Sem condição não tem Graduação!

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Mareenses enfrentam dificuldades para estudar para vestibular

Maré de Notícias #115 – agosto de 2020

Flávia Veloso

Durante uma palestra on-line, um professor de Direito Constitucional contou da experiência que teve em sala de aula com os alunos e uma amiga professora uruguaia. Falando sobre acesso à Educação no Uruguai, a convidada causou surpresa aos alunos, ao dizer que fazer faculdade no seu país é gratuito e de acesso livre. Isso quer dizer que qualquer cidadão uruguaio que quiser se graduar, depois de terminado o Ensino Médio, pode se inscrever em uma das universidades públicas disponíveis no país e estudar.

A Constituição vigente na República Oriental do Uruguai assegura que toda a formação acadêmica, da infância à vida adulta, seja completamente acessível a todos e todas. Em teoria, a Constituição brasileira deveria funcionar da mesma maneira, já que todo cidadão tem direito à Educação e essa condição deve ser assegurada pelo Estado. Contudo, o que se vê no Brasil é um abismo que separa o ideal e da realidade.

Com um sistema que filtra o merecimento do estudante pela nota, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) é a maior porta de entrada para universidades públicas e privadas do País. Os milhões de inscritos, por ano, concorrem para milhares de vagas em cursos superiores, mas só garantem um lugar aqueles que mais se aproximam do ideal: quem tem boas condições para estudar.

Durante a pandemia da COVID-19, com as aulas presenciais suspensas do Ensino Infantil ao Superior, a maneira mais eficaz de transmitir conteúdo passou a ser on-line. Contudo, a falta de internet domiciliar como principal meio de estudar afastou ainda mais o sonho da universidade de quem mora na favela. Historicamente negligenciada por quem governa o País, a Educação de quem mora na favela não é prioridade de investimento, menos ainda em meio à pandemia.

Enfrentando barreiras em família          

A falta das aulas presenciais tem sido um desafio para Andreyna Rodrigues, 19 anos, moradora do Morro do Timbau, que tinha tudo planejado para concorrer a uma vaga na universidade: “Me planejei para estudar esse ano e passar no vestibular, mas veio a pandemia, então as aulas presenciais do pré-vestibular comunitário, que faço no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), pararam. As aulas foram retomadas virtualmente, mas é muito difícil se concentrar, porque ando muito ansiosa desde que o isolamento social começou. Minha internet é instável, mas ainda dá para assistir a algumas aulas, só que muita gente não tem nem internet”, conta a jovem sobre sua experiência de lidar com o desafio do vestibular durante o isolamento social.

Vivian Lee teve de adaptar o espaço de sua casa para conseguir estudar para o ENEM, que vai acontecer em 2021 – Foto: Douglas Lopes

Mãe de Andreyna, Vivian Lee, de 34 anos, também está inscrita no Exame. Ela tenta conciliar o estudo com seu papel de mãe, de não deixar o desânimo vencer a filha, que pretende cursar Direito ou Relações Internacionais. Vivian enfatiza o problema que tem para acessar os conteúdos virtuais: “A internet no Timbau é muito ruim. A gente já até tentou falar com a Oi sobre isso, mas parece que o sinal daqui é mais fraco que em outros lugares. Outra dificuldade é que não possuímos computador, temos de ver tudo por celular, mas dá para usar os materiais em PDF enviados por mensagem, que a gente pode imprimir e estudar.”

Maré sem sinal

A conexão ruim tem sido um dos maiores problemas das favelas, em especial a Maré, e atrasou os planos de um curso pré-vestibular comunitário inteiro. Foi o que aconteceu com a UniFavela. Nascido em 2019, na Vila do João, o curso aprovou todos os seus alunos em universidades no último ENEM e no vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Esse ano, o curso foi beneficiado pelo projeto 4G Para Estudar, que doou chips de celular pré-pagos a vestibulandos de periferias em todo o País. Ainda assim, o problema de sinal de celular na Maré não se resolve.

