Cineastas produzem retratos fiéis da realidade nas favelas
Maré de Notícias #125 – junho de 2021
Por Hélio Euclides e Kelly San
Num processo de resistência para retratar a própria realidade (muitas vezes, expostas de forma equivocada), jovens cineastas da periferia arregaçaram as mangas e concretizaram o sonho de divulgar a cultura de uma forma acessível, além de mostrar o lugar onde vivem de uma forma real, de dentro para fora.
Se a maioria dos filmes fala da favela por meio de estereótipos, retratando-a como um lugar onde o cotidiano violento é o normal, cineastas periféricos estão mostrando que ela é muito mais do que isso. Amanda Baroni, de 28 anos, moradora da Maré, começou no cinema em 2019 por meio de oficinas. De uma delas surgiu o filme A Maré Tá Pra Peixe, protagonizado pelo pescador Hélio Ricardo. “Com ele, percebi a importância da Baía de Guanabara. É muito bom contar uma história, ir a campo, se relacionar com as pessoas, embarcar no universo da narrativa”, conta.
Amanda acredita que é importante mostrar o lado positivo e potente da Maré sem cair na reprodução do discurso de carência que comumente é apresentado. “A favela não é só violência; é todo um universo produtivo de criatividade e força de vontade. Estamos no lugar de fala, não só de receptor como também de comunicação de dentro para fora. É preciso mostrar assuntos que mexam com a cabeça, como moradia, questão de gênero, liberdade, políticas públicas e direitos”, diz a jovem, que se intitula uma agente de mobilização – segundo ela, recompensador, mas cansativo.
Outro que se destaca no trabalho periférico é JV Santos, de 34 anos, morador da Penha. Ele começou no cinema em 2011, com um curta-metragem que aborda as remoções da primeira praça construída pelos moradores do Morro da Providência. “A partir daí, segui trabalhando temas principalmente relacionados à representação e à construção da imagem em torno das populações pretas, faveladas e periféricas do Rio. Esse é um caminho sem volta. Não tem mais como falar sobre nós sem nós”, explica o criador de Favela Que Me Viu Crescer, O Maraca é Nosso?, Complexos e Expresso Parador. “O cinema no Brasil é uma capitania hereditária: dependendo do seu sobrenome, você tem ou não uma para herdar. Por isso é muito difícil viver de cinema para quem é preto, pobre e de favela ou periferia. Nós somos a exceção que confirma a regra de exclusão no mercado audiovisual e da arte como um todo”, conclui. Para reverter essa situação, JV criou o projeto Cafuné na Laje para reproduzir a real imagem da população preta e das favelas no Rio de Janeiro.
É preciso não desanimar
Paulo Barros, fotógrafo e produtor, iniciou sua trajetória em 2009 na Escola de Fotógrafos Populares, na Maré. Ali surgiu nele e em seus colegas do curso o interesse pelo audiovisual, por intermédio do coletivo Garapa. Ele é um dos fundadores do Favela em Foco, um coletivo de produção de vídeos e fotos. “É difícil ser um produtor de conteúdo audiovisual periférico/favelado; é muito complexo, tem todas as dificuldades. Todo mundo sabe que produzir audiovisual aqui no Brasil é algo que não é pra gente, mas a gente faz”, desabafa.
Para um cineasta periférico, as maiores dificuldades são a falta de apoio e a ausência de patrocínio. “Hoje em dia é penoso conseguir um dos dois e, por isso, temos que nos reinventar para continuar trabalhando. Quando começamos a fazer filmes para contar as histórias dos lugares onde a gente reside e por onde transitamos, vivemos algo único. Pessoas que são desses espaços e outras que desejam conhecê-los ficam perplexas com as narrativas que mostramos”, lembra Paulo, que garante que seu trabalho não fica atrás em qualidade técnica daqueles de cineastas com maior poder aquisitivo.
Para ele, a perfeição no cinema só é possível com muito estudo, e reitera que essa vida não é de ilusões: “Já tive momentos que não vi o meu trabalho evoluir, então cheguei a pensar em desistir. Mas o que me motivou é fazermos um cinema de guerrilha.” Paulo revela que fazer audiovisual de qualidade para a internet não sai barato: é preciso boas câmeras e lentes, além de uma iluminação adequada. Para bancar isso, ele precisou abrir mão de muitas coisas. “É um mercado desigual, mas a gente faz a diferença a partir dessa desigualdade”, conclui.
Uma história de amor a periferia
Furar a bolha do mundo do audiovisual nunca foi fácil. O mercado é elitista, caro e por vezes, preconceituoso. Carlos Eduardo Barcelos, o Cadu, conseguiu e mostrou para outros jovens da favela que era possível fazer cinema sendo da periferia. Morto em 2020 num assalto no Centro do Rio, ele começou pela fotografia, num curso do Observatório de Favelas, na Maré; depois, ingressou na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, onde pôs a mão na massa, o que possibilitou a ele engrenar uma carreira como cineasta premiado. Foi o diretor e roteirista do episódio Deixa Voar, um dos que compõem o longa 5x Favela – Agora Por Nós Mesmos”, de 2010, produzido por Cacá Diegues e Renata Almeida Magalhães. O filme integrou a Seleção Oficial do Festival de Cannes. Também dirigiu Crônicas das Cidades (no Canal Futura) e Feira da Teixeira, além de roteirizar e dirigir a série Mais x Favela (2011), do canal a cabo Multishow, e o documentário 5x Pacificação (2012).
A mãe, Neilde Barcellos, chegou a pedir que ele mudasse de profissão, quando os trabalhos tornaram-se escassos. Mas Cadu se recusava. “Ele dizia que era cineasta, que gostava de fazer cinema. E começou a visitar escolas para falar de cinema, além de ser instrutor no Instituto Vida Real. Ele sempre voltou à favela para mostrar a importância do jovem acreditar que é possível realizar um sonho. Era uma pessoa que incentivava a todos a estudar e seguir em frente. Era um persistente na carreira”, lembra, orgulhosa. Cadu estimulou muita gente da Maré a seguir a carreira. Quando morreu, trabalhava como assistente de direção no programa Greg News, comandado por Gregório Duvivier, no canal a cabo HBO.
O espaço do cinema periférico
O Ponto Cine, localizado em Guadalupe, é a primeira sala popular de cinema digital do Brasil, criada em 2006. É reconhecida pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) como a maior exibidora de filmes brasileiros do país. Apesar disso, a sala está fechada há um ano e dois meses. Adailton Medeiros, idealizador e diretor executivo do espaço, acredita que superar este momento será talvez o maior desafio do lugar. “O cinema brasileiro vinha muito bem, estava ganhando maturidade, com 120 a 130 títulos sendo lançados no mercado comercial por ano. Paralelamente, as produções nas periferias estavam aumentando – filmes de diversos gêneros e, o mais legal, feitos por gente do território, com temas, artistas e personagens e narrativas locais. Mas aí veio o novo governo federal e, consequentemente, a paralisação da Ancine”, diz Medeiros. Para ele, é preciso fortalecer o cinema produzido nos territórios, independentemente da agência reguladora e do financiamento público, uma vez que é raro conseguir verbas através de editais.
O Maré de Notícias entrou em contato com a RioFilme, empresa municipal de fomento à indústria audiovisual. O órgão informou que está implementando mudanças e prometeu diálogo com a periferia para entender as demandas e atuar com mais eficácia. Garantiu ainda que, ainda este ano, vai reabrir o Cine Nova Brasília e realizar outras ações no campo audiovisual.