Remando a favor da Maré: arte e resiliência em resposta aos impactos da violência na saúde mental

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Divulgação de estudo inédito sobre o sofrimento mental dos mareenses tem como destaque diferentes performances artísticas e debates

Maré de Notícias #128 – setembro de 2021

Por Ana Clara Alves, Edu Carvalho e Tamyres Matos

“Eu vivo sem saber até quando ainda estou vivo / sem saber o calibre do perigo / Eu não sei da onde vem o tiro”. A força atemporal de O Calibre, música de Herbert Viana – que cantou sobre a Maré em Alagados – conversa com os temores da população do conjunto de favelas. O estudo Construindo Pontes, liderado pela Redes da Maré e pela organização britânica People’s Palace Projects, apontou que o medo constante de ser atingido por uma bala (perdida ou não) afeta 63% dos mareenses; o temor de ver alguém próximo ser baleado aumenta esse percentual para 71%. Entre os transtornos mais frequentes que resultam desse sofrimento mental estão a depressão, o estresse pós-traumático e a ansiedade.

A pesquisa, realizada entre 2018 e 2020, contou com o depoimento de 1.411 moradores das 16 favelas acima de 18 anos, e resultou na 1ª Semana de Saúde Mental da Maré, a Rema Maré, realizada entre os dias 23 e 28 de agosto. Os resultados revelaram que os moradores da Maré têm sua saúde profundamente afetada por situações angustiantes como estar em meio a tiroteios e, até mesmo, testemunhar assassinatos e espancamentos com frequência. 

“O debate sobre saúde mental nesse contexto é importantíssimo para entender melhor o que a pessoa quer expressar e o que sente, principalmente em meio à pandemia, quando os convívios sociais são limitados. Isso acaba gerando mais indivíduos sobrecarregados e cansados da rotina. As pessoas precisam de alguém ou de um momento para colocar para fora o que as incomoda”, diz Petersom Cosme, de 18 anos, morador do Morro do Timbau.

Para Eliana Sousa Silva, fundadora e diretora da Redes da Maré, a discussão sobre saúde mental é estratégica na sociedade. Ela acredita que a forma como os confrontos armados atingem a vida das pessoas nunca foi levada em consideração de forma sistematizada. Um dado marcante da pesquisa: 75,5% dos moradores apontam a violência como a principal característica negativa de morar na Maré.

“Quando a gente fala do medo no qual se vive, desse estresse por conta das situações de confronto armado, é comum que as pessoas daqui demonstrem admiração com a revelação de que esse sentimento existe. É como se estas situações se tornassem parte natural do cotidiano delas, como se esse sentimento não pertencesse a elas. Revelar esses dados é muito significativo. A partir disso, podemos pensar em respostas para os desafios na garantia do direito à segurança pública que realmente leve em consideração os moradores da periferia”, considera.

No dia 24 de agosto, alguns dos pesquisadores envolvidos no estudo apresentaram reflexões sobre os resultados em um evento online mediado pela jornalista Anabela Paiva. Para Leandro Valiati, economista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o estudo produziu um banco de dados “inestimável” para se pensar em soluções no que diz respeito à relação entre saúde mental e violência. “A Maré é um bom estudo de caso para distintas cidades brasileiras e em outros países. É claro que existem características específicas, mas é importante não descartar o que aproxima essas diversas regiões que convivem com as consequências da violência armada”, pondera.

Panorama dos dados

Os dados apresentados ajudam a construir um quadro mais amplo do impacto destes episódios violentos com o qual muitos dos nossos leitores lidam no dia a dia. Mais de 30% da população adulta da Maré afirmou ter a saúde mental afetada pela violência, e 44% dos entrevistados relataram ter estado em meio a um tiroteio nos 12 meses anteriores (destes, 73% passaram por essa experiência mais de uma vez). Entre os que sofreram exposição direta a situações violentas, o percentual é ainda maior: 44% acreditam que sua saúde mental foi prejudicada. 

