Reportagem da Agência Pública traz ação coordenada de empresa contra entregadores

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              A dura rotina de trabalho e o jogo pesado dos aplicativos 

Por Jorge Melo, em 14/04/2022 às 07h. Editado por Edu Carvalho.

Recentemente, a Agência Pública, reconhecida pela qualidade do jornalismo investigativo que realiza, publicou uma matéria assinada pela repórter Clarissa Levy. A reportagem, com documentos de depoimentos exclusivos, revela que, há pelo menos um ano, uma agência de publicidade, a serviço da empresa iFood, infiltra pessoas nas manifestações de entregadores e produz perfis falsos com o objetivo de dispersar os trabalhadores e desviá-los de suas principais reivindicações.  

Uma categoria em expansão

A impressão que se tem é de que estão em todos os lugares; com suas motos ou bicicletas, mochilas quadradas de cores vivas e uma pressa imprudente. O que chama atenção, além do número, é a relação de trabalho que mantêm com as empresas que utilizam sua mão de obra; que se caracteriza pela ausência de vínculo formal de trabalho, a prestação de serviços para vários clientes, longas jornadas de trabalho e remuneração irregular. 

Esses trabalhadores são uma espécie de símbolo do desemprego e da precarização do trabalho, que atinge sobretudo os mais jovens, alguns nem tão jovens assim. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego entre os jovens de 18 a 24 anos é de 31%. Não é difícil imaginar porque os jovens são maioria nesse setor e se submetem a condições de trabalho tão adversas. 

Uma relação desigual

Vinicius Ribeiro, ex-morador da Maré; jornalista e cineasta, de 28 anos; trabalhou dois anos como entregador de aplicativo, “Foi por necessidade. Na época eu tinha um trabalho informal que rendia entre 600 e 800 reais e eu precisava de uma segunda fonte de renda. Eu trabalhei entre julho de 2019 e fevereiro de 2020, geralmente das cinco da tarde à meia noite. Mas o maior problema não era o tempo trabalhado. Como trabalhava com bike o esforço físico era pesado. Eu pedalava mais de 30 quilômetros por dia; com essa bicicleta do Itaú que é bem pior do que uma normal. Recebia mais ou menos uns 50 reais por dia. Só que daí saía 10 reais da passagem. E se quisesse comer um salgado, mais cinco reais. Eu sempre levava comida e comia, às vezes, esperando algum pedido.”

Um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), realizado no primeiro semestre do ano passado apontou que entre 2016 e 2020, o número de entregadores de aplicativos passou de 30 mil para 276 mil, um aumento de 979,8%. E que esse aumento se deu em função do crescimento do número de plataformas e do desemprego crescente, com um agravamento durante a Pandemia. 

Vinícius lembra principalmente da falta de contato humano, “a dificuldade de resolver problemas com as empresas, sempre por meio de um chamado ou aplicativo, algumas têm apenas uma central que resolve alguns problemas, outras nem isso. A gente é bloqueado por qualquer coisa e para desbloquear é mais uma dificuldade; isso só para começar a trabalhar. As rotas, às vezes são absurdas.” 

Pandemia

Ao contrário do que se possa pensar, a Pandemia, com o isolamento social e o aumento da procura por serviços de entrega em domicílio, não aumentou a renda dos entregadores. Segundo pesquisa do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realizada em São Paulo, 62% dos 300 de entregadores entrevistados passaram a trabalhar mais de nove horas por dia; enquanto antes da Pandemia eram 57%, para conseguir praticamente a mesma remuneração. Apesar dos riscos que correram durante a Pandemia não foram incluídos nos grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI).

Foi em reação a essa realidade que surgiu, no ano passado, em São Paulo, o Movimento Entregadores Antifascistas. O fundador e principal representante é Paulo Lima, mais conhecido como Paulo Galo; um homem negro, de 32 anos, nascido e criado na periferia de São Paulo. Galo sonha com um movimento nacional mas ele mesmo reconhece que é difícil reunir a categoria, que tem como característica a dispersão porque não têm um local de trabalho definido.

A mobilização do entregadores

No dia 18 de março entregadores de aplicativos realizaram manifestações de protesto na Zona Sul e Zona Norte do Rio de Janeiro. O movimento ocorreu depois que o iFood, anunciou reajustes nas taxas de entrega dos motociclistas, que não ficaram satisfeitos com a nova tabela. Houve manifestações no Leblon e Tijuca. Os entregadores usaram as redes sociais para divulgar o movimento. Segundo o Centro de Operações Rio houve apenas um incidente na rua Lauro Muller, em Botafogo. 

A manifestação em Botafogo causou alguns transtornos ao trânsito. O Batalhão de Choque da PM acompanhou. Foi a primeira vez que entregadores de aplicativos do Rio de Janeiro protestaram contra as condições de trabalho. A iFood divulgou uma nota afirmando que vem adotando medidas para melhorar as condições de trabalho, “Desde o início da pandemia o iFood já investiu mais de R160 milhões em iniciativas de apoio aos entregadores.”

