Um Carnaval embranquecido?

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A maior festa popular brasileira termina com questionamentos no Grupo Especial sobre jurados

Por Helio Euclides

O Carnaval de 2023 acabou, mas uma polêmica ficou. Quem desfilou no Grupo Especial do Carnaval do Rio de Janeiro, no Sambódromo da Marquês de Sapucaí e olhou para as cabines de apuração teve uma percepção, todos os 36 jurados eram brancos. O tema teve grande repercussão nas redes sociais, com críticas pela falta de representatividade, para avaliar uma cultura preta e onde 56% da população brasileira se auto declara negros. Em nota encaminhada à Agência Brasil, a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio (Liesa) disse que se orgulha de “ter no júri oficial profissionais experientes e talentosos de variadas áreas de atuação.” 

Este tema foi discutido no Maré de Notícias em 2020. Para falar sobre o aprofundamento histórico do Carnaval, o contexto de desigualdade e embranquecimento do carnaval, o Maré de Notícias ouviu Vicente Magno Cardoso, jornalista e doutorando em Antropologia. 

Maré de Notícias: Como foi o início do Carnaval?

Vicente Magno: “O Carnaval é uma festa que chegou ao Brasil pelos colonizadores, o tal entrudo. Só que era uma festa suja nas ruas, a brincadeira era se lambuzar e lambuzar todo mundo. Dentro das casas das pessoas com dinheiro tinha outra, o entrudo doméstico, que usava os limões de cheiro. Mas voltando para a rua aconteceu outra influência de gente branca e rica, que trouxe referência de carnavais mascarados e elegantes de Veneza, na Itália, e de Nice, na França. O Carnaval de Veneza ainda é conhecido pelas máscaras.”

MN: Ocorreu influência da população negra?

V.M: Quiseram trazer aquela referência para nos ‘civilizar’, nos ensinar o que era uma maneira ordenada de brincar. Mas aí, os populares vendo a brincadeira dos mais ricos foram fazer a sua. Imitando um pouco, tomando como referência. Usando os ritmos da época. Numa cidade com a população negra, em termos relativos, maior do que é hoje, podemos imaginar que a partir daí o Carnaval passou a ser predominantemente negro. Hilário Jovino é um personagem importante, um homem negro, pernambucano e morador do Morro da Conceição, que tem a Pedra do Sal como uma de suas subidas, talvez a mais famosa, criou o primeiro ‘rancho’, uma organização carnavalesca ainda na segunda metade do século XIX. Ele ajudou a organizar outras instituições voltadas para Carnaval e onde os negros mostravam seu conhecimento, sua ancestralidade pelas ruas daquele antigo Rio de Janeiro.

MN: Esse foi o primeiro passo para as escolas de samba?

V.M: Décadas depois e já no século seguinte, nasceram as escolas de samba. Principalmente compostas por negros, o que perdurou da década de 1920 até a década de 1960, quando houve uma, digamos, “invasão da classe média”. É nesse período também que se começou a notar com maior visibilidade a existência e até a importância das escolas de samba. Conforme elas foram ganhando mais espaço, mais visibilidade, foram ganhando mais recursos e crescendo. Era algo que também interessava às escolas. Com o preço de diminuir sua representatividade.

MN: Como está desenhado o carnaval das escolas de samba?

V.M: Hoje, a maioria dos presidentes das agremiações são homens brancos. Mas existem segmentos onde o negro é o protagonista, principalmente no tocar, as baterias e o dançar, como na ala de passistas. E como virou um grande espetáculo, optando-se por gerar dinheiro em torno disso, naquela movimentação criada lá atrás, optou-se também por ser consumido nos desfiles por quem tinha mais recursos e é fácil entender daí porque tem muito de uma classe média branca que vem do próprio Rio, de outras cidades e estados e até de outros países.

MN: Qual o momento dos negros no carnaval?

V.M: As escolas sempre tiveram a negritude como marca. São corpos negros que se referem ao que sabem saber. E há poucos anos há uma onda, excelente, diga-se de passagem, de valorizar essa mesma negritude. Indo além da religiosidade, que está sempre presente. Mas afirmando o protagonismo de pessoas negras na história, na cultura, no Brasil. Não acontece só hoje, mas vemos esses enredos em maior concentração hoje. Vimos, há um pouco mais de tempo, o investimento de muitas escolas em ampliar suas alas de comunidade. Isso revalorizou pessoas que fazem parte do cotidiano das escolas, além daquelas que só chegam para comprar fantasias e estão desconectadas da vida da agremiação.

MN: Qual a diferença dos grandes espetáculos e o da periferia?

V.M: Houve um embranquecimento, mas há uma disputa silenciosa pelos espaços dentro das escolas. Brancos com mais dinheiro, geralmente comerciantes e empresários, ainda se sobressaem. Até quando não sei. As pequenas escolas não são tão ocupadas por pessoas de outras comunidades. Geralmente quem faz o cotidiano delas é quem desfila nelas. Dão menos visibilidade, estão mais preocupadas em existir do que ter pessoas de fora para ganhar espaço. Esse embranquecimento não chega tanto a elas.

MN: Como vê a polêmica dos jurados brancos?

V.M: Começou-se a falar sobre pessoas brancas fazendo julgamento. Isso existe há muito tempo, há a questão de serem pessoas ligadas a uma “cultura superior” ou “clássica” que daria um tipo de carimbo naquelas manifestações de pessoas negras, dos subúrbios e favelas como algo que tivesse valor cultural. Eu acredito que já é hora de olhar para isso criticamente. Há pessoas brancas que conhecem de samba e de escolas de samba, mas pode-se e deve-se abrir espaço para pessoas negras que têm algum tipo de representação.

MN: Isso também pode ocorrer no carnaval de rua?

V.M: Sobre blocos de rua… existe uma diversidade muito grande e o lugar e o público que os frequenta vai ser determinante. Há um Carnaval de rua nos subúrbios da cidade. E há um Carnaval de rua retomado nas partes mais ricas e os atores principais dessa festa são jovens universitários. Pessoas brancas levam uma maneira diferente da que existia antes para brincar Carnaval. É um novo modelo se comparado com o que existia antes se pensarmos em música ou em fantasias, por exemplo. Porém, também há um embranquecimento aí. Eu, por exemplo, num desses blocos, fui identificado seis vezes numa mesma manhã como camelô. Ou seja, na leitura das pessoas que vieram falar comigo, eu só poderia estar ali para prestar um serviço a elas e não como um folião. “Seis mal-entendidos” em seguida. Por outro lado, existem pessoas negras que se utilizam dessa, digamos nova linguagem de blocos, e fazem os seus blocos onde esses mal-entendidos não devem acontecer. São negros que reocupam essa estética trazidas por uma classe média.

MN: Como avaliar esse pertencimento da cultura?

V.M: O embranquecimento está presente por todos os lados. Mas há resposta a ele. Escolas de samba abriram as portas para se embranquecer em troca de crescer, mas sentem um peso, por isso ao mesmo tempo procuram ter algum tipo de reação. E existe uma disputa silenciosa dentro delas. No Carnaval dos blocos, o que vemos principalmente nos bairros da Zona sul e Centro, é outro embranquecimento das ruas que foram nossas há um século. Mas, ao mesmo tempo, existe gente que entende esse processo e faz os seus blocos para que os espaços sejam ocupados também e principalmente por gente negra. Além da festa e da alegria, a gente vive disputando o protagonismo do Carnaval sem nunca parar. Ou desistir.

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