Maré de Notícias #90 – 03 de julho de 2018
A força do Nordestino retratada nos muros
Maria Morganti
As paredes e muros das ruas de Ramos, Olaria, Bonsucesso, Penha e Complexo do Alemão estão se transformando em telas de pinturas, nas quais o Nordeste brasileiro se impõe pelo traço do artista Wallace Marques Riscado Ramos, o Pato. É difícil passar por uma das pinturas sem parar para olhar com mais calma, ficar abobalhado e admirar a força que tem o traço do jovem de 24 anos. “Ele desenha bem”, disse uma criança que posou para ser fotografada pelo pai, ao lado de Pato, em frente a um muro em que ele estava pintando o retrato de um senhor tocando gaita, numa terça-feira, na Rua Emílio Zaluar, em Ramos.
Super–homens e Supermulheres
Olhando o telefone de onde copia a foto que vai reproduzir, ele diz: “eu pinto sobre o Nordeste. Tenho vários objetivos, mas eu acho que o maior deles é ser porta-voz de quem nunca foi ouvido. Pessoas que são gigantes, têm muita força, carregam uma história muito grande mesmo. Carregaram muita coisa nas costas e nunca tiveram oportunidade de falar ou, quando tiveram, foram ofuscadas. A minha intenção é ser porta-voz disso. Eu acho que muitas pessoas são ofuscadas por tudo o que acontece, e acabam passando despercebidas aos olhos de muitos”.
Enquanto pinta, fala sobre o que pensa de seus personagems: “tem de ser uma supermulher, um super-homem mesmo para viver o que eles vivem. Não só eles. Eu resolvi levantar essa bandeira e falar do Nordeste. Mas não é só eles que passam isso. Certo que eles passam uma dificuldade tremenda, mas aqui mesmo dentro das favelas tem um monte de gente que passa uns perrengues sinistros, mas eu resolvi levantar essa bandeira e falar do Nordeste. Como tudo, inspiração, imagina?”
De repente, ele descansa o rolinho de pintura para falar, olhando para a repórter.
“Você não ter nada, não comer há vários dias, sem água, viver numa seca tremenda de não ter nada, e disso tudo tu ainda conseguir tirar um sorriso do rosto, tu conseguir viver ainda, é muito forte, muito lindo”.
A tarde segue e o trabalho também. Pato molha o rolo na bandeja de tinta, e volta à parede. “Não é a situação, mas a força deles. Eu não conheço outro povo assim. Eu precisava falar disso. É de onde vem a inspiração de pintar e falar do Nordeste. O povo é muito forte”.
Autodidata
Sua técnica é muito particular. De vez em quando, esfrega a mão na pintura para “não ficar tão perfeito”. E continua: “eu tento desconstruir algumas coisas, mas para desconstruir você tem de saber construir. Aí eu fui vendo para onde a minha pintura ia se inclinando, naturalmente. Eu comecei a pintar assim, perfeito, o máximo que eu conseguia, e depois, natural meu, comecei ir “cagando” mais. Na real, eu acho até que eu tento correr do perfeito. Tento fazer expressionismo, um realismo, mas não é aquela parada perfeitinha”.
Pato nasceu e foi criado na região limítrofe entre Ramos e Bonsucesso. Pintando nos muros há cinco anos, conta que nunca fez nenhum curso de pintura e na família não tem ninguém que pinte profissionalmente. Até o dia da entrevista, nunca tinha ido em nenhum Estado da região que é tema da sua arte, mas estava com viagem marcada para pintar em Canudos, no Sertão da Bahia, a convite do presidente do Projeto Canudos, do qual faz parte.
Ele diz também que só conhecia o Nordeste por fotos e que começou a pesquisar e ouvir as histórias dos nordestinos que conhecia. “Eu vejo algo que fale muito com eles e com todos, algo que é bem-característico. E também ouvindo pessoas que estão aqui. Muitos nordestinos que estão aqui tocam gaita. Meu vizinho mesmo. Essa pintura aqui me lembra muito um vizinho meu que faleceu, que era o Seu Brás”.
