Latim, língua que faz parte do Catolicismo, está presente nas celebrações do Conjunto de Favelas da Maré
Por Thaís Cavalcante em 10/11/2020, às 19h15
A favela é um um lugar de fé. Não à toa, é possível encontrar uma igreja em cada rua, cultos e missas todos os dias e até visitas dominicais oferecendo pregações. No cristianismo, especificamente, uma atitude dos moradores da Maré se destaca nos últimos anos: o uso do latim nos cantos das missas. Língua oficial do Vaticano e mãe do portuguës brasileiro, as músicas clássicas dominam as celebrações e conquistam fiéis.
Em todo o território mareense, quase metade da população é católica. Outros grupos religiosos predominantes são os evangélicos e protestantes, segundo o Censo Maré (2019). Para alcançar a essa população, diversas capelas e cinco paróquias se espalham pelas favelas: Paróquia Jesus de Nazaré, no Parque Maré; Paróquia Sagrada Família, na Nova Holanda; Paróquia São José Operário, na Vila do João; Paróquia Nossa Senhora da Paz, no Parque União; e a Paróquia Nossa Senhora dos Navegantes. Esta última foi a primeira construída no território, ainda na metade dos anos 40, quando a Maré vivia um período de transformação urbana, assim como o Rio de Janeiro.
Nova língua na boca do povo
Jonathan Tanta, professor e membro do Ministério de Música da Paróquia Sagrada Família, conta que nos últimos anos os cantos em latim se tornaram mais comuns na favela como um grande movimento local e se recorda quando esse fenômeno começou. “Eu lembro que em 2013 comecei a ouvir o Agnus Dei* nas missas daqui. No evento Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o Papa facilitou a popularização de canções em latim com um ritmo mais atual”, destaca.
A atuação do seu grupo musical na Maré não foi diferente. “Nós utilizamos o latim nas missas, sim, porém escolhemos ele para momentos com uma importância litúrgica maior, como o Natal, onde é celebrado o nascimento de Jesus e a Páscoa, que celebra a ressurreição”. O cuidado é para que os fiéis vivenciem a tradição, mas sem se esquecer que o latim não acessível a todos. De uma população composta por 140 mil pessoas, destas mais de 8 mil não sabem ler.
Uma técnica usada pelos Ministérios de Música para engajar os fiéis é cantar repetidas vezes músicas popularmente desconhecidas, assim fica mais fácil de decorar a letra ou só a melodia. Quem pensa que o aprendizado é fácil, se engana, mas parte dos músicos que cantam em latim nas missas da Maré pouco tem aulas sobre a língua ou a pronúncia. Aprendem ouvindo, treinando e, às vezes, tiram dúvidas com Padre de sua Paróquia.
A Cientista Social Graça Dias estudou em convento quando pequena e teve contato com o latim, mas se espanta com a prática ainda hoje nas paróquias da Maré. “É surpreendente que em plena atualidade algum grupo religioso se proponha a resgatar a missa em latim porque isso foi abolido há décadas! Importante relembrar que o latim é uma língua clássica morta, só se usa em documentos e na Cidade do Vaticano, sede da Igreja Católica Romana. Eu não vejo a utilidade de se usar latim, sânscrito, aramaico ou seja a língua que for, que não será compreendida por aquela comunidade”, destaca. Ela completa ainda que, sociologicamente, é importante que os frequentadores que vivenciam essa experiência precisam se posicionar se isso agrega à comunidade e se os fiéis sabem realmente o que está sendo dito.
Formalmente, o uso não é proibido. A Constituição do Vaticano Sacrosanctum Concilium** sobre a Sagrada Liturgia afirma: “Tomem-se providências para que os fiéis possam rezar ou cantar, mesmo em latim, as partes do Ordinário da missa que lhes competem”. Padre Paulo Ricardo, que além de padre é influenciador de mais de 1 milhão de pessoas na internet, esclarece que o uso do latim na liturgia não é a volta de uma tradição. “Nós precisamos continuar aquilo que a Igreja fez durante séculos. Eu não estou defendendo uma missa totalmente em latim. O que nós queremos é que as pessoas percebam que elas não estão numa igreja que começou há 50 anos atrás. Nós devemos aproximar essas duas formas de celebração”, diz.
As paróquias da Maré estão seguindo o conselho, mas se reunir se tornou inviável devido a pandemia. Foram quatro meses sem fiéis nas celebrações presenciais por causa da pandemia. Com a reabertura das atividades, muitas igrejas já estão de portas abertas novamente. Outras, ainda mantém a transmissão ao vivo pelo Facebook para evitar aglomerações. Para quem teve saudades da missa com cantos em latim, as próximas cantorias serão em dezembro, na celebração de Natal.
Você sabia?
O latim é considerado uma língua ‘’morta’’, pois não tem falantes nativos. Apesar disso, ainda é falado no Vaticano e utilizado na produção de documentos oficiais da Igreja Católica. Ao longo da história, os costumes foram mudando no Oriente e Ocidente e as línguas, por sua vez, foram adaptando-se às necessidades dos povos e grupos cristãos. O protestantismo teve papel decisivo deste período de mudança, fazendo com que a antiga língua oficial, usada em celebrações religiosas por séculos, fosse substituído pelo idioma oficial de cada país.
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*Ele se refere ao nome “Cordeiro de Deus” em latim.
**Sacrosanctum Concilium significa Conselho Inviolável.