Saúde Coletiva (LASCOL), coletivo de docentes e técnicos do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/ Unifesp), a importância do programa De Braços Abertos, lançado em 2014 e interrompido em 2019, foi mostrar que é possível ter uma política pública de cuidado na questão do uso intensivo de álcool e drogas, tendo como premissa outra referência que não a “guerra às drogas” e sim, a redução de danos como uma perspectiva de alinhamento da política. 

“O programa tinha um tripé. De um lado a questão da moradia, que é fundamental para que a pessoa possa se organizar, se cuidar e ter uma possibilidade de vínculo com outras estratégias. Era moradia transitória, a pessoa ficava um tempo, tipo dois anos, até conseguir se restabelecer. O segundo ponto do tripé era geração de renda através de possibilidades alternativas coletivas, solidárias de geração de renda: a formação em diferentes linhas de trabalho, como jardinagem, cabeleireiro, limpeza… O terceiro era o cuidado em saúde”, relembra Lumena.

Para o especialista da Fiocruz, as possibilidades da redução de danos já foram mostradas pelas experiências existentes e pesquisadores e trabalhadores da saúde mental de equipamentos públicos e organizações sem fins lucrativos devem se unir na definição de estratégias. 

“Não é por acaso que o sucesso do Espaço Normal e do É De Lei é celebrados por quem milita por melhores políticas de drogas. A evolução passa por aceitar as provocações que essas duas experiências fazem às políticas públicas. Cabe aos gestores o esforço de alcançar aquilo que o Espaço Normal e o projeto É De Lei já fazem. E o mais bonito é saber que, quando isso acontecer, esses espaços já estarão ousando em outras frentes. Você pergunta como evoluir? Eu respondo: prestando muito atenção ao que estas organizações estão fazendo.”

Dênis Petuco, pesquisador em saúde pública da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV – Fiocruz).

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