Relembrando a Maré na Copa

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Um relato sobre a experiência da Copa do Mundo na Maré

Tassia Menezes por Conexão UFRJ

Difícil saber por onde começar. Poderia escolher a ordem cronológica e contar que dividimos (eu, Tassia e o Fábio Caffé, repórter fotográfico) a nossa cobertura em duas experiências: uma visita à Rua Benjamin Constant, na Glória, no dia 2/12/22, quando o Brasil enfrentou Camarões; e na Nova Holanda, uma das 16 favelas que fazem parte da Maré, no dia 5/12/12, quando houve a goleada de 4×1 contra a Coreia do Sul.

Segui meu desejo e inicio o relato pela história da dona Helena Edir, de 72 anos, uma matriarca da Maré, que há anos é responsável pela decoração da Rua Ivete Vargas durante as copas do mundo. Esse é apenas um dos atributos dela, que além de ser conhecida como a “mãe de todos”, também é educadora e engajada nos movimentos sociais de mulheres e negros no bairro. Dona Helena foi a última pessoa que encontramos ao longo de dois dias, mas mesmo antes de vê-la, foi comum ouvir seu nome entre os moradores. Afinal, sem ela, o verde e amarelo talvez não estivesse assim tão presente naquela rua.

Torcedores durante Brasil x Coréia do Sul. Copa do Mundo 2022. Rua 4 atual rua Ivete Vargas, Nova Holanda, Favela da Maré, RJ.

Não só por ela, certamente. Afinal, é tudo feito coletivamente. Outra vizinha, a dona Maria da Penha, além de ser outra decoradora ativa, cede a garagem da sua casa e sua televisão para fazer a transmissão oficial da rua. Moradora da Maré há 45 anos, ela se mudou quando casou e nunca mais saiu. Conhece e já pegou no colo muitos dos adultos, que hoje, levam suas crianças para assistirem ao jogo ali na porta de sua casa. Com direito a cadeiras para fazer de arquibancada, pipoca para as crianças no intervalo e um toldo colocado às pressas quando a chuva começou a cair, a alegria era contagiante (inclusive a minha), cada vez que a bola atingia a rede e marcava mais um para a seleção brasileira. Daquela vez, no entanto, ela decidiu não fazer o churrasco que tinha feito quando o Brasil perdeu para Camarões, para não trazer azar. Naquele dia, deu certo.

Dona Maria da Penha que cedeu a garagem de sua casa para torcedores durante a Copa do Mundo 2022 na Nova Holanda, Favela da Maré, RJ.
Foto: Fabio Caffé

Da mesma maneira, outro morador, o Hugo, defendeu que o Brasil só havia perdido para o país africano porque ele não estava bebendo. Afinal, na partida em que decidiu tomar de novo a sua gelada, logo nos 6 primeiros minutos o Brasil já estava marcando. Enquanto isso, uma família da rua de trás fazia pela primeira vez um churrasco com os vizinhos, que afirmavam que teriam que manter a nova tradição. E eu, que virei a mascote da rua, fui acusada positivamente de levar sorte para o Brasil. Minha missão: voltar no jogo seguinte para garantir. “Futebol é superstição. Se fez e está funcionando, tem que manter”, me disse uma das vizinhas. Sem pressão, né?

A rua toda torce muito. As crianças se vestem a caráter, bem brasileiras… é um encanto. E naquele dia, a alegria pairava na Ivete Vargas, no meu rosto e de Fábio também. Porém, apesar de ser torcedora ferrenha, Dona Helena não fez parte da festa. A prova de como ela é intensa quando se fala de Copa do Mundo é a foto que virou quadro na parede da casa de sua sobrinha Adriana, onde a matriarca também reside. A imagem a mostra chorando após a derrota do Brasil para a Alemanha, em 2014, no famoso 7 a 1. Desta vez, no entanto, ela não estava presente na torcida e descobrimos o motivo quando, por acaso, após o fim do jogo, paramos na casa de Adriana.