“Ficamos muito felizes de formar essa parceria, mas infelizmente o 4G na favela não funciona, independentemente da operadora. Cogitamos pagar planos de banda-larga para os alunos, mas as duas redes disponíveis – da própria favela e da Oi – são muito limitadas. Agora temos de encontrar outros meios”, explicou Laerte Breno, fundador da UniFavela, educador, pesquisador e estudante de Letras.

Um mapa desenvolvido pelo site e aplicativo nPerf mostra a qualidade de cobertura 3G, 4G e 5G em todo o País, e é possível visualizar a área da Maré. Identifica-se que as cinco operadoras mais usadas no Rio – Claro, Vivo, Tim, Oi e Nextel – quase não pegam ao longo das 16 favelas, destacando Claro e Vivo, que aparecem com uma cobertura mais moderada.

                Pré-vestibulares da Maré buscam soluções

O pré-vestibular comunitário Rede de Saberes, que funciona na Nova Holanda e na Vila dos Pinheiros, vinha oferecendo conteúdo por lives com estudantes e arquivos por redes sociais, desde o início do isolamento social. Entretanto, quase a metade dos matriculados não possui internet em casa. “Nós mantivemos as atividades, mas preocupados com os alunos que não têm internet, buscamos parcerias, até encontrar uma iniciativa nova, tocada por dois meninos, que é o ENEM do Bem. Eles fizeram uma ‘vaquinha’, elaboraram uma apostila sobre os conteúdos do Exame e doaram apostilas para todos os alunos que não estavam conseguindo acessar o conteúdo on-line. Os professores do pré-vestibular avaliaram e aprovaram o material, que já está sendo distribuído”, conta Luana da Silveira, coordenadora executiva do curso e formada em Serviço Social.

A preparação para o vestibular pode ser altamente estressante para algumas pessoas e as preocupações a mais, trazidas pelo desamparo frente ao novo coronavírus, se somam e potencializam os problemas psicológicos. “Pegar um caderno hoje, abrir e sentar numa mesa para estudar pode ser um processo muito doloroso, e isso também estava acontecendo com os professores. Então, fizemos um levantamento e conseguimos chamar uma equipe de psicólogos, que atendem os alunos e professores, e tem sido ótimo”, disse Laerte Breno.

Iniciativas têm desenvolvido apostilas para que alunos possam estudar – Foto: Douglas Lopes

Combate à desigualdade social

Moradora das Casinhas (Baixa do Sapateiro), Isabelle Reis, de 17 anos, mora com a mãe e o irmão pequeno, e são poucos os momentos de privacidade que ela tem ao longo do dia, para se concentrar em estudar para o ENEM e terminar o último ano do Ensino Médio, que cursa no Colégio Estadual Amaro Cavalcanti. Para a jovem, as condições para estudar sempre foram desfavoráveis, devido à falta de estrutura que não permite que Isabelle – e outros milhões de favelados e periféricos – se concentrem em aprender. “Se eu estivesse estudando sozinha, sem a ajuda de pré-vestibular, estaria completamente perdida. Também não consigo acompanhar direito a EAD do Colégio, e acabo com medo de repetir o ano, o que me desanima ainda mais para o ENEM, pois não tem sentido fazer o vestibular se eu não concluir o 3º ano”, desabafou a mareense.

A desigualdade social é a ferramenta que tenta incapacitar milhões de pessoas que buscam ingressar em uma faculdade. Ao manter o ENEM em uma data tão próxima (provas impressas nos dias 17 e 24 de janeiro; provas digitais em 31 de janeiro e 7 de fevereiro) no contexto de pandemia, o Estado demonstra não se importar com os projetos de vida dos cidadãos periféricos, contribuindo ainda mais para a desigualdade.

Citando o educador e filósofo pernambucano Paulo Freire, patrono da Educação brasileira, Laerte Breno comenta: “A educação serviu sempre para invisibilizar o negro, tanto excluindo pensadores negros quanto negando esse direito a alunos negros, pobres e favelados. O problema hoje não está na Educação, mas na desigualdade e na exclusão social. Só debater sobre educação não é suficiente. Paulo Freire dizia que a Educação sozinha não transforma a sociedade. Temos de discutir segurança pública, saneamento básico, saúde, também a educação… Tem de ser tudo isso”, conclui Laerte.

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