A pandemia expõe a precariedade do saneamento básico

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Apenas 46% do volume gerado de esgoto no país é tratado e a situação se agrava nas favelas e periferias brasileiras

Dani Moura

O saneamento básico é um direito garantido na Constituição e pela Lei 11.445/07, mas são poucas as cidades brasileiras que o possui. Em números, apenas 46% do esgoto gerado no Brasil é tratado. O país do samba e do futebol despeja por dia na natureza 5.717 piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento. Por ano são mais de 2 milhões de piscinas, segundo dados do Instituto Trata Brasil.

Definido como conjunto de serviços como abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais, o mais comum é que o saneamento seja visto como sendo os serviços de acesso à água potável, à coleta e ao tratamento dos esgotos. As tais obras que os políticos brasileiros têm dificuldade de fazer porque ninguém vê e por isso não dá votos – a maioria das obras de saneamento básico são construídas embaixo da terra – traz consequências sérias ao bolso do Estado.

São inúmeras doenças causadas por falta de um sistema de esgoto que trate os dejetos, como diarreia, que desaguam no Sistema Único de Saúde. Só nos primeiros meses de 2020, o Brasil registrou 40 mil internações por falta de saneamento, custando ao Estado brasileiro cerca R$ 16 milhões, segundo um estudo da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES).  Em período de pandemia, onde leitos são considerados ouro, as internações ocuparam, em média, 4,2% dos leitos do SUS no período, por cerca de três dias. Dos 16 milhões que os cofres públicos tiveram que desembolsar, quase a metade (46%) foi despendida apenas no Norte, região que, historicamente, apresenta graves falhas e os piores índices de saneamento básico do país.

Os mais pobres são os que mais sofrem

Mas não é só na região Norte do país que o problema acontece. Nas grandes cidades a situação também é grave. Segundo o levantamento realizado pelo Instituto Trata Brasil (2016), cerca de 90% do esgoto das áreas ditas irregulares localizadas nas 100 maiores cidades do país não são tratados e nem coletados. As cidades do Rio, São João de Meriti, Belford Roxo e Nova Iguaçu estão entre os municípios brasileiros com o pior cenário.

Infelizmente as áreas mais pobres são as que mais sofrem. Nas 100 maiores cidades do Brasil, as áreas ditas “irregulares” – favelas e periferias – não possuem sequer garantia de regularização. O que vemos é que água não é tratada, o lixo não é recolhido, há ligações clandestinas que contaminam a água e o esgoto permanece a céu aberto em frente às casas, permitindo o contato direto de crianças, adultos e animais, o que causa severas implicações para a saúde.

A 16ª edição do Boletim De Olho no Corona!, um levantamento quinzenal feito pela ONG Redes da Maré mostra que o problema do saneamento básico nas regiões de favelas e periferias dificulta a adoção de medidas de prevenção emergencial à Covid-19, aumentando os riscos de contaminação. O boletim também apresenta os números do data_labe, laboratório de dados e narrativas da favela da Maré que tem feito um trabalho de monitoramento sobre o saneamento básico na região.

Saneamento básico e Covid-19

A Covid-19 já mata mais na periferia do que nas áreas centrais no município do Rio de Janeiro, como aponta o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). Nas favelas e espaços populares da cidade, que abrigam mais de 1,5 milhão de habitantes, o abastecimento de água e o saneamento básico são outra dimensão da desigualdade estrutural que a pandemia expõe de maneira ainda mais evidente. A sonegação do direito à infraestrutura básica em determinados territórios prejudica o cumprimento das medidas de higiene pessoal e dos ambientes e impõe dificuldades para o isolamento social nas camadas mais pobres da população.

Dois pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP) correlacionam o saneamento básico precário e o alto número de casos e óbitos por Covid-19 no Brasil. A hipótese do estudo baseia-se em artigos internacionais que detectaram a presença do coronavírus nas fezes dos seres humanos, mesmo no caso dos assintomáticos e curados.  Isso pode explicar o alto número de casos de Covid-19 em algumas regiões do país onde a população convive com esgoto ou água sem o tratamento adequado.

O estudo da USP cita que, em 2018, o Brasil registrou 233.880 internações e 2.180 óbitos por doenças causadas em função do contato com esgoto. “Essa falta de saneamento básico tanto amplifica o número de pessoas infectadas quanto a gravidade dos casos. Acho que tem esses dois elementos juntos. […] O horizontal é esse espraiamento espacial, esse aumento do número de casos, e o vertical é a gravidade da doença em pessoas que estão numa condição ambiental inadequada e vulnerável”, dizem os autores do estudo.

Outro fator que evidencia o alto número de Covid-19 nas favelas e periferias é o acesso à água para o simples fato de lavar as mãos com água e sabão para prevenir a doença. Como fazer isso em espaços onde a população não tem acesso adequado à água para cumprir medidas simples de prevenção ao novo coronavírus? A pandemia só comprova quanto o Estado também viola o direito fundamental para a população mais pobre de acesso à água, entre tantas violações de direitos humanos nesses espaços.

Saneamento básico na Maré

O Censo Maré (2013) mostrou que 151 casas da Maré não dispunham de abastecimento canalizado de água. Entretanto, apesar de 98,3% das residências terem acesso à água, 417 só possuíam canalização na parte externa da casa. O panorama mais crítico foi verificado no Parque Rubens Vaz e no Parque União, onde foram identificados, respectivamente, 4,0% e 2,2% dos domicílios sem água ou com acesso somente na parte externa. Vale assinalar que o acesso não significa, por si só, que a água recebida seja de boa qualidade, pois também há limites entre as famílias mais pobres em relação à garantia das condições sanitárias adequadas ao consumo.

Em abril de 2019, no Encontro sobre Saneamento Básico da Maré, foi produzida uma Carta para o Saneamento Básico na Maré, com as principais demandas do conjunto de 16 favelas, e nela está a questão do abastecimento de água. Segundo a Carta, “moradores passam dias sem água em casa, instituições como escolas e Clínicas da Família sofrem com a falta de abastecimento que, muitas vezes, é minimizada por iniciativas autônomas de alguns moradores, como a instalação de bombas hidráulicas. A Maré tem um sistema público de encanamento da década de 60 que não supre a demanda atual. Além disso, o sistema de abastecimento vigente não supre o crescimento urbano. É necessária a implantação de um novo sistema que contemple as atuais demandas e que leve em conta a expansão do bairro”.

O data_labe, laboratório de dados e narrativas da Maré desenvolveu um projeto de monitoramento sobre saneamento básico chamado CocôZap, onde recebe fotos e vídeos dos moradores através de Whatsapp. Nas duas fases do projeto, eles receberam 42 queixas sobre os serviços de saneamento nas 16 favelas da Maré. Os moradores da Nova Holanda foram os que mais utilizaram este canal de reclamações, seguido da favela Baixa do Sapateiro. Dentre as principais reclamações estavam questões relativas ao lixo, seguidas do escoamento pluvial e dos vazamentos de água e do esgoto a céu aberto.

Historicamente, favelas e periferias vêm sofrendo com a precariedade dos serviços sobretudo porque o Estado pouco investiu para garantir o saneamento básico como direito fundamental. Apesar do Brasil ser signatário dos Objetivos para Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, onde se comprometeu em 2015 a universalizar o saneamento básico do país para todos os brasileiros até 2030, e pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) onde este compromisso precisa ser feito 2033, estamos muito longe de atingir esses objetivos. E o pior que esse problema atinge a todos. 

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