O rei do futebol

Data:

Pelé completa 80 anos de sucesso nas quatro linhas

Por Hélio Euclides em 23/10/2020 às 17h00

“Pelé jogou futebol por 22 anos e, durante aquele tempo, fez mais para promover a amizade e a fraternidade mundial do que qualquer outro embaixador”, frase de J.B. Pinheiro, embaixador do Brasil na Organização das Nações Unidas. Poucos sabem desse lado de Pelé, que chegou a 1.281 gols, sendo o único jogador a conseguir esse feito e agora completa 80 primaveras. Edson Arantes do Nascimento nasceu em Três Corações, sul de Minas Gerais, no dia 23 de outubro de 1940. Num lugar sem luz elétrica, surgiu um menino que iluminou o mundo com sua arte nos pés. 

Pelé cresceu na pobreza, em Bauru, no estado de São Paulo e ganhava dinheiro extra trabalhando em lojas de chá. Na falta de dinheiro para comprar uma bola adequada, jogava futebol com uma meia recheada de jornal e amarrada com corda. A história dele é parecida com a muitos meninos e meninas que tentam iniciar sua carreira no futebol. “Ele é inspirador para a garotada, faz sonhar. E também é para os projetos de esporte na favela, que são pequenos, mas conseguem levar alguns talentos a clubes grandes. Ele me inspira no meu trabalho. Falar de Pelé é lembrar de um craque e ídolo do Brasil”, comenta o xará Edson da Silva, presidente e fundador da Associação Esportiva Beneficente Amigos da Maré (AEBAM).

Pelé é consagrado como o jogador do século pela Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol, faz parte dos vencedores do prêmio de Melhor Jogador do Século da Fifa e também do Comitê Olímpico Internacional. O Rei do Futebol teve feitos históricos, entre eles, o gol do dia 19 de novembro de 1969. O craque chegava ao milésimo gol aos prantos. “Pelo amor de Deus, minha gente! Agora que todos estão ouvindo, faço um apelo especial a todos: ajudem as crianças pobres, ajudem os desamparados. É o único apelo nesta hora muito especial para mim”, disse Pelé. 

Um atleta reconhece o outro. Nivaldo João da Silva, o Godoy, é ex-jogador e morador da Praia de Ramos. Ele não chegou a ver o Pelé jogar, apenas viu os lances pela televisão, mas mesmo assim confessa que o rei o inspirou a entrar na carreira. “Foi uma inspiração para muitos jogadores por ser o maior de todos, atravessou gerações. Na sua época foi um jogador completo, que executava com facilidades as jogadas, muito bem pensadas, com qualidade, beleza e elegância. Ele assombrava os adversários”, conclui.

O futebol veterano da Maré tem os seus jogadores que viram o rei nas quatro linhas. “Pelé foi um gênio da bola. Naquela época, assisti muitos duelos entre Pelé e Garrincha”, resume Arlindo Noberto, morador da Baixa do Sapateiro Outros contam histórias até os dias de hoje. “Na década de 1960, quando fui assistir um jogo do Vasco contra o Santos. O Vasco tinha uma zaga boa, que era Vitor e Fontana. Eu estava na geral do Maracanã e estava 2×0 para o time carioca. Faltava dois minutos para o jogo acabar e Fontana falava para o Pelé que ele não era nada e nem o Rei. O Pelé fez dois gols e pegou a bola no fundo da rede e deu para Fontana. Pelé disse pega essa bola e leva para sua mãe, diz que foi o Rei do Futebol que mandou”, comenta Arides Menezes, morador da Nova Holanda. Ele lembra que a frase ficou célebre na época. 

O rei negro do futebol

O futebol foi introduzido no Brasil em 1894, por Charles Miller, quando retornou da Inglaterra. O esporte era praticado pela elite branca da cidade de São Paulo. A escravidão fora extinta havia poucos anos e os negros tinham o acesso vetado às quatro linhas do gramado. Em Porto Alegre dos anos 1910, a “Liga dos Canelas Pretas” organizou um torneio dos times de “atletas de cor”, excluídos pela elite branca. Já em São Paulo, nas décadas de 1920 e 1930, ocorreram partidas de futebol entre preto x branco. Nesse mesmo período, a cidade chegou a ter 12 clubes disputando o campeonato informal dos negros.

