Sem direito ao luto

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A morte de alguém querido é sempre dolorosa, mas a forma como vivemos o luto pode aumentar ainda mais este sofrimento

Maré de Notícias #147 – abril de 2023

Por Andrezza Paulo e Lucas Feitoza

A morte chega para todos, mas a dor da perda é de quem fica e ainda precisa lidar não só com o luto como também com os procedimentos práticos que o acompanha. Muita gente não sabe o que fazer — e para quem vive nas favelas e periferias, ter o conhecimento nem sempre basta: o esforço para sepultar dignamente um ente querido é dobrado.

Foi com esse objetivo que a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) lançou em novembro de 2022 a cartilha Direito ao Luto: Guia do Sepultamento. O documento traz orientações práticas de como proceder quando é preciso tomar à frente da burocracia do luto.

Segundo o órgão, a publicação “reúne endereços, telefones e horários de funcionamento de órgãos públicos, concessionárias e cartórios para solicitação de certidão de óbito, remoção de corpo e enterro/cremação em 27 dos municípios mais populosos do Estado, incluindo a capital e a Região Metropolitana, além de outras regiões”.

De acordo com a cartilha, para obter uma certidão de óbito em caso de mortes naturais em casa, em via pública ou em hospitais é preciso que elas sejam atestadas pelo médico responsável pela vítima — geralmente, um profissional de uma unidade de atenção básica ou do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). 

Somente depois de expedido o  atestado de óbito é possível solicitar a remoção do corpo à Defesa Civil. Entretanto, na favela, muitas das orientações da cartilha não podem ser seguidas, o que causa ainda mais sofrimento à família.

Tainá Alvarenga é assistente social, coordenadora do projeto Maré de Direitos da Redes da Maré e presta assistência aos moradores dos territórios em situações de urgência. Ela conta que, em diversos casos, a equipe do SAMU não entra na Maré. Isso obriga as famílias a terem que carregar doentes, feridos e até mortos para hospitais e clínicas da família mais próximos. 

”Lembro um caso ocorrido em setembro de 2022, quando moradores da Nova Holanda entraram em contato com o Maré de Direitos pedindo orientação. Uma jovem de 20 anos havia morrido de causas naturais, em casa. A família ligou para o SAMU, mas a equipe se recusou a entrar no território sem o apoio da Polícia Militar”, conta. 

Diante do impasse, a própria equipe do SAMU orientou que a família aguardasse até a manhã seguinte para recorrer ao médico da clínica da família. Vizinhos, amigos e familiares se mobilizaram e conseguiram contratar uma assistência funerária, que retirou o corpo da jovem e o encaminhou para sepultamento. 

Sem perícia

A cartilha da DPRJ ainda orienta que “se a morte for por causa não natural, chama-se a Polícia Civil, que abrirá um registro para remover o corpo até o Instituto Médico-Legal (IML), onde será preenchida a Declaração de Óbito.” 

Segundo Tainá Alvarenga, “quando há vítimas fatais em operações policiais, a equipe do Maré de Direitos orienta os familiares para que façam o Registro de Ocorrência (RO), procedimento também indicado pela cartilha, para que a perícia seja realizada”. 

Quando a morte acontece em uma favela, raramente há perícia ou investigação. “A Polícia Civil se recusa a solicitar a perícia porque muitas vezes o corpo já foi retirado do local. Mas mesmo se a cena do crime tiver sido preservada, geralmente o que acontece é o contrário: as famílias acabam aguardando um tempo muito grande até o perito aparecer”, diz a assistente social.

Mortes não naturais

De acordo com o levantamento do 7° Boletim de Segurança Pública na Maré, das 27 mortes em operações policiais ocorridas em 2022, 24 tinham indícios de execução e em nenhuma delas foi feita a perícia dentro dos parâmetros exigidos. 

“Tudo começa com a negação do direito à vida dos moradores. Junto com isso, tem as normativas jurídicas, que por ser território de favela, não são cumpridas”, analisa Tainá.

O boletim, desenvolvido pelo Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, também traz um relato de desaparecimento temporário, que ocorre quando os feridos em ações policiais são removidos do local pela polícia, com o pretexto de prestar socorro.

Contudo, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 (a ADPF das Favelas) exige que as operações policiais disponibilizem unidades de saúde para socorro das vítimas, além de proibir que a polícia remova os feridos do local. 

Direito à sepultura

Outro ponto abordado pela cartilha é o serviço de sepultamento gratuito. Segundo o documento, o direito é concedido a pessoas de baixa renda. Para ser considerado hipossuficiente, quem solicita precisa se enquadrar nos critérios: ter renda mensal média de meio salário mínimo; renda total familiar de até três salários mínimos; ou estar situação de rua.

É preciso apresentar um comprovante de rendimento (contracheque, carteira de Trabalho e Previdência Social/CTPS ou declaração de próprio punho do empregador ou do sindicato profissional, devidamente subscrita), extrato previdenciário (CNIS) ou certidão de isenção para apresentar declaração de imposto de renda.

Tainá também lamenta que o sepultamento gratuito não seja informado nos hospitais: “Às vezes esta informação não é passada pelos profissionais, e ela deveria estar no primeiro contato que a família tem com o processo gerado pela morte.” 

Direitos do luto

O pesquisador e mobilizador da Redes da Maré Maurício Dutra destaca a importância da cartilha quando é preciso lidar com a dor: “O luto é um sentimento de perda gerado pela morte. Neste momento, há uma série de sentimentos provocados pela ausência. Logo, uma cartilha de luto ajuda na orientação de quem perdeu um ente de alguma forma e, sobretudo, não tem condições de arcar com os custos do funeral.” 

No entanto, ele explica que o processo deve estar de acordo com a realidade dos territórios de favela; segundo ele, os órgãos públicos precisam estar atentos às necessidades dos moradores.

O Maré de Notícias tentou contato com a Polícia Civil questionando como é realizado o procedimento de remoção de corpos nas favelas, principalmente em dias de operações policiais, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria. 

A Secretaria Estadual de Saúde (SES), órgão responsável pelo SAMU, informou em nota que “o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) é responsável pelo atendimento emergencial para salvamento de vidas e não realiza remoção de corpos. Apesar disso, o SAMU também pode ser acionado para atestar óbito por causa natural, mas não realiza a remoção.” 

A secretaria não explicou o motivo da demora do serviço em atender os pacientes da Maré e a orientação dada à família para aguardar pelo médico da clínica da família na manhã seguinte.

O que fazer?

Em casos de não cumprimento das medidas indicadas na cartilha, a recomendação da própria DPRF é abrir uma ocorrência por meio da Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro através do telefone 0800 282 2279 (de segunda a sexta, das 8h às 18h) ou presencialmente, à Avenida Marechal Câmara, 314 – Centro (de segunda a sexta, das 10h às 17h). A cartilha Direito ao Luto: Guia do Sepultamento está disponível online e pode ser lida e baixada no site da Defensoria Pública RJ: https://defensoria.rj.def.br/

Cartilha orienta sobre sepultamento em várias situações

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