Periferia tech

Data:

Tecnologia e inovação social são criadas nas favelas

Conheça moradores e iniciativas das periferias que estão capacitando jovens para atuar no complexo e elitista mundo tecnológico

Maré de Notícias #96 – janeiro de 2019

Realidade virtual, robôs inteligentes e jogos em outra dimensão: escassez estimula criatividade de jovens das periferias | Foto: Gato Mídia

Por: Maria Morganti

À primeira vista, parece coisa de filme futurista: realidade virtual, robôs inteligentes e jogos em outra dimensão. Só que essa já é a realidade de um mercado de trabalho que, até 2020, vai ser um dos mais valorizados no Brasil. Segundo dados da consultoria PWC, só o segmento de games deverá crescer 13,4% até 2020, alavancando o mercado de trabalho nessa área. Estima-se que a participação brasileira no mercado mundial de games tenha sido de 2% em 2011 – o que representa uma receita de R$ 2 bilhões. Jovens moradores de favela, como Thamyra Thâmara, do Complexo do Alemão, estão ligados nesse “papo de futuro” (ou de presente) desde antes de 2014, quando criou, o que define como uma “escola”, que forma, em média, 100 alunos por ano em áreas como tecnologia e inovação, o GatoMÍDIA.

“O Mercado para tecnologia está crescendo muito. Até 2020, o trabalho que mais vai ganhar dinheiro, que mais vai estar sendo buscado no mercado, é o designer de game, porque a realidade virtual está crescendo muito e ela está sendo muito usada em game, na chamada ‘gameficação’. Então, quem aprender a programar game, que é a nova linguagem, o novo inglês, ou fazer designer de game, vai estar com muitas oportunidades no futuro. Por isso, a gente tem investido tanto em trazer formação em tecnologia”, afirma a coordenadora de metodologias do GatoMÍDIA.

A favela em 360o

                Até o fim de 2018, o ?GatoMÍDIA, local de aprendizado em mídia e tecnologia para jovens negros e moradores de espaços populares, ofereceu cursos e oficinas no Complexo do Alemão, como a “Residência Favelada 2.0”, com formação em mídia e tecnologia para mulheres, a “Residência Wagikisa” (nome inspirado em um povo angolano que significa ‘corpo forte’), que tinha como foco o aprendizado em programação, buscando utilizar tecnologias para mulheres, negros, LGBTs e periféricos, além do laboratório afrofuturista, com foco em produção 360o, realizado em outubro do ano passado, no qual os participantes receberam mentoria em estética e narrativa afrofuturista, afrocentricidade, processos criativos, produção 360o, pós-produção 360o, tecnologias imersivas e realidade virtual, com foco em jornalismo.

                George Ferreira dos Santos, 26 anos, “cria” da Vila Vintém, favela da Zona Oeste do Rio, foi um dos participantes dessa Oficina que, pra ele, foi “uma experiência incrível”.  “Estar junto de pessoas que vivem a mesma realidade que eu, pretos vindos de várias favelas, tendo acesso a uma nova tecnologia, conhecimento e podendo produzir novas narrativas foi emocionante. Tivemos três momentos diferentes: o primeiro foi uma introdução ao conceito de afrofuturismo, o que levou a diversos debates e troca de experiências entre os participantes, que nos deixou muito conectados uns aos outros. O segundo foi como trabalhar a criatividade em ambiente de escassez, o que nos estimulou ainda mais a trabalhar a criatividade para produzir, usando papelão e fios como ferramentas para fazer óculos de realidade virtual, por exemplo. E o terceiro foi a tecnologia 360o e realidade virtual. Tivemos uma aula que passou desde o atual momento ao que é esperado para o futuro próximo com essa tecnologia, sobre equipamentos, como utilizar e a pós-produção. Depois nos dividimos em grupos para poder produzir um material para concluir o laboratório. O resultado foram três vídeos incríveis em 360o, produzidos por nós, mostrando nossas narrativas”.

Tecnologia preta

O jovem conta que a Oficina “agregou muito positivamente”, por estar em ambiente de total afeto e, principalmente, pelo lado profissional. “Profissionalmente, abriu uma janela gigantesca de possibilidades. Poder ter acesso a uma tecnologia que ainda não se popularizou no Brasil e estar aprendendo e produzindo é importantíssimo, pois é um mercado que está se abrindo e se expandindo cada vez mais e que ainda não tem tantos profissionais na área. Então, trazer isso pra favela foi uma sacada fantástica das meninas do GatoMÍDIA. Eu só tenho a agradecer a Thamyra, Morena e Nicole por essa oportunidade”, relata George, se referindo à equipe que realizou o programa.