Na cidade do Rio de Janeiro, o convívio entre morro e asfalto facilitou o intercâmbio futebolístico de negros e brancos. O primeiro jogador negro a disputar uma partida oficial de futebol foi Francisco Carregal, pela equipe do Bangu, em 1904. Quando o Vasco tentou disputar a primeira divisão carioca, em 1924, a associação futebolística condicionou sua participação na liga à retirada de doze negros de seu time. O Vasco se recusou a cumprir a medida e preferiu competir entre os times pequenos.

O 1º título da Copa do Mundo, em 1958, não foi fácil. Os negros da equipe, inclusive Pelé e Garrincha, eram tidos como emocionalmente instáveis pela comissão técnica, algo que os membros da comissão alegavam ter relação com a questão racial. A revista O Cruzeiro fez uma reportagem que trouxe o episódio de uma mãe e sua filha, que vê o Pelé e, surpresa, fala: “mamãe, ele fala”. Ou seja, assim como a comissão técnica, a criança associa a pessoa negra ao animal, que age por instintos, que foi uma das justificativas para a escravidão negra no Brasil e no mundo e que hoje nos ajuda a entender a raiz do racismo.

Apesar do sucesso, o ex-jogador Pelé recebe críticas por não ter tomado atitudes políticas ou nenhuma vez se manifestar sobre o racismo. “O Pelé é esse símbolo da pessoa negra de sucesso, eu acredito que mesmo sem nenhuma manifestação sobre o racismo, ele fez a parte dele como representatividade, essa esperança de ascensão social de muitos negros”, expôs Marcelo Carvalho, criador do Observatório Contra a Discriminação Racial no Futebol, no Programa Esporte Espetacular. 

Em 1995, o ex-atacante foi nomeado Ministro do Esporte. Durante o período no ministério, propôs uma legislação para reduzir a corrupção no futebol brasileiro, que ficou conhecida como “Lei Pelé”, além de reforçar em um discurso que o negro precisa votar em negro. “Precisamos resgatar isso para não parecer que ele sempre se manteve alienado às questões sociais. Ele estava sempre atento ao que estava acontecendo. A questão era a força que existia do outro lado para o Pelé se manter em silêncio”, comenta Marcelo. O próprio Pelé rebate esses julgamentos. “Toda a minha vida, quando eu tive a atenção das pessoas, eu tentei usar a minha voz para o bem. Sempre defendia os seus ideais”, recomenda Pelé.

O que se percebe é que até hoje o jogador negro precisa lutar pelo seu espaço. Entre 2014 e 2019 ocorreram 56 casos de discriminação racial no futebol brasileiro, registrados pelo Observatório Contra a Discriminação Racial no Futebol. Que o Brasil e o restante do mundo possam eliminar o preconceito e o racismo de vez, não apenas das quatro linhas, mas de todos os espaços. Que esse 23 de outubro de 2020 continue marcando as lutas e as conquistas dos negros por seus direitos. Vida longa ao reinado do Rei. Felicidades, Pelé!

Curiosidades do Rei

O pai de Pelé também foi jogador de futebol. João Ramos do Nascimento (1917-1996), o Dondinho, era atacante e jogou por 20 anos, passando por clubes como Atlético Mineiro e Fluminense, encerrando a carreira no Bauru Atlético Clube em 1952. Foi graças a seu pai que Pelé desenvolveu as suas habilidades de ambidestro: por orientação de Dondinho, ele ficava batendo bola na parede apenas com o pé esquerdo.

O apelido Pelé também tem origem no futebol. Bilé, goleiro do Vasco da Gama, era inspiração para o Rei, que quando criança jogava nessa posição. Durante o futebol, se chamava de “Pelé” quando queria dizer “Bilé” e os amigos sempre riam da confusão, passando a chamá-lo dessa forma. Ao chegar no Santos com 15 anos, o apelido já estava na ponta da língua de todos e Edson assumiu o nome Pelé.

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

Sementes de Marielle; confira segunda parte da entrevista com Mãe da vereadora

Nessa segunda parte da entrevista, Marinete fala sobre as sementes deixadas por Marielle, do protagonismo de mulheres negras em espaços de poder e a partir do contexto do assassinato da vereadora, como acreditar em justiça.

‘Não há uma política de reparação’, diz Mãe de Marielle sobre vítimas do estado

Além de criticar o Estado e o Judiciário, que, em diversas instâncias, colaboraram pela impunidade do crime, Marinete aproveitou para reforçar o sonho que a família tem: inaugurar, via Instituto, o Centro de Memória e Ancestralidade