Morador com 61 anos de vida na Maré, seu lugar de paixão
Hélio Euclides
“Quem não tem dinheiro, conta história”, esse ditado pode representar o contador de “causos” Valdecio Pereira Brandão, chamado de Delcio. Ele nasceu no Parque Maré, com a ajuda de uma parteira, viveu no Parque União e, hoje, mora no Conjunto Esperança. Cria da Maré, ele lembra das palafitas e das mudanças pelas quais passou a favela. “O passado é muito importante, e eu sou das antigas, confio muito nas palavras, mais que na assinatura”.
Nascido em 1956, no Beco da Foice, sua família foi para o Jardim Gramacho nove anos depois, mas só ficou lá por quatro meses. “Além de estar longe, ainda sofremos com o meu pai que foi trabalhar em São Paulo e deixou os sete filhos. Então minha mãe nos trouxe para o Parque União”.
“Até me arrepio, quando me lembro do barraco de madeira e da Praia da Coroinha, no Parque União. Nasci na palafita, não tinha água e nem luz. Fazia as necessidades na casinha, que iam direto para a água. Íamos até onde, hoje, é o hotel na Avenida Brasil para pegar água na lata. Acredito que, por isso, não cresci muito, por carregar tanta água”. Ele recorda, com carinho, do aterro improvisado que a família fazia. “Íamos para a Avenida Brasil conseguir caminhão de terra para aterrar o quintal. Na época, o Parque União tinha uma fábrica, onde hoje fica a comunidade conhecida como Sem Terra. Para trabalhar, tinha de ter dois sapatos, um para a lama e outro para o serviço”.
Uma infância de verdade
A família de Delcio é do Rio Grande do Norte, como inúmeros outros moradores da Maré, que vieram do Nordeste para conseguir trabalho. O seu pai era mestre de obras e atuava na construção dos novos prédios, no Centro. Já a mãe, descendente de indígenas, era dona de casa. Boa parte de sua vida passou no Parque União. “Recordo dos meus 10 anos, da minha casa grande, que tinha oito cômodos, fora o banheiro, num total de 37 metros de comprimento. O problema era quando chovia, porque tinha de pegar os móveis e colocar no alto”. A família criava porcos, patos e galinhas, que um dia iam para o prato. “O arroz era coisa de rico. Para contribuir com a renda, minha mãe lavava as roupas dos vizinhos. Os filhos lavavam chiqueiros na vizinhança. O quintal tinha plantas medicinais, o que evitava gastos. Minha mãe me ensinou o poder das ervas”.
Com o tempo, a família se aventurou no comércio, abrindo uma tendinha. “Então eu desafiei a timidez e comecei a cantar bolero e samba-canção para chamar a clientela. Tudo era para trazer mais comida para o prato”. A alegria na infância teve uma ajuda quando seu pai, em 1970, comprou um televisor com imagem em preto & branco.
Aos 12 anos, para ajudar em casa, vendia picolés e bonés na Feira de São Cristóvão, refrigerante na Praia de Ramos, peixe e tapioca. Com 14 anos, ele conseguiu sua carteira profissional e começou a trabalhar em tinturaria, no Bairro do Santo Cristo. Logo depois, foi para uma firma de importações, como office boy e, em seguida, virou ajudante de despachante. Nesse período, estudava à noite, mas parou na 3ª série. “Minha vida era corrida, eu tinha um bip, que não parava de tocar”, resume. Ele se efetivou como despachante aduaneiro, profissional especializado no desembaraço de mercadorias que transitam por alfândegas. Trabalhou no Cais do Porto por 40 anos, encerrando a atividade em 2003. “Não gostava desse trabalho, não nasci para a corrupção”.
Um Conjunto para ser chamado de esperança
“Gosto de morar aqui na Maré, é o melhor lugar do mundo”. Do casamento, nasceram dois filhos. “Vivi 25 anos casado, mas me separei”. Hoje, Delcio é feirante, aos sábados, na Vila do João. “Na feira, me sinto um pouco professor, ensino as mães que a salada é muito importante para os filhos”. Durante a semana ajuda num pet shop e é distribuidor do Jornal Maré de Notícias: esse é um exercício para minha saúde”.