“Este tipo de estudo sobre sofrimento mental costuma estar relacionado ao contexto de guerra, como no caso do Vietnã, por exemplo. Mas a pessoa tem um tempo específico para passar na guerra (a duração do conflito); quem vive na favela não tem esse tempo limitado, é uma violência persistente. O sofrimento mental que a gente observa na Maré é comparável à taxa de países onde houve práticas de tortura e violência policial”, explica Marcelo Santos Cruz, coordenador de um programa de estudos no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ).

Mesmo sem testemunhar um tiroteio, mais de 25% dos moradores teve alguém próximo ferido ou assassinado. Quase o mesmo percentual (24%) viu alguém ser espancado ou agredido no ano anterior à pesquisa. Para 15% dos entrevistados, isso aconteceu mais de uma vez. Nem mesmo dentro de casa os moradores se sentem protegidos: 13% deles tiveram suas casas invadidas no período compreendido pela pesquisa – percentual que aponta para 6.210 domicílios violados. A violência muitas vezes não foi apenas física, como também verbal, acompanhada de extorsão e perdas materiais. Entre esses moradores que tiveram suas residências invadidas, 47% passaram por esta situação mais de uma vez.

Um dos efeitos sentidos pelos moradores das periferias por todo o Brasil é a imposição de barreiras para o acesso a serviços e equipamentos públicos, incluindo aqueles que dão suporte aos moradores em relação à saúde mental. Segundo os dados da pesquisa, 54% dos adultos da Maré sofreram alguma limitação no acesso a equipamentos públicos em decorrência de situações de violência.

1ª Semana de Saúde Mental da Maré: Rema Maré

A primeira edição da campanha Rema Maré foi um espaço de reflexão e ação em relação ao tema, com debates e intervenções artísticas voltados para moradores da Maré. A iniciativa entrará no calendário anual de atividades da Redes da Maré. Na programação, diferentes ações e atividades artísticas e culturais são desdobramentos do estudo “Construindo Pontes”. 

“Os projetos artísticos trazem as contradições e as complexidades da pesquisa. Por exemplo, ansiedade é um tema forte no Slam (poesia) de Maré, mas é difícil ouvir a voz dos jovens com tanta força na pesquisa. A fotografia dos moradores (projeto de Tatiana Altberg) trouxe uma perspectiva totalmente diferente, mas sempre em diálogo com os resultados da pesquisa. O projeto de música com os frequentadores das cenas de uso trouxe uma perspectiva totalmente diferente. Sem os projetos culturais, os moradores ficam objetos do estudo. Procura BECOS (o áudio drama feito pelos poetas) e vai ouvir uma outra perspectiva sobre saúde mental na Maré. Tudo é parte de nossa pesquisa”, esclarece Paul Heritage, diretor da People’s Palace Projects.

A  1ª Semana de Saúde Mental da Maré contou com intervenções musicais e teatrais, produção de mural de azulejos, registros fotográficos realizados por moradores da Maré, além de cineminha nos becos. Um dos destaques da semana foi o espetáculo “Becos”, uma imersão poética baseada em 10 movimentos sobre saúde mental. ‘’A peça é uma forma de comunicar o que tem que ser dito através da arte, que é ponte para falar sobre todos os pontos sensíveis que vivemos. É ela (a arte) a maior ferramenta de comunicação’’, comenta MC Martina, poeta de 23 anos e uma das atrizes que integra o elenco da montagem, junto com Thaís Ayomide, Thainá Iná, Rodrigo Souza, Matheus Araújo, Jonathan Panta, e  os produtores Rafael Rocha, Eduardo Campello e Cat Paskel.

Em um contexto onde tenta-se vencer o vírus, a bala e a fome, a peça  trouxe camadas mais profundas de reflexão sobre como estamos caminhando enquanto sociedade e comprova a urgência do debate sobre saúde mental da população das favelas e periferias brasileiras.

Paul Heritage, dramaturgo e diretor da People’s Palace Project, um dos líderes da pesquisa Construindo Pontes, à frente do elenco da performance Becos – Foto: Matheus Affonso


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