Enquanto trabalha, é constantemente interrompido pelas pessoas que não o param de elogiar. “É você que faz essa pintura bonita aí?”, indaga um senhor que pede o contato do artista.
“Eu olhei ao redor e vi que era muito importante falar disso. Quando eu me liguei, caramba, cara. Por que eu não tô falando disso já há muito tempo?Pô, acho que eu tô viajando aqui, foi o momento em que comecei a falar sobre o Nordeste. Isso mexeu muito comigo. O sentimento é o mesmo, desde quando eu comecei a fazer o primeiro. Chegou o momento que isso precisava ser falado”.
Pintor das ruas
Com jeito de menino e algumas tatuagens pelo corpo, como a data de nascimento em números romanos, e um fat cap, instrumento usado para fazer grafite, Pato está
se preparando para ingressar na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele relembra que começou a rabiscar com mais ou menos 10 anos de idade, quando pedia para a mãe comprar cadernos. Ao receber mais um aceno simpático de transeunte, lembra que nem sempre foi assim: “uma vez eu pintando, parou um taxista e ele queria me bater, ameaçou pegar uma barra de ferro na mala do carro. Disse que eu estava esculachando a cidade. Eu fiquei meio sem reação, comecei a recolher as tintas rápido pra ir embora, porque ele estava muito nervoso. Eu tento levar a pessoa com clareza, com calma. Pintar na rua tem muito disso. Tem de lidar com um monte de pessoas ali o tempo todo, várias pessoas com opiniões diferentes da sua. Tem pessoas que respeitam a opinião, que não tem a mesma que você, mas respeita, e tem outras que são totalmente explosivas, fazer o quê?”
Chamado “mais de vagabundo que de doido” na rua, isso nunca foi motivo para desmotivá-lo Ele conta: “foram vários momentos que eu pensei em desistir, cara. É muito complicado. Até mesmo por estar desanimado com as coisas, de às vezes faltar grana. Porque eu bato nessa tecla, eu não quero parar de falar disso, e às vezes a gente precisa de grana, porque eu tenho de pagar aluguel, tu ainda precisa de dinheiro pra comprar tinta, pra poder pintar na rua, é difícil. Tem hora que tu chega ali no momento que, pô, preciso fazer alguma coisa, sei lá, acho que eu vou parar de pintar. Mas o que mais me impulsiona a pintar são eles”, diz, olhando para o retrato ainda em construção e continua sua arte
Viver de arte
“Parece que te dá um gás. Quando eu pensava em desistir, eu falava, pô, não vou parar, não vou parar e continuava pintando, mas eu pensei várias vezes”. Estimulado pela esposa, Thaíza Pereira, Pato já serviu o Exército e chegou a trabalhar em uma loja de tintas, “porque tinha desconto para comprá-las”, mas hoje vive da arte. Ouvinte de cantores como Gilberto Gil, Criolo e Emicida, e inspirado por outros artistas suburbanos, o jovem tem como sonho o “de pintar e viver com o que eu faço. De poder pintar em outros lugares, de poder passar a mensagem que eu quero passar, assim, pra todo mundo, em vários lugares. Onde a arte for me levando, eu vou, sem fronteiras”.
Na lista de planos, uma série de pinturas sobre o Programa Bolsa Família. “Tem um monte de gente que não concorda com isso e acha que tem de acabar. Eu já acho totalmente diferente, acho que tem de continuar mesmo, aquilo ali tirou muita gente da miséria. E ajuda muita gente, acho que a pessoa que não passou fome, não passou sede, o chinelo dela não foi uma garrafa PET, o cara que não passou nada disso, acho que ele tem de ficar calado, não tem de opinar sobre nada disso não. E a gente vê muita gente aí de um nível extremo de riqueza, o cara super playboy e dando opinião sobre isso. Achando que tem de acabar, que isso alimenta vagabundo, que isso incentiva os outros a não fazer as coisas. Acho que ele tem de ficar calado, está perdendo tempo falando besteira”.