Maré de Notícias #91 – 01/08/2018
Apesar de o aumento do número de brasileiros que se autodeclaram negros, o racismo ainda é uma ferida aberta.
Jorge Melo
O que faz duas mulheres, entre 60 e 70 anos, discriminarem duas jovens negras, em regiões diferentes da cidade? Responder não é fácil. No Brasil, ninguém se assume racista. Quando se discute o racismo, tem sempre aquele que diz que isso é um absurdo, que é história de quem quer dividir o País, que todos são iguais perante a lei, que a reclamação é mimimi. Olhando em volta, para a desigualdade imoral que nos afronta, é possível entender por que isso acontece. Apesar de inegáveis avanços, leis inclusivas e uma gradual mudança no comportamento do brasileiro (entre 2012 e 2016, o número de brasileiros que se autodeclaram pretos aumentou 14,9%), o racismo ainda é uma ferida aberta.
O suspeito de sempre
Em março deste ano, Thais de Jesus Custódio, saía, com uma amiga, de um baile, na Penha. Era uma manhã de domingo. Aos 28 anos, a economista, formada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), vive e se diverte, preferencialmente, no subúrbio. Não quer distanciar-se das suas raízes, fincadas na Maré. Thais faz parte de um grupo restrito. Segundo dados do IBGE apenas 10,4 % das mulheres negras completam o Ensino Superior. O percentual de mulheres brancas com Ensino Superior completo é de 23,5%.
Thaís e a amiga resolveram comer numa lanchonete, na estação de trens. Se interessou por um pastel, exposto na vitrine, mas ficou em dúvida se estava quente e dirigiu-se a uma senhora, que comia um igual. Qual não foi a surpresa de Thais quando a mulher, que aparentava uns 60 anos, começou a gritar, acusando-a de tentar roubá-la. Um homem mais jovem, que se apresentou como filho dela disse: “o problema não é com você, ela é racista”. Mesmo assim ele apoiou a mãe na falsa denúncia.
A omissão policial
As poucas pessoas que estavam na lanchonete, aos olhos de uma Thaís confusa e humilhada, pareciam concordar com as acusações descabidas. Teve medo de até ser linchada. Indignada, Thais lembrou-se que existia uma cabine da PM, na rua em frente, a uns 300 metros da estação. Chorando, caminhou rapidamente. Na cabine, o policial militar dormia. E ainda sonolento disse que nada podia fazer, porque Thaís não tinha nem o nome nem o endereço da agressora. Thaís protestou, mas o policial manteve a mesma postura distante e desinteressada. Revoltada, Thaís foi para casa aos prantos, se sentindo impotente. Depois de conversar com algumas amigas, decidiu fazer um Boletim de Ocorrência. E foi à Delegacia da Penha.
A puxada de orelha
No ano passado, o Brasil foi advertido no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Suíça, no sentido de intensificar o combate à discriminação contra a população negra. E não se trata de proteção a uma minoria. De acordo com a PNAD – Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios, do IBGE, 104,2 milhões de brasileiros são pretos e pardos – o que corresponde a mais da metade da população do País, estimada em 205 milhões. O Conselho pediu providências ao Governo brasileiro para a redução dos homicídios de jovens negros, intolerância religiosa, garantia de acesso à educação de qualidade, proteção e garantias de direitos para mulheres negras e mais acesso a políticas de redução da pobreza e a programas sociais.
Preconceito fora de controle
Pâmela Cristina de Carvalho tem 25 anos. Formada em História pela – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), faz mestrado em Educação, também na UFRJ. Pertence a um grupo ainda mais restrito do que Thaís. O mestrado é o início da carreira acadêmica, que se completa com o doutorado. No Brasil, existem 219 doutoras pretas e professoras em cursos de pós-graduação, segundo o Censo da Educação Superior de 2016. Ou seja, apenas 0,4% do corpo docente na pós-graduação em todo o País. Já o corpo discente (estudantes) da pós-graduação concentra um visível baixo número de alunas pretas. Mas ninguém sabe quantas são. Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação, as informações sobre raça foram instituídas em 2016, e 2017 foi o primeiro ano em que os estudantes tiveram de preencher o campo “raça” nos formulários. Os dados estão em fase de consolidação e ainda não foram divulgados.