                Publicitário e produtor de audiovisual, George conta que, após o laboratório, começou a trabalhar seu próprio canal de vídeos e fotos em 360°. “Comecei com o Instagram (@nugrau360) e agora uma página no Facebook (NuGrau 360°), onde já venho exibindo um pouco do conteúdo que estou produzindo. Já estou trabalhando para lançar o canal no YouTube, onde não só vou expor esses materiais como vou lançar outros conteúdos falando dessa tecnologia, de afrofuturismo, com tutoriais, etc. Minha ideia é produzir o máximo de conteúdo possível até o começo do ano que vem para ter um portfólio e aí conseguir equipamentos para oferecer um serviço de produção audiovisual em 360° para eventos, festas, etc. E meus projetos pessoais com algumas parcerias que já estou alinhavando”, conta o jovem.

Gambiarra é tecnologia

          Um dos diferenciais do GatoMÍDIA em relação a outros cursos de produção em 360° é o estímulo ao uso da criatividade. As ferramentas são criadas a partir de gambiarras, com óculos virtuais feitos com material reciclável como papelão, CDs e fios velhos. Thamyra explica que essa forma de se reinventar é uma característica das favelas há anos. “Tecnologia é quando você tem uma ferramenta para resolver um problema e tem capacidade de ser replicável. Na entrada da Grota (no Complexo do Alemão), a gente já vê aquela estátua daquele senhor que colocou água na casa de muita gente quando não tinha. Ele fez a encanação. Esse fazer da favela em meio à ausência do Estado ou à presença seletiva do Estado, em meio à escassez, é potência, isso é inovação. São esses os fazeres populares. Então, essas tecnologias sociais de colocar água na casa dos outros, de colocar luz, de colocar internet, tudo isso é tecnologia, mas é sempre visto de forma pejorativa quando vem da favela, como o jeitinho brasileiro, ou ‘ah, isso aí é uma gambiarra’, no sentido pejorativo, e não como alguma coisa de inovação, sendo que é uma inovação. Porque vem de um problema social. Toda vez que você resolve um problema social e você tem um impacto social sobre aquilo, isso é inovação”.

PretaLab

Assim como o GatoMÍDIA, iniciativas como a PretaLab, projeto criado em março de 2018, trabalham para ampliar o espaço e a representatividade de mulheres negras e indígenas na ciência e tecnologia. Atualmente, esse mercado é predominantemente, masculino, branco e não periférico. Para se ter uma ideia sobre a necessidade e pertinência de incluir mais mulheres negras na inovação e na tecnologia, uma pesquisa da Accenture Stategy, empresa especializada em empregos, estima que a economia global digital representava 22,5% da economia mundial em 2015, o que significa um montante de US$ 19,5 trilhões. A previsão é de que esse percentual cresça para 25% até 2020, com um movimento de US$ 24,6 trilhões. A pesquisa pode ser conferida no site www.pretalab.com. O estudo aponta ainda que, nos Estados Unidos, apenas 2% da força de trabalho em todo universo da ciência e engenharia sejam de mulheres negras. No Brasil, esse dado sequer existe. “As tecnologias estão carregadas com as visões políticas, econômicas e culturais de quem as cria – e esse poder, hoje, está centrado nas mãos de homens, brancos, heterossexuais, classe média/ricos. Isso já potencializa uma grande desigualdade, em um mundo cada vez mais digital”, explica Silvana Bahia, diretora de projetos do Olabi e coordenadora do PretaLab.

Silvana, que é jornalista e mestre em cultura, explica que o PretaLab é uma “causa”, que oferece oficinas voltadas para tecnologia, divulgadas pelas redes sociais do Olabi, como o “Minas de Dados”, direcionado para o trabalho em cima de dados produzidos por qualquer usuário da internet. A própria jornalista relembra que tinha interesse em aprender a programar, mas achava que nunca ia conseguir fazer isso na vida. Até que teve oportunidade de fazer um curso e viu que “era difícil, mas não impossível”. E então, o episódio ficou marcado como “um estalo”. Hoje, Silvana acredita que, no futuro, vão ter mais mulheres pretas e indígenas trabalhando na área da tecnologia. “Tem muita menina preta de favela que está se interessando. Uma puxa a outra”.

Se interessou? Então, fique ligado para saber das oportunidades de capacitação nos mercados de tecnologia e inovação:

PretaLab

http://www.pretalab.com/

http://www.facebook.com/olabimakerspace/

GatoMÍDIA

http://gatomidia.com/

http://www.facebook.com/gatomidia/

Favela Hub

http://www.facebook.com/favelahub/

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

Por que a ADPF DAS favelas não pode acabar

A ADPF 635, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), é um importante instrumento jurídico para garantir os direitos previstos na Constituição e tem como principal objetivo a redução da letalidade policial.