Por dentro da nova rotina das mães da Maré com o coronavírus
Jéssica Pires
A Maré tem muito a agradecer às mulheres. Dos seus 140 mil moradores, 51% são mulheres, de acordo com o Censo Maré de 2014. E 76,4% das mulheres entre 30 e 34 anos daqui são mães. Praticamente a metade das com 15 anos ou mais é responsável por domicílios na Maré. São as mães solo ou mães que, mesmo tendo um companheiro, assumem quase a totalidade do cuidado com os filhos. E durante a pandemia, muitas dessas mulheres têm dado conta 24 horas por dia deste cuidado.
Por conta das determinações de distanciamento social, as crianças não estão frequentando creches, escolas e outras atividades. A recomendação é ficar em casa. É preciso criar, então, alternativas para suprir as demandas dos filhos e ainda conciliar com o trabalho em casa.
Como as mães mareenses estão lidando com isso?
Ouvimos relatos de mulheres que estão aprendendo também a ser educadoras, recreadoras e ainda dar conta de si. Uma luta. A Cristina mora no Sem Terra, Parque União, e é mãe de Letícia, de 1 ano e 9 meses, e Clara, de 16 anos. Ela nos contou que com a Clara é mais simples: assistir uma série ou um filme e a conversa entre as duas supre as demandas de distração para a adolescente. O desafio é manter a pequena Letícia entretida.
Para Raiane, moradora do Rubens Vaz, que tem dois filhos pequenos – Ravi, de 3 anos e Gabriel, de 1 ano e 11 meses -, o difícil é não ter acesso ao lazer para as crianças. Afinal, nem contato com parentes eles estão tendo. A Karla – mãe do Pedro, de 4 anos – abriu o jogo: ela não gosta de brincar e terceirizava essa necessidade com crianças vizinhas. Seu filho sente muita falta da rua e da bagunça que eles faziam quando Karla convocava os amiguinhos para a casa deles na Nova Holanda. Todas elas já estavam sem trabalhar antes da pandemia e o principal desafio é organizar a rotina dos filhos, da casa e suas demandas pessoais.
Mas e quem ainda está trabalhando? A Alessandra é mãe de seis – Sara (20), Israel (18), Ester (16), Alexandra (11) Mateus (10) e Talita (6) – e ainda tem trabalhado em dias alternados. Ela disse que tem se desdobrado e contado com o apoio dos filhos mais velhos para apoiar no cuidado com os mais novos. Os gastos com as crianças em casa também aumentaram muito. Isso porque além dos filhos, ela acolheu quatro sobrinhas, já que a irmã está internada com coronavírus. Esse coração grande da Alessandra é morador da Nova Maré, a favela que tem mais crianças na região. Favela é acolhimento, desde sempre.
“Essas chefes de famílias estão pensando em como vão alimentar essas famílias e essas crianças. Essa ideia de possibilitar, orientar, provocar e motivar uma condição de iniciar um processo de brincadeiras é muito difícil”, diz Carlos Marra, educador, produtor cultural e conselheiro tutelar. É importante lembrar que, apesar da recomendação de distanciamento social ser universal, as condições para colocá-la em prática não são. Precisamos reforçar a necessidade da elaboração de políticas públicas para que as famílias e mães da Maré tenham acesso a saneamento básico, água e renda.
Mães ainda mais especiais:
A quebra na rotina das mães de crianças especiais tem impactos ainda maiores. É o caso da Juliana, moradora do Rubens Vaz. A Ju tem 23 anos e o Davi, 4. Ele tem transtorno do espectro autista (TEA) e uma síndrome genética rara. Para ela, o maior desafio é a interrupção das terapias de reabilitação que fazem parte do tratamento do filho.
A Alusca contou que os cuidados com a higiene e a atenção com o filho redobraram por conta da pandemia. Pedro, de 10 anos, tem paralisia cerebral. “Já não bastava conviver com a patologia da criança. Hoje em dia, o nosso estado emocional fica abalado e a gente fica muito insegura”. Ela tem tentado realizar as atividades enviadas pelos profissionais que o acompanham, como fonoaudiologia, fisioterapia e psicopedagogia. Mas, segundo ela, o ambiente de casa acaba deixando a criança mais dispersa, o que não favorece a realização das atividades. “É notória a inquietação do meu filho”, comentou.
A Juliana e a Alusca fazem parte do “Especiais da Maré”, um grupo de moradoras e moradores mães e familiares de pessoas com necessidades especiais. Dos 140 mil moradores da Maré, mais de 47 mil têm algum transtorno psíquico, cognitivo ou deficiência física.
Home Office (para quem pode)
Com o distanciamento social, surge a possibilidade de trabalhar em casa. Mesmo que isso seja visto como um privilégio, ele não atinge boa parte das mães da Maré, já que o cenário de lidar com trabalho, cuidados com os filhos e a casa também é complexo. E pode gerar ansiedade e estresse. Para Anna Maria Chiesa, professora da Escola de Enfermagem da USP e consultora da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, não dá para pensar que, com tantas novidades, tudo vai acontecer tranquilamente e vai ser possível produzir o mesmo trabalho que se produzia antes. Além disso, ela pontua sobre seguir com o aprendizado das crianças como se nada tivesse acontecendo: “Omitir a dificuldade de trazer tudo para dentro de casa e sobrecarregar as relações é um elemento que tem que ser considerado”. Então, a dica é “respira e não pira!”
Falando em dicas… (especial para as mamães!)
Diálogo e equilíbrio são pontos chave para a saúde das relações nesse momento. Tanto entre mães e filhos quanto nas relações de trabalho. Para facilitar esse processo, a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal criou o “Nenê do Zap”. A iniciativa é “um incentivador de conversas e interações entre pais, mães e familiares de cuidadores e crianças até os seis anos de idade”, de acordo com Sarah Maia, responsável pelo projeto. Toda semana, ele manda dicas e informações via WhatsApp sobre cuidados, conversas e brincadeiras que podem ser feitas no dia a dia da criança. E durante a pandemia, o conteúdo tem sido especial sobre o coronavírus: o que fazer com as crianças em casa, cuidados com a higiene, como explicar sobre o coronavírus e outras dicas, que estão disponíveis no site do projeto. Veja algumas:
· Não tente dar conta de tudo! Liste o que é mais importante no dia para não se perder;
· Tenha um tempo para você! Seja para falar com a família virtualmente, assistir TV ou descansar. Pode ser depois que as crianças dormirem ou enquanto você reveza os cuidados com outro adulto. Mas pare e respire;
· Peça ajuda! Aos filhos maiorzinhos e a quem mais morar na casa.
E depois da pandemia?
As mães e as pessoas com as quais conversamos para construir esse Por Dentro da Maré responderam ao perguntarmos sobre o que elas esperam que fique desse momento que vivemos. A palavra que fica é solidariedade. Foi com a expectativa de que a onda de apoio que se formou durante a pandemia permaneça. Acompanhada da solidariedade, as mães da Maré também esperam que a rede de afeto e união presentes na Maré e fora se fortifique.