Mas essas não foram as primeiras reações às difíceis condições de trabalho dos entregadores. Em julho de 2020, foi organizada uma greve dos entregadores, que eles chamam de “breque”, na cidade de São Paulo. Houve antes uma reunião no Largo da Batata, área de grande movimento na Zona Oeste da cidade. A manifestação reuniu poucos trabalhadores mas um vídeo gravado por Galo explicado as razões da luta dos entregadores, teve 500 mil visualizações, “Eu tenho que aproveitar que tem um monte de câmaras por aqui para mandar um papo forte para conquistar os entregadores que estão por todo Brasil.”, disse Galo durante a manifestação. 

No ano passado, 2021, entregadores de Paulínia, Jundiaí, São Carlos e Bauru, no interior de São Paulo, organizaram paralisações, reivindicando melhores condições de trabalho e o fim da coleta dupla, quando o trabalhador precisa fazer duas ou mais entregas de uma vez só, sem receber a taxa mínima por cada uma delas. Os entregadores também reivindicavam o fim do bloqueio, quando a plataforma exclui o entregador e o impede de seguir trabalhando sem explicar o motivo. 

Entregadores e aplicativos

Segundo o IPEA, entregadores e motoristas de aplicativos somam um milhão e quatrocentos mil trabalhadores, ou seja, 31% das pessoas que compõem o setor de transporte, armazenagem e correios do país. O iFood, um dos maiores do setor, possui 160 mil entregadores ativos na plataforma. 

De acordo com o site Statista, empresa especializada em dados de mercado e consumidores, em 2020, o Brasil foi responsável por 48,77% do uso de delivery na América Latina. No país, já estão registrados mais de 250 aplicativos de delivery. 

De acordo com um outro levantamento encomendado pela VR Benefícios ao Instituto Locomotiva, 89% dos estabelecimentos comerciais do país passaram a utilizar o delivery durante a pandemia e hoje ele é responsável por mais da metade do faturamento em 56% dos estabelecimentos do setor. 

De aplicativo ou não, a vida dos entregadores não é fácil. Wellington Alves Neto mora na Baixa do Sapateiro, tem 26 anos e é solteiro; faz entregas de moto para várias empresas, todas na Maré. Trabalha em média 12 horas por dia. Segundo ele, tem ganhos maiores que um entregador de aplicativo, “Num dia bom posso ganhar de 150 a 200 reais e num dia ruim de 70 a 90 reais”. No entanto, revela que quando se acidentou não recebeu nenhum tipo de apoio, conquista recente dos entregadores de aplicativos.

Wellington trabalhava como promotor de vendas da Rio Card, empresa responsável pelos cartões utilizados no transporte público no estado do Rio de Janeiro;  mas perdeu o emprego durante a pandemia. Apesar das condições de trabalho vai continuar com as entregas, “Quero voltar para a minha área e enquanto não tiver uma oportunidade vou continuar.” 

O universo dos entregadores

Galo, que tenta organizar os entregadores na cidade de São Paulo, trabalhou como motoboy de 2012 a 2015, com carteira assinada. Sofreu dois acidentes e decidiu mudar de área. Foi ajudante de pedreiro, camelô, florista, repositor de supermercado e técnico em telecomunicações. Foi demitido em 2019; voltou às ruas como entregador de aplicativo e constatou que havia mudanças para pior, “O motoboy contratado trabalhava das sete à meia, noite, jantava e levava para casa uns 100, 120 reais. O entregador de app não ganha alimentação nem diária, trabalha doze horas para ganhar 60 reais.”   

Segundo dados da pesquisa Condições de Direito e Diálogo Social de Trabalhadores e Trabalhadoras do Setor de Entrega por Aplicativo em Brasília e Recife, resultado de uma parceria entre a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Organização Internacional do Trabalho (OIT), 92% dos entregadores são homens, a maioria jovens até 30 anos; de cor preta ou parda, 68%. Com renda mensal de R$ 1.172,63, o que significa um ganho líquido de R$ 5,03 por hora trabalhada. 

Proteção limitada  

No dia cinco de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei 1665/20, que estabelece medidas de proteção para os entregadores de aplicativos durante a emergência de saúde pública (Pandemia). O projeto original foi apresentado no dia quatro de abril de 2020; aprovado na Câmara dos Deputados no dia primeiro de dezembro de 2021 e no Senado em nove de novembro do mesmo ano. Bolsonaro vetou o trecho que estabelecia que a empresa de aplicativo deveria fornecer alimentação ao entregador por meio dos programas de alimentação do trabalhador.

Uma das exigências da lei é que a empresa de aplicativo contrate seguro contra acidentes, sem franquia, para o entregador, cobrindo acidentes durante o período de retirada e entrega de produtos. Para o autor do projeto, depurado Ivan Valente, o projeto deveria ter sido votado há mais tempo, “Há mais de um milhão de entregadores e, neste momento de pandemia, eles se tornaram mais que essenciais, entregando alimentos e remédios”. 

“A gente só pede o básico do básico para o ser humano viver bem”, resume Galo quando explica porque decidiu tentar organizar os entregadores de aplicativos. O entregador na juventude sonhava ser um rapper e foram as letras politizadas dos grupos de rapper que levaram Galo a pensar sobre as desigualdades sociais.

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