A ocupação da Maré começa pela praia e depois, segue para a parte mais alta
Por Hélio Euclides e Jorge Melo
Ex escravizados, moradores removidos de suas moradias, ex soldados, subiram o Morro da Providência para formar a primeira favela. Quase meio século depois, em um morro no meio de praia e mangues, surge o Conjunto de Favelas da Maré.
O termo “Maré” tem origem num fenômeno natural, que afligia os moradores das palafitas, trazendo sujeira e lama. Talvez por isso, toda a região à margem da Baía de Guanabara caracterizada por vegetação de manguezal e ocupada por pântanos é conhecida como Maré. Ocupada desde meados do século XX, o bairro se formou sobre os manguezais, que foram progressivamente aterrados, quer pela população, quer pelo poder público.
Hoje a Maré é constituída por uma faixa contígua, que se estende do Conjunto Esperança à Praia de Ramos.
Timbau sua origem
Oficialmente em 1940 tem início a ocupação do Morro do Timbau, a favela mais antiga da Maré. O nome tem origem do tupi-guarani thybau, que quer dizer “entre as águas”, por ser inicialmente uma área seca entre os manguezais e alagadiços à margem da Baía de Guanabara. A ponta ou morro do thybau era uma das únicas localidades em terra firme, constituído de rochas.
O livro Memória e identidade dos moradores do Morro do Timbau e Parque Proletário, organizado pelo Núcleo de Memória e Identidade da Maré (NUMIM), retrata o Morro do Timbau como sendo o único terreno sólido em meio ao vasto manguezal da Enseada de Inhaúma.
No processo de formação dessa comunidade, o grupo identificou dois núcleos de ocupação: um deles era o da antiga freguesia de Inhaúma, na parte baixa, a partir da enseada de uma praia de águas claras e limpas, onde ocorria atividade pesqueira e ainda existia um porto onde pequenas embarcações ancoravam e, ao lado, se desenvolvia a atividade econômica de uma pedreira. O outro núcleo era o do Morro do Timbau, com uma nova leva de pessoas que então procuravam área seca e mais elevada para morar.
O livro traz vários depoimentos — dentre eles, o de Dona Nicéia Perpétua da Rosa Laurinda, uma das moradoras mais antigas do Morro do Timbau. Ela revela que, no início, não havia morador algum na pedreira, e o que ocorria no local eram explosões para cortar as rochas para o fabrico de paralelepípedos.
A ocupação territorial acabou acontecendo por causa da periferização e da precarização da população pobre no Rio de Janeiro, além da construção da Avenida Brasil. No Núcleo Praia de Inhaúma constitui-se a Favelinha da Praia de Inhaúma ou, como ficou mais conhecida, Favela do Rala Coco.
Segundo a arquiteta e urbanista Lílian Fessler Vaz, no Morro do Timbau a ocupação se deu por meio de D. Orosina Vieira, que teria decidido se estabelecer no local durante um passeio com seu marido pela região: encantada com a paisagem, vislumbrou a possibilidade de construir ali uma casa, livrando-se do fardo de pagar aluguel.
Uma História de resistência e união
Os militares do 1º Batalhão de Carros de Combate, com seu quartel localizado na Avenida Brasil, começaram a observar o aumento veloz de novas construções na região, que já chegava a 3.400 pessoas morando em 623 barracões. Por isso, passaram a controlar o morro (cujo terreno pertencia à União), determinando quais ruas seriam abertas ou como as casas seriam construídas – nenhuma estrutura permanente (como as de alvenaria, com telhas) poderia ser levantada, sob pena de demolição. Além disso, começou a ser cobrada uma “taxa de ocupação”: era dos militares a decisão de quem podia ou não morar ali.
Já organizados contra o controle considerado abusivo pelos moradores, em 1954 era fundada uma das primeiras associações de moradores de favela do Rio de Janeiro, o que alavancou a busca por melhorias na região, como fornecimento de água e esgotamento sanitário, energia, pavimentação e coleta de lixo.
Ao longo da trajetória é possível observar que as favelas foram definidas através das lutas coletivas, essa é uma marca que acompanha a fundação das favelas de uma maneira geral e, em particular, a Maré. A importância de reconhecer esse fenômeno é que podemos compreender como o movimento de organização e mobilização que criou e sustentou as identidades dos fundadores desses espaços.
Em junho de 1954, quando efetivamente os militares derrubaram alguns barracos e expulsaram famílias no Morro do Timbau com o objetivo de construir um novo pavilhão ou um conjunto de residências para sargentos. Na época, advogados e políticos apresentaram recibos emitidos pelo próprio batalhão comprovando o pagamento da taxa mensal de ocupação no valor de Cr$ 300 (trezentos cruzeiros) — o que fazia dos moradores arrendatários ou mesmo inquilinos.
O processo de “independência” formou lideranças na comunidade: Dona Orosina, Rodrigues, Borges, Agamenon, Justino, Rufino, Euclides. Segundo seu Joaquim Agamenon dos Santos, o Morro do Timbau era a única favela no Brasil com 85% da sua população ligada à associação de moradores, algo difícil de superar até os dias de hoje. O motivo principal desse apoio era o sentimento de orgulho do lugar em que moravam, uma identidade marcada pela criatividade, pela persistência e pelo senso de solidariedade.
Os moradores atuais reconhecem os esforços dos mais antigos na formação do território. “Acho muito importante esse lugar, que eu sempre considerei uma parte mais tranquila da Maré. Sobre o passado, sei que antigamente era praia e as casas eram palafitas, algo que minha mãe sempre contou. Eu gosto muito de onde eu moro, não trocaria por nada”, conta Cíntia Souza, de 43 anos.
Isaac Nunes é o presidente da Associação de Moradores do Morro do Timbau, e fala com orgulho dos seus 37 anos vivido na favela: “O Timbau é minha vida e meu sentimento é de amor. Tenho orgulho de ajudar instituições escolares e moradores desse lugar que formou três gerações da minha família — meus pais, eu e agora, meus filhos.”
Cada favela que forma esse bairro chamado Maré tem sua própria história e diversidade cultural. Em 2023, esta coluna pretende mostrar um pouco de cada uma delas. No nosso próximo encontro a viagem começará no nascimento da Baixa do Sapateiro, em 1947. Até lá!