Remuneração para o jornalismo digital em debate

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Mídia digital de pequeno porte quer receber de big techs por meio de um fundo setorial. A proposta é importante para igualdade entre os veículos jornalísticos

Por Daniele Moura

O Projeto de Lei 2630/20 institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. O texto cria medidas de combate à disseminação de conteúdo falso nas redes sociais, como Facebook e Twitter, e nos serviços de mensagens privadas, como WhatsApp e Telegram, excluindo-se serviços de uso corporativo e e-mail. Se for aprovado, a lei valerá para as plataformas com mais de 2 milhões de usuários, inclusive estrangeiras, desde que ofertem serviços ao público brasileiro. Certamente a proposta é um avanço para que as big techs possam começar a remunerar veículos digitais de conteúdo jornalístico.

A tramitação do PL nº 2630/2020, atualmente em discussão na Câmara dos Deputados, é uma oportunidade ímpar para tratar de assunto muito relevante atualmente, sobretudo no mundo que vivemos ameaçados pela desinformação.

Na última década, foram muitas iniciativas criadas no campo do jornalismo digital, seja ele local, comunitário, investigativo, nas quais criaram grande impacto social, sobretudo nas favelas e periferias – só olhar para o auge da pandemia e perceber a importância que veículos como o Maré de Notícias tiveram como difusor de informações que puderam salvar vidas e matar a fome de muitos moradores da Maré. O Maré de Notícias publicou diversos conteúdos sobre a Campanha Maré Diz Não ao Coronavírus, da Redes da Maré, fez parceria com a Fiocruz e criou uma editoria sobre o coronavírus, além de vídeos, podcasts, rondas diárias e listas de transmissão por WhatsApp.

Mas sobreviver após a pandemia é e está sendo difícil. São inúmeros desafios, mas certamente o maior deles é a sustentabilidade financeira. Na maioria das vezes a receita vem do espaço publicitário oferecidos nos sites. E aí quem tem mais cliques, ganha mais. Isso favorece a manutenção de uma lógica que os grandes sempre ficarão grandes e os pequenos lutando para sobreviver (em todos os sentidos).

O PL nº 2630/2020 propõe regular a atuação de plataformas digitais e, ao mesmo tempo, criar um mecanismo de financiamento ao jornalismo digital. O Maré de Notícias faz parte da Ajor, Associação de Jornalismo Digital, junto com mais de cem organizações jornalísticas com ou sem fins lucrativos. A associação defende que se construa um fundo setorial para fomentar o jornalismo.

O pagamento direto das bigs techs aos veículos digitais pode reforçar a hegemonia das grandes empresas de mídia. E por isso que a ANJ (Associação Nacional de Jornais) e a Globo se opõem à criação de um fundo para remunerar o jornalismo. Desde o início dessa discussão a Ajor tem acompanhado o processo de aprovação dessa PL. Essa semana a organização escreveu uma nota fortalecendo a importância do fundo.


Nota da Ajor

Não existe democracia sem jornalismo. A desinformação tem o poder de minar o tecido social e levar a cenas de violência como as vistas no dia 8 de janeiro deste ano. Para que atos como aqueles, amplamente rejeitados pela população, não se repitam, é urgente fortalecer e ampliar a produção de informação de qualidade e o jornalismo de interesse público.

Um jornalismo plural e diverso, que dê conta das diferentes realidades do país, é essencial para garantir cidadania plena aos brasileiros. A tramitação do PL nº 2630/2020, atualmente em discussão na Câmara dos Deputados, é uma oportunidade ímpar para tratar esse assunto com a profundidade que merece.

Na última década, floresceram empreendimentos de jornalismo digital, seja ele local, comunitário, investigativo, generalista ou especialista, além de newsletters, podcasts e canais de vídeo que vêm tendo enorme impacto sobre a sociedade. Basta lembrar a importância das agências de checagem no combate às Fake News e o impacto de projetos de jornalismo investigativo como a Vaza Jato

Enquanto a pandemia de COVID matava milhares de brasileiros por dia, essa nova mídia trazia informações sobre serviços de saúde. Quando a fome decorrente da crise sanitária ameaçava os mais vulneráveis, os veículos comunitários e de favelas promoviam campanhas de arrecadação de alimentos. O bom jornalismo salvou vidas.

A sustentabilidade desses empreendimentos, no entanto, esbarra na mesma internet que os tornou possíveis: a receita publicitária, que sempre foi uma das principais fontes de financiamento da imprensa, está sendo capturada por plataformas digitais. Hoje, Alphabet e Meta, também conhecidas como Google e Facebook, formam um duopólio incontestável nesse mercado. Perde a imprensa tradicional, perde a nova mídia e, sobretudo, perde a sociedade.

O PL nº 2630/2020 representa um avanço histórico ao propor regular a atuação de plataformas digitais e, ao mesmo tempo, criar um mecanismo de financiamento ao jornalismo digital. É preciso que essa remuneração à imprensa seja tratada como política pública e esteja sujeita a princípios de boa governança. 

A negociação direta entre empresas de mídia e plataformas digitais, sem transparência sobre valores e critérios, concentra poder nas próprias big techs e termina por beneficiar grandes conglomerados de comunicação. Veículos médios e pequenos muitas vezes não conseguem sentar-se à mesa; quando conseguem, têm um poder de barganha muito menor e negociam no escuro

Caso o caminho seja esse, não há por que esperar, no Brasil, um resultado diferente do observado na Austrália, país que implementou legislação semelhante em 2021. Lá, grandes empresas de mídia têm sido beneficiadas com contratos vultosos, enquanto pequenas e médias iniciativas muitas vezes não conseguiram sequer começar a negociar. 

