Shows LGBTQIAP+ dos anos 80 são homenageados nas ruas da Nova Holanda

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Coletivo Entidade Maré reverência eventos emblemáticos da história LGBTQIAP+ do território

A história de um legado que se perpetua por mais de 20 anos está ganhando novos rostos, performances, histórias e está inspirando novas pessoas, mas não sem a construção coletiva de quem começou ainda nas décadas de 80 e 90. Estamos falando dos shows LGBTQIAP+ que aconteciam na Maré e que estão sendo homenageados pelo elenco do filme Noite das Estrelas durante uma ocupação que acontece todos os domingos desde o dia 4/6 e vai até 9 de julho pelas ruas da Maré. 

Além do espetáculo pelas ruas do Conjunto de Favelas da Maré que tem como principal inspiração a memória e história cultural LGBTQIAP+ do território, outras duas atividades compõe a ocupação: a exibição do filme Noite das Estrelas e a exposição itinerante de fotografias que representam o afeto e amor da população LGBTQIAP+. Ao final de cada show aos domingos, a exposição ficará aberta à visitação no Gato de Bonsucesso. Com o encerramento da temporada as artes ficarão expostas na Lona Cultural Hebert Vianna. O projeto do grupo Entidade Maré é fomentado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de Cultura, através do FOCA 2023 – Programa de Fomento Carioca.

Reafirmando o papel histórico da ação, o diretor do filme Paulo Victor, 28 anos, conta como foi a construção das atividades. 

“O processo de produção do espetáculo tem sido muito gostoso. Assim… acho que a gente tem ido muito nessa certeza que esse espetáculo é uma homenagem a esse movimento cultural, LGBT que há mais de 20 anos subverte uma lógica também da Maré, sobre as narrativas que são colocadas sobre esse território, né? Que são narrativas sempre de violência. A Noite das Estrelas, ela diz que a Maré é cultural, a Maré, ela é viva. E esse movimento é vivo, né?”

Foto: Arthur Viana | Preta QueenB Rull em um dos momentos de performance do Noite das Estrelas

Ancestralidade, presente!

De acordo com o diretor, todo o trabalho foi pensado a partir de uma perspectiva filosófica africana de cosmovisão. Mas do que se trata a cosmovisão? O que ela tem a ver com as ações do grupo? Você leitor, deve se perguntar e nós do Maré de Notícias fomos atrás para explicar essa relação. Segundo o artigo “Filosofia Africana: um estudo sobre a conexão entre ética e estética”, da filósofa Naiara Paula “nessa filosofia o ser humano de fato humano, só se dá na relação com o outro, não há individualidade isolada. Este é um compromisso ético-estético com o outro seja quem for o outro”. 

O fundamento se mostra a partir da presença de mulheres transsexuais como Marcela Soares (mais conhecida como Pantera) e Erika Ravache (de nome artístico Madame), que além de integrarem os icônicos shows dos anos 80 e 90, dos quais o elenco do Noite das Estrelas têm se inspirado, também foram fonte de pesquisa. Pantera, com seu acervo de fotos da época e Madame com uma memória rica de suas vivências, receberam Paulo Victor e outras integrantes do coletivo para conversar sobre a herança cultural que vive em corpos como os deles. 

“A gente tem trazido a noite das estrelas nessa responsabilidade de um movimento que é ancestral que foi construído pelas nossas ancestrais negras, LGBTs, que desde a década de 80 e 90 estão ressignificando esse território sim. Então é para além de algo que é material, sabe? É um movimento que existe dentro das culturas pretas. E pra gente que é preto, isso é forte, né? Isso é carne.”

Paulo Victor,diretor.

O corpo artístico do espetáculo é composto por multiartistas, que por transitarem nas diversas formas de fazer arte, assim se definem. Entre elas estão Milu Almeida e Dominyck Marcelina.

Representando todo o elenco que participa do espetáculo, ambas trazem em sua fala a força da ancestralidade que permitiram suas trajetórias até esse momento de homenagem.

