Cumprindo a lei ou reforçando preconceitos?

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Os diferentes pesos para aglomeração em favelas e nas áreas ”nobres”

Por Dinho Costa, em 19/02/2021 às 16h30Editado por Edu Carvalho e por Dani Moura

Na noite da última sexta-feira, dia 12, aconteceu o show do cantor Marcelo Pires Vieira, o Belo, no pátio do Ciep 326 Professor César Pernetta, no Parque União, uma das 16 favelas da Maré, na Zona Norte do Rio. O show varou a madrugada e terminou na manhã de sábado de carnaval. Apesar da pandemia, que fez com que eventos de carnaval fossem suspensos, a apresentação reuniu uma multidão de pessoas de dentro e fora das favelas e foi flagrada pelo helicóptero do G1. Muita gente sem máscara, sem cumprir o isolamento social, como aconteceu em outras diversas partes da cidade, muitas na Zona Sul do Rio. A apresentação de Belo, como as outras aglomerações na cidade durante o carnaval, foi filmada pelo público e postada nas redes sociais. 

Não demorou muito para que surgissem críticas ácidas e os mandados de prisão para os organizadores do evento e para  cantor, por estarem realizando um evento que ia contra normas sanitárias e contra o decreto da prefeitura que proibiu festas durante o período do carnaval. A diferença foi que nas outras festas da zona sul da cidade, onde também houve aglomeração, não houve prisões. Desde a sexta-feira (12), dia em que se iniciou o decreto, foram contabilizadas 83 inspeções sanitárias, com 30 interdições e 63 infrações em estabelecimentos por aglomeração e descumprimento de outras medidas de saúde, além da falta de licenciamento. Durante as ações conjuntas, a Coordenadoria de Licenciamento e Fiscalização da Seop também registrou 59 vistorias, com 24 notificações, entre autuações e interdições administrativas, por falta de alvará e excesso de mesas e cadeiras. A reflexão aqui se dá em: por que o Belo foi preso? Por estar na Maré? 

Boa parte da mídia enfatizou que o cantor tinha relação com o tráfico de drogas apenas por ele estar dentro da Maré. A CNN Brasil foi mais longe: definiu a Maré como ‘’área de tráfico’’, sem direito à citação geográfica. Na Maré, não se pode negar, tem grupos civis armados que detém um poder historicamente negligenciado pelo poder público, para infelicidade de quem ali mora. Mas é muito mais que isso. São 140 mil moradores, que vivem e trabalham nas mais diversas funções, pessoas que lutam diariamente honestamente para ter seu sustento. O conjunto de 16 favelas tem 48 escolas, três mil empreendimentos comerciais e  é maior que 96% dos municípios brasileiros, mas para muitos a Maré é sinônimo de violência, e não é. 

O cantor, que foi preso pela Delegacia de Combate às Drogas (DCOD), e os demais investigados vão responder por quatro crimes: infração de medida sanitária; crime de epidemia; invasão de prédio público; associação criminosa (o show, segundo a polícia, foi organizado em comum acordo com o tráfico de drogas). Mas e em relação às demais festas que foram interditadas na cidade? Os seus produtores também foram presos e também vão responder a esses crimes?

Outros questionamentos aparecem também. A realidade cotidiana nas favelas e periferias do Brasil têm outro ritmo, e não se pode dar ao luxo, muitas vezes, de cumprir uma quarentena porque as pessoas que aqui vivem precisam trabalhar para não morrerem de fome. A pandemia escancarou a desigualdade e por aqui não foi diferente. Pegar transporte público lotado – porque o número de ônibus reduziu pela metade – para servir as casas das zonas mais abastadas da cidade, foi rotina para grande parte dos moradores mareenses. Se arriscar diariamente num período pandêmico para sobreviver. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

Nesse sentido, que tal falar da favela sem sugerir ‘grotescamente’ que tudo o que acontece por aqui é necessariamente algo criminoso? O quanto esses territórios são criminalizados só pelo fato de se chamarem favela? O caso Belo escancarou essa questão. Festas no Leblon com aglomeração de pessoas foram notificadas e multadas,  na Maré houve prisão.

Afirmar que houve “invasão de prédio público” é a ação desesperada de um Estado e de uma polícia que desconhece a realidade das favelas da cidade que governa e quer ficar bem na foto, ou uma negação histórica preconceituosa, talvez. Historicamente, a cultura periférica, que em sua maioria é negra, tem as quadras das escolas como demarcação de suas manifestações para festejar movimentos artísticos/políticos/sociais como os bailes charme, bailes de hip-hop dos anos 80/90s e até mesmo os tradicionais bailes no CIEP Gustavo Capanema, que hoje se encontra em obras –  não por depreciação de moradores e sim por negligência do Estado com a manutenção das escolas públicas. Se estava acontecendo uma festa ali, não foi mediante a uma invasão. O território é da favela, não há invasão, nem depredação, há o comum acordo com quem vai frequentar o espaço e zelar por ele, porque é deles, é nosso.

O território é da favela, não há invasão, nem depredação, há o comum acordo com quem vai frequentar o espaço e zelar por ele, porque é deles, é nosso.

Embora as festas clandestinas estejam acontecendo por todo o Brasil, nos condomínios da Barra da Tijuca e nas ilhas da Região dos Lagos, com outros cantores famosos mantendo agendas de show normalmente durante a pandemia, prender o Belo por conta desse show é muito simbólico! É impor uma proibição que para a favela já é de costume. A opressão policial quando não proíbe o baile com ação de guerra, tiros e bombas, oprime de uma forma mais “suscinta”, mas sem deixar de retaliar. Porque o mais importante é sustentar a falácia de que existe uma “guerra ao tráfico” e demarcar o lugar da favela na sociedade sempre como algo que não é bom, nem certo, nem bonito, nem inocente.

As atitudes mais radicais para tratar com a favela, são sempre as escolhidas. Não se estabelece diálogo, só obediência. O Estado não enxerga os moradores das comunidades como cidadãos, não reconhece o dinheiro deles como valioso, não os reconhece como contribuintes mesmo quando pagam impostos o ano inteiro, não reconhece o direito ao lazer. O diálogo do Governo sempre insinua a despotência da favela, insinua que a favela está recebendo “ajuda”, que tem de ser grata, não há respeito pelo favelado e sabemos disso.

Ao contrário do que aconteceu com o DJ Rennan Da Penha, que foi preso acusado de associação ao tráfico por promover bailes na comunidade onde nasceu e cresceu, Belo já está em liberdade, mediante a um alvará de soltura apresentado por sua defesa. Já Rennan, ficou preso por sete meses por nada; apenas especulações foram apresentadas.

Os demais veículos de imprensa fomentam o comportamento preconceituoso, criminalizando o território, sempre deixando a entender que a favela é sinônimo apenas de tráfico, crime e violência, enquanto não se preocupam com narrativas reais de vidas singulares a esses estereótipos, de cidadãos que trabalham incansavelmente, estudam, produzem, cuidam e lutam. Se nossa sociedade age assim, mais importante ainda que jornalistas comecem a se preocupar em transformar as narrativas apelativas em falas humanizadas em prol de uma reparação que já deveria estar acontecendo, sendo necessária e imediata.

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