A Saúde municipal no vermelho

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Profissionais sem salários, população sem atendimento: é a realidade da Saúde no Rio

Maré de Notícias #108 – janeiro de 2020

Hélio Euclides

Há um ano, em janeiro de 2019, a Edição 96 do Maré de Notícias abordava a ameaça da diminuição das equipes nas Clínicas da Família no território. Era o início de uma crise na Saúde. E de lá pra cá, infelizmente, a situação piorou muito, com profissionais sem salários há três meses, sem dinheiro para pagarem suas contas e comprarem comida. A contratação de profissionais de Saúde no município do Rio se dá por meio de organizações sociais (OS).  Na Maré, a OS que administra a Saúde é o Viva Rio, que é responsável pelas quatro Clínicas da Família, dois Centros Municipais de Saúde, o CMS João Candido (Marcílio Dias) e a única Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da região.  Mas verbas chegam pela Prefeitura.

Além dos profissionais de Atenção Básica da Saúde passarem por problemas salariais, nos hospitais os pacientes se amontoam nos corredores. Apesar disso, o prefeito Marcelo Crivella publicou, nas redes sociais, vídeo em que afirma que a crise na Saúde é “falsa”. No dia 12 de dezembro, Daniel Lima, morador da Nova Holanda, precisou acionar uma equipe de reportagem da TV Globo para conseguir atendimento para sua mãe, Maria do Carmo, de 56 anos, que esperava há 12 horas no Hospital Souza Aguiar. “Minha mãe estava com dores, com problema renal, precisava de atendimento para colocar um cateter. Então, entrei em contato com a imprensa. O prefeito fala que a Saúde está boa, mas não vê os banheiros do hospital que estão sujos e a enfermaria com infiltração e mofo”, informa.

Para Joelma de Sousa, assistente social da Redes da Maré, a situação preocupa, pois a população procura um “plano b”, para achar uma solução: “O que vem acontecendo são as idas às clínicas de preços populares, onde pagam e são atendidos. Logo surgem os comentários que é preferível pagar, pois o de graça é ruim. Esse é o pensamento que sugere uma privatização do Sistema Único de Saúde. Só que Saúde pública é um direito, não pode ser violado, está na Constituição”, afirma. Ela acrescenta que a privatização não é a solução, pois nem todos têm dinheiro para pagar uma consulta. 

Profissionais no meio do furacão

Todos os profissionais de Saúde ouvidos na matéria não quiseram ser identificados, com medo de represálias. Um deles nosdisse que nas Unidades faltam médicos e remédios. “O salário foi a gota d’água. No Américo Veloso, por exemplo, o aparelho de raio X está quebrado há cinco meses. A fusão com o antigo Posto de Saúde 14 de Julho diminuiu o número de especialistas que atuavam naquela Unidade. A culpa não é da empresa que administra (Viva Rio), pois funcionava na gestão anterior”, comenta. Ela declara que para consulta de especialistas fora da Maré, o paciente é encaminhado ao SISREG (Sistema Nacional de Regulação), que demora mais de dois meses para atendimento.

Um outro agenteacredita que na gestão anterior foram inauguradas muitas Clínicas da Família sem planejamento. Já, hoje, está sendo desmontada a Saúde Básica. “Um dos problemas é a falta de remédios e materiais básicos, como gases. Não entramos em greve só pelo salário e, sim, por melhores condições de trabalho. Não se pode sucatear a Saúde Primária, pois enche as UPAs e os hospitais”, conta. Ele critica o SISREG, que trava o processo, deixando o paciente aguardando. Esse é o mesmo pensamento de Aldecir Lima, moradora do Rubens Vaz. “A consulta para especialista demora até quatro meses. Muito tempo para atendimento, é preciso melhorar o sistema”, sugere. 