No Brasil, essa nova mídia tem permitido uma significativa pluralidade de vozes e pontos de vista na cobertura jornalística, garantindo o acesso à informação a populações de territórios esquecidos pela imprensa tradicional. Segundo o Atlas da Notícia, metade dos municípios brasileiros, onde vivem 30 milhões de pessoas, não têm cobertura local. São mais de 13% dos cidadãos vivendo em verdadeiros desertos de notícias. 

As mais de cem associadas da Ajor, Associação de Jornalismo Digital, de todas as regiões do país, fortalecem a cidadania e a democracia brasileiras e contribuem para superar a histórica concentração da mídia num país diverso e continental. Suas particularidades reforçam a necessidade de uma política pública efetiva de garantia à sustentabilidade do jornalismo digital. 

Por isso, a Ajor defende a criação de uma política pública transparente e com governança adequada de apoio ao desenvolvimento do jornalismo a partir de receitas provenientes de taxação das plataformas digitais. Um fundo setorial é necessário para fomentar o jornalismo de interesse público, por meio de mecanismos transparentes de distribuição de recursos e com incentivo às pequenas e médias iniciativas. 

Áustria, Itália, Holanda, Noruega e Canadá têm encontrado soluções nesse sentido, por entenderem a necessidade de fomentar o jornalismo digital como importante mecanismo de combate à desinformação. Os modelos são diversos, mas têm em comum a defesa da expansão do jornalismo digital, o pluralismo e a regionalização da cobertura jornalística.  

Para garantir a transparência e uma gestão atenta às necessidades de desenvolvimento do campo, é necessário implementar um mecanismo de governança intersetorial, com a participação de governo, empresas jornalísticas e sociedade civil organizada, com diretrizes claras que priorizem o jornalismo de interesse público, a pluralidade e o fomento à inovação. 

É essa oportunidade que o PL nº 2630/2020 não pode perder. O Brasil tem todas as condições de dar ao mundo mais esse exemplo de defesa da democracia. É preciso que as plataformas financiem o jornalismo de interesse público, de maneira plural, transparente e com governança social.


Íntegra da Lei, só clicar aqui.

ENTENDA O QUE ESTÁ EM DEBATE:

Qual o debate sobre a regulação das redes sociais??
Sob o impacto dos atos golpistas do 8 de janeiro, o governo Lula elaborou proposta que obriga as redes a removerem conteúdo que viole a Lei do Estado Democrático, com incitação à golpe, e multa caso haja o descumprimento generalizado das obrigações. O Executivo encaminhou a proposta para o deputado Orlando Silva (PC do B-SP), relator do PL 2630, o chamado PL das Fake News, que irá discutir o texto com lideranças na Câmara.

O que é o Marco Civil da Internet?
É uma lei com direitos e deveres para o uso da internet no país. O artigo 19 do marco isenta as plataformas de responsabilidade por danos gerados pelo conteúdo de terceiros, ou seja, elas só estão sujeitas a pagar uma indenização, por exemplo, se não atenderem uma ordem judicial de remoção. A constitucionalidade do artigo 19 é questionada no STF.

Qual a discussão sobre o artigo 19???
A regra foi aprovada com a preocupação de assegurar a liberdade de expressão. Uma das justificativas é que as redes seriam estimuladas a remover conteúdos legítimos com o receio de serem responsabilizadas. Por outro lado, críticos dizem que a regra desincentiva as empresas e combater conteúdo nocivo.

A proposta do governo impacta o Marco Civil??
O entendimento é que o projeto a ser incluído do PL das fake news abra mais uma exceção no Marco Civil. Hoje, as empresas são obrigadas a remover imagens de nudez não consentidas mesmo antes de ordem judicial e violações de direitos autorais. O governo quer que conteúdo golpista também se torne uma exceção à imunidade concedida pela lei, mas as empresas não estariam sujeitas à multa caso um ou outro conteúdo violador fosse encontrado na plataforma, só se houver descumprimento generalizado.

Como funciona em outros países?

EUA: A legislação imuniza as plataformas por conteúdos de terceiros, e não responsabiliza as empresas caso o conteúdo seja removido em boa-fé. Projetos e ações na Justiça discutem ampliar a responsabilidade das plataformas

União Europeia: Diretiva do bloco estabelece que as redes só podem ser responsabilizadas se não agirem após denúncia. A lei de serviços digitais, vigente a partir deste mês, mantém essa imunidade, mas estabelece obrigações às plataformas, como relatórios de transparência, e demonstração de conteúdos removidos

Reino Unido: Empresas não podem ser punidas por danos causados por conteúdo de terceiros. Uma proposta estatui que as plataformas deverão garantir a aplicação de seus próprios termos de uso, e o direito dos usuários de recorrer das decisões de moderação

E onde entra o financiamento ao jornalismo?
O PL das fake news previa negociação direta dos veículos de mídia com as big techs para remuneração de conteúdo jornalístico, em mecanismo semelhante ao implementado na Austrália em 2021. A medida é defendida pela Globo e grandes empresas de mídia. Mas a proposta do Executivo estipula que o conteúdo jornalístico entraria em um esquema de pagamento de direitos autorais como músicas, vídeos e filmes.

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