“Pensar que no movimento da Maré na década de 80 existia esses movimentos que a gente se identifica hoje além de uma representação é uma identificação. Quando eu chego enquanto artista eu só chego por causa das travestis que vieram antes. O que seria de nós se elas não tivessem construído isso? Qual seria nossa relação de se identificar com esse corpo LGBTQIA+ artista se não fossem elas performando as drags? É muito importante pensar isso até porque era um movimento que representava a favela, a favela parava. É mais que um retorno pra mim”, afirma Milu que também performa a DragQueen Charlotte. 

Dominyck Marcelina, de 28 anos, é uma das atrizes que compõem o elenco. Inserida na arte a partir de três amigos, Dominyck, conhecida também pelo nome artístico Vera, relembra das épocas que frequentava os shows.

“Cheguei a pegar alguns shows porque eu ia muito nova com as minha irmãs, eu era doida para participar. Só que eu não podia porque eu já sabia que eu era bicha, mas elas não, mas o pouco que eu via pra mim era muito babado. Está sabendo que a gente vai está voltando com essa revolução que já existia nas décadas de 80 e 90 é ótimo, né? Saber que a gente tá movendo isso”, conta. 

Valorizando com reconhecimento

Outra visão que o coletivo Entidade Maré se debruça é de reafirmar que as ações promovidas com o elenco do curta não são um resgate e sim uma homenagem. Isso porque, neste contexto, o resgate se associa a algo que não existe mais, perspectiva que todos artistas discordam. 

“A cultura LGBTQIAP+ encontrava nas ruas a vingança e a implementação de novos  sentidos de uma reexistência transgressora para a cultura carioca. Por isso, não se pode resgatar esta memória pois ela só se faz em bonde com a outra além disso não se pode resgatar o que está vivo. A Noite das Estrelas estava e sempre esteve viva em minha memória e na de quem viu o evento. Monique Layson e Pantera são artistas que estão na ativa, com performances que nasceram desses shows.”, afirma Wallace Lino, também diretor do espetáculo e cofundador do coletivo.

Dessa forma, mais de dez artistas que participaram e construíram a memória dos espetáculos há 20 anos, estarão presentes não apenas como público, mas também como integrantes dos shows, assim como antes. Entre elas, Marcela Soares, a Pantera. A artista que está marcando presença em todos os domingos de shows do Noite das Estrelas, contou empolgada para o Maré de Notícias como se sente relembrando os velhos tempos. “Um pouquinho nervosa, mas vamos lá né? Vamos botar pra quebrar e vamos fazer tudo de novo, renascer Noite das Estrelas e mostrar esse show lindo e maravilhoso para a comunidade”. 

Questionada se um dia ela imaginou que seria inspiração para a nova geração LGBTQIAP+ da Maré, Pantera parece ainda não acreditar que ocupa esse lugar. Com uma gargalhada envergonhada, respondeu apenas que se lembrava de algumas crianças que acompanhavam os shows na época e que tempos depois passaram a fazer o mesmo junto com ela.

Foto do arquivo Entidade Maré. Pantera performando em sua festa de aniversário.

O Noite das Estrelas – que é dirigido por Paulo Victor e Wallace Lino com o elenco composto por Jaqueline Andrade, Livia Laso, Dominyck Marcelina, Milu Almeida, Preta Queenb Rull, Marcela Soares, Lua Brainer, Codazzi Idd, Luiz Otavio, Arthur Gabriel – acontece todos os domingos na Passarela 9, na Avenida Brasil, às 15h30. Para entrar na Maré e prestigiar um espetáculo com muito brilho, close, ancestralidade e memória, as ruas se tornam palcos e a arte se apresenta como um manifesto poderoso, desafiando estereótipos ecoando a mensagem de que todos corpos merecem ser vistos, ouvidos, amados e respeitados.

Para ficar por dentro do cronograma de toda ocupação basta acessar @EntidadeMare no Instagram.

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