Um enfermeiro entrou em contato com o Maré de Notícias para pedir ajuda: “Estamos sem dinheiro para comer, estou chorando de tristeza com a falta de valorização do meu trabalho. O pagamento não chega. Estão acabando com a atenção básica, pois falta tudo. Já são quase três meses nessa situação, pedimos a força das associações de moradores e dos pacientes”, diz. Uma outra agente de saúde concorda que a situação está difícil e triste. “Os enfermeiros não têm dinheiro nem para pegar um ônibus e participar de manifestação. A clínica onde atuo está fazendo apenas vacinação, curativo e remédio injetável se o paciente trouxer”, desabafa.

A saída: paralisação 

A clínica da família, que atende a três favelas da Maré, fechou as portas por falta de combustível do gerador – Foto: Filipe Mendonça

A greve que deixou pacientes sem consultas teve como estopim a falta de pagamento. Para um funcionário da OS Viva Rio há duas questões importantes. “Primeiro, a questão jurídica, que é a falta de repasse. Segundo, sobre a parte humanitária, as pessoas que estão sem receber. O repasse dos recursos vem do município, a gente só faz a gestão. Um outro problema não divulgado são os fornecedores que não recebem há, pelo menos, seis meses. Tem Unidade que não tem sequer dipirona. Já nos hospitais, falta equipamento nas enfermarias”, afirma.

Carlos Vasconcelos é da direção do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, trabalhou na Clínica da Família Jeremias Moraes da Silva, na Nova Holanda, que se encontra fechada por falta de óleo diesel para o gerador de luz. Ele revela que, na cidade, há profissionais de Saúde passando fome. “Para ajudá-los, estamos fazendo arrecadação de alimento, o problema é que alguns não têm nem dinheiro da passagem para ir buscar a cesta”, conta.

São 22 mil pessoas que estão sem salários há quase três meses. “São boletos atrasados, despejos, dívida na Justiça e acúmulo de contas. Os profissionais que recebem menos é que estão em situação pior. Tem de haver mudança na administração. Acredito que, para reverter essa situação difícil, vai demorar um tempo”, diz. Carlos detalha que o modelo primário de Saúde já chegou a 70% de cobertura da população, mas que hoje foi reduzido a 50%.

“A Prefeitura esperava uma arrecadação que não veio, então gastou mais do que podia. Além disso, gastou com o que não era essencial. A verba destinada para a Saúde vem diminuindo a cada ano; em 2017 era de 25%, no ano passado caiu para 21% e, em 2019, não ultrapassou os 18%”, explica. Nesses três anos, a Prefeitura do Rio deixou de aplicar mais de dois bilhões na Saúde. “O correto era a Prefeitura fazer a gestão de toda a Saúde e não deixar nas mãos das OSs. Essa terceirização desmotiva o profissional, o trabalho de um médico virou um bico. Para dar certo o Programa Médico de Família é necessária uma confiança, que se conquista com o tempo”, conclui.

A Saúde enferma

A coordenação de Atenção Primária da Região da Leopoldina da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro emitiu Nota na qual informa que as unidades de Atenção Primária que atendem a Maré apresentam equipes de Estratégia de Saúde da Família formadas por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de Saúde. Que ao todo, são mais de 38 equipes da Saúde da Família. Completou que nestas unidades são oferecidas vacinas, consultas com o médico de Saúde da Família, de pré-natal, puericultura, atendimento bucal, atividades em grupos educativos, como o de gestantes, além do Programa Academia Carioca. Por fim, negou que haja falta generalizada de medicamentos e insumos nas unidades, apesar das evidências.

No início de dezembro, o Tribunal Regional do Trabalho bloqueou as contas da Prefeitura para garantir o pagamento dos profissionais da Saúde terceirizados.  Mas até o fechamento desta Edição, nenhum pagamento havia sido feito e a Clínica Jeremias Moraes da Silva, que atende à Nova Holanda, Rubens Vaz e Parque Maré estava fechada, após o dia 20 de dezembro, por falta de luz e de profissionais. A novela, que parece mais um filme de terror, ao que tudo indica, está longe de ter fim, e quem paga, literalmente, por tudo isso, é a população.

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