Introduzindo uma série de reportagens sobre a primeira infância, um período que vai de zero aos seis anos de idade, o Maré de Notícias explica por que esta fase é tão importante para o presente e o futuro das crianças
Flávia Veloso
Camile Lorrane tem sete anos e mora na comunidade Nova Maré. Aos dois anos, a menina começou a cantar no coral da Igreja que a família frequenta e, há dois, faz aulas de capoeira no projeto “Nenhum a Menos”, na Lona Cultural Herbert Vianna. A família de Camile a incentiva desde pequena a praticar atividades fora da escola e de casa, pois acha crucial para o seu desenvolvimento.
A Primeira Infância compreende o período que vai até os seis anos de idade e é uma faixa etária de extrema importância, tanto de ser vivida pela criança quanto de ser observada e apoiada pela família e demais pessoas que a cercam. Isto porque, assim que nascem, os tecidos neuromusculares da criança entram em um estado de crescimento que proporciona altíssimo potencial de absorção de informações, como uma superesponja.
Desenvolvimento baseado em trocas e amor
Que as crianças são o futuro, disso não há dúvidas. Entretanto, é necessário que se olhe não só para o seu amanhã, mas também para o hoje. “A criança, nesse período, pode absorver as coisas de maneira mais fácil, mas existem cuidados simples, o que chamam de ‘abordagem responsiva’, que é interagir com a criança: conversar, brincar, trocar olhares. Ter uma relação de troca com a criança. Nossa sociedade é centrada no adulto, então os pequenos acabam ficando em segundo plano e a potência dessa faixa etária, que é essencial ser trabalhada para a vida adulta, não é desenvolvida”, explica Gisele Ribeiro Martins, assistente social, formada em liderança executiva em Desenvolvimento da Primeira Infância pela Universidade de Harvard.
Como 90% das conexões cerebrais são feitas até os seis anos de idade, negligenciar a criança é perigoso para o seu desenvolvimento, uma vez que as interações sociais são cruciais para sua atividade cerebral. Além do mais, as interações afetivas transmitem segurança emocional, o que proporciona vínculos mais fortes entre quem está cuidando e quem está sendo cuidado. “Ela é uma menina muito amorosa, principalmente comigo. Penteia meu cabelo, faz minhas unhas e está sempre fazendo carinho”, conta Wanir de Campos, avó de Camile. Ela afirma que acha importante que a neta tenha uma boa relação familiar e seja participativa. Das atividades que a menina pratica, as favoritas são capoeira, pique-esconde e andar de bicicleta, além de gostar de sair com os familiares.
Maria Helena Pucu, pediatra há 42 anos e médica aposentada pelo Hospital Municipal Souza Aguiar, diz que a melhor forma de desenvolver, no contexto do lar, o potencial que se tem na primeira infância vem desde a amamentação, promovendo a saúde da criança assim como o amparo à mãe, atrelado a um ambiente seguro e tranquilo para toda a família e muito amor no âmbito familiar. “Se ela é amparada, se respeita e cuida da saúde, os filhos seguirão o mesmo caminho”, completa Maria Helena.
Iniciativas governamentais e privadas
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dispõe de alguns pontos que abordam especificamente os cuidados com a primeira infância, como a atenção às mães em situação de encarceramento e a seus filhos, formação de profissionais que lidam com esse nicho e medidas que atendam a crianças em situação de rua e de violência.
Um dos pontos que o ECA também aborda diz respeito ao Plano Nacional pela Primeira Infância (PNPI), que propõe ações com metas até 2022, para a promoção e realização dos direitos das crianças. O documento, criado pela Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) – composta por organizações da sociedade civil, órgãos governamentais e do setor privado de todo o Brasil – apresenta propostas com base no preceito de que um futuro sólido se constrói no presente, desde o pré-natal da mãe até depois de seu nascimento, com políticas de assistência social, educação, saúde, segurança, lazer, meio ambiente, respeito às etnias e combate à violência, o consumismo desenfreado e o excesso de tempo em frente às telas de aparelhos eletrônicos.
Primeira infância na periferia
Wanir diz que tem medo de levar a neta Camile à rua, por conta da falta de segurança na comunidade, gerada pelos frequentes confrontos armados e que, se não fossem as atividades oferecidas em alguns espaços, como as que a menina frequenta na Lona da Maré, ela ficaria em casa durante todo o dia.
Desafios também são enfrentados nas áreas de saúde e educação. Pela primeira vez desde a década de 1980, o Ministério da Saúde apontou o aumento da mortalidade infantil em seu último registro, referente aos anos de 2015-2016. Já o módulo de educação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua) 2018 – o mais recente – mostrou que um terço da faixa etária que corresponde à primeiríssima infância – faixa etária entre zero e três anos – está fora das creches. Este dado preocupa, pois, de acordo com o Plano Nacional de Educação (PNE), que vai de 2014 a 2024, a meta é de que metade das crianças de zero a três anos esteja nas creches até a conclusão do PNE.
Enquanto a porcentagem de crianças de zero a nove anos corresponde a 15,6% (Censo Maré, 2019) de toda a população residente nas 16 favelas que compõem a Maré, o número em escala da cidade do Rio caiu para 12% (IBGE, 2010). De acordo com o Censo Maré, isso pode ser um reflexo de condições mais acentuadas de pobreza e reafirma uma característica de territórios periféricos. Contudo, além do viés socioeconômico, a forte presença infantil na favela torna o espaço mais vívido e criativo, uma vez que a convivência, mobilidade e brincadeiras das crianças nas localidades são intensas.
Neste sentido, as políticas e planos da gestão pública e das organizações para o período infantil devem ser melhor observados e tratados, especialmente quando se fala de favela, mas também é necessário usar a potência e o valor das crianças para a construção de um futuro melhor para elas.