Família da dona Helena durante o jogo do Brasil x Coréia do Sul na Copa do Mundo 2022. Na parede, o quadro em homenagem a ela.
Foto: Fabio Caffé

A razão é que pouco antes do campeonato começar, não só Helena, mas a rua inteira perdera uma pessoa muito querida: dona Vera Lúcia, irmã da educadora. Ela estava na rua arrumando as bandeirinhas, quando passou mal e não resistiu. Apesar da dor da falta, uma homenagem foi feita, com a celebração de uma missa de sétimo dia naquela mesma rua, pintada e colorida por todos, incluindo a própria Vera, que deixou saudades.

Tradição é tradição

Na Glória, a experiência é diferente da Maré, por ser menos familiar e mais agregadora. Ali, as pessoas não se conhecem, mas estão todas juntas em uma única torcida. Na rua, mais de uma televisão: a de seu Luis, algumas no bar da frente e, caminhando um pouco mais, um novo espaço que ganhou destaque esportivo por reunir flamenguistas ao longo dos jogos do ano: o Comida, Resenha e Futebol (CRF), liderado por Fabiano Mielke há pouco mais de um ano. Ele fica feliz de ter conseguido movimentar o “point”.

É caminhando por ali que conhecemos também a Regina Lúcia, também conhecida como Regina Geladinha. Com um vestido exclusivo feito por ela mesma para acompanhar os jogos, a torcedora estava trajando a bandeira do Brasil. Com orgulho, ela diz que vai usar sempre por trazer sorte, mesmo quando o jogo ainda estava no zero a zero. Junto de Luis e de outros, Regina foi uma das responsáveis pela pintura da escada. Ele mesmo nos contou que, neste ano, em virtude de os jogos da Copa terem estado muito próximos às eleições, optaram por fazer uma decoração menor do que a tradicional. Mas a escada não poderia faltar.

O figurino da Regina Lúcia, na Glória.
Foto: Fábio Caffé

Verde e amarelo de novo

De volta às ruas, encontramos a correspondente bancária Célia Rocha. Com uma blusa amarelo vivo e uma calça verde, ela saiu da apresentação de teatro da filha e foi direto assistir ao jogo, orgulhosa das cores que carregava. Por tanto tempo associado a indivíduos ou ideologias, é difícil esse assunto não surgir ao elogiar seu vestuário: “Estou adorando poder me vestir assim sem ter que ouvir piadas”, disse ela, enquanto o marido anunciava seu voto com orgulho.

De outro lado, a aposentada Vilma Monteiro se mostrava brasileira da cabeça aos pés, quando até suas unhas estavam a caráter. Torcendo pelo hexa que, que não veio a moradora da rua recordou que sempre arrumava sua mãe também para assistir aos jogos, fazia parte da tradição.

Entre tradições e superstições, a comprovação de que fazer as coisas da mesma maneira não são garantia de vitória chegou junto com o gol naquele jogo arrastado contra Camarões. Já durante os nove minutos de prorrogação, com todos segurando a respiração enquanto assistiam a um empate que parecia imutável, o torcedor Valter decidiu que iria colocar a sua touca da sorte. Foi imediato: gol da seleção africana e derrota do Brasil.

Lembrar disso no final desse texto pode ser apenas uma forma de buscar uma absolvição imaginária por não ter regressado à Maré para assistir àquele último jogo. Ou apenas a tentativa de conforto a todos que, de alguma maneira, estão buscando motivos para explicar o inexplicável. Futebol é assim mesmo.

O meu olhar atento relembra tudo que observei e sorri, ao ver como ficamos bonitos quando estávamos juntos de novo depois de tanto tempo. Se a gente conseguir se lembrar disso, vai ser mais tranquilo esperar pelos próximos quatro anos. E quem sabe em 2026 celebrar nos bares, nas ruas, nas passarelas o tão aguardado hexacampeonato.

Torcedores durante Brasil x Coréia do Sul na Rua 4, atual rua Ivete Vargas, Nova Holanda, Favela da Maré, RJ. Foto: Fabio Caffe

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