O “jeitão” esquisito
Pâmela conta que seguia para uma aula no Campus da Praia Vermelha, quando foi abordada por uma mulher aparentando entre 60 e 70 anos, que demonstrando indignação disse, com ofensas, que ela e seu cabelo a incomodavam. Pâmela reagiu, denunciando o racismo. E foi em busca de ajuda. Encontrou um PM, e com ele localizou a injuriante na entrada do Shopping Rio Sul. O PM alertou a mulher sobre a gravidade do gesto e a pressionou a pedir desculpas. Tentando se defender e dar um ar de naturalidade às ofensas, disse: “mas essas meninas ficam usando esses cabelos pro alto, assusta as pessoas.” Pâmela é irônica ao referir-se ao incidente: “as senhorinhas de Botafogo-Urca estão passando mal com o meu ‘cabelo estranho’, com esse ‘negócio pro alto’, com esse ‘jeitão esquisito’. Os senhores-garotões do Rio Sul estão espumando de ódio com a presença de uma mulher que não corresponde ao estereótipo de feminilidade”.
Depois da intervenção conciliatória do policial e muita resistência, a mulher, de má vontade, concordou em pedir desculpas. Mas Pâmela não ficou satisfeita e resolveu registrar a ocorrência na Delegacia de Botafogo.
Tratamentos diferentes
Na Delegacia da Penha, Thaís se incomodou com o tom de algumas perguntas e comentários do inspetor, encarregado de tomar o depoimento. Segundo Thaís, ele fez vários questionamentos em relação ao comportamento dela e ao local em que estava, antes do ocorrido: um baile funk. Também fez observações sobre as roupas que usava e chegou a dizer que muitas pessoas de classe média eram cleptomaníacas, ou seja, roubam mesmo sem necessidade.
Já Pâmela considerou correto o atendimento na Delegacia de Botafogo. Segundo ela, foi ouvida com atenção e informada de que o PM, que fez o primeiro atendimento, deveria ter tomado as medidas para dar início à responsabilização da mulher por injúria racial e, não, propor um pedido de desculpas. A polícia está agora tentando localizar as injuriantes.
Thais e Pâmela terão de ter muita persistência para que as denúncias sigam em frente. Desde 1988, apenas 244 processos de racismo e injúria racial foram julgados no Estado do Rio de Janeiro. Uma média de oito por ano. E entre os casos julgados, quase 40% foram considerados improcedentes pela Justiça na área cível. Na área criminal, os réus foram absolvidos em 24% dos casos. Essa situação se repete em outros Estados do País.
A injúria racial é apenas um dos tipos de agressão que sofrem mulheres negras como Thais e Pâmela. Segundo dados do IBGE, as mulheres negras estão na base da pirâmide salarial. Elas ganham, em média, 40% menos que um homem branco na mesma função. Mulheres negras são as principais vítimas da violência no Brasil. Segundo o Mapa da Violência, realizado anualmente pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, enquanto a mortalidade de não negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras o índice cresceu 22%.
Racismo é crime
A legislação brasileira determina a pena de reclusão a quem tenha cometido atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Há quase 30 anos foi criada a Lei 7.716, que tornou inafiançável e imprescritível o crime de racismo, também presente na Constituição de 1988.
Segundo o antropólogo Kabengele Mungana, que nasceu no Congo, na África, e é um estudioso da questão racial no Brasil, “ecoa dentro de muitos brasileiros uma voz muito forte que grita: ‘não somos racistas, os racistas são os outros’. Essa voz forte e poderosa e? o que eu chamo de inércia do mito de democracia racial brasileira. Como todos os mitos, ela funciona como uma crença, uma verdadeira realidade, uma ordem. Por isso, e? difícil arrancar do brasileiro a confissão de que ele também e? racista”. Mungana é um dos 120 professores negros da Universidade de São Paulo (USP), que tem um quadro de 6 mil docentes.
No Rio de Janeiro as denúncias de racismo podem ser encaminhadas pelo telefone: (21)3399-1300.