Com opções escassas, pegar ônibus na Maré vira motivo de nostalgia

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Mareenses precisam buscar alternativas para chegar até os pontos da Avenida Brasil, pois coletivos deixaram de circular em diversos pontos do bairro com mais de 140 mil moradores

Por Tamyres Matos, em 18/11/2021 às 19h

Quem vive e circula pela Maré sabe: a oferta de ônibus é historicamente mais escassa do que para o restante da cidade – com paralelos em algumas outras regiões de periferia-. A solução, geralmente, é caminhar ou pegar um mototáxi até os pontos da Avenida Brasil. Mas, para muita gente, faz falta ser atendido pelas linhas de ônibus regulares. De acordo com a Secretaria Municipal de Transportes, atualmente o único ônibus convencional que circula dentro das áreas das comunidades é o da linha 919 (Pavuna – Bonsucesso). 

Dilamar Batista, de 59 anos, é moradora na Nova Holanda e uma especialista na história da circulação dos ônibus no conjunto de favelas. A empregada doméstica mora há mais de 50 anos na Maré e trabalha no Recreio, bairro afastado localizado na zona oeste do Rio. Dila, como é conhecida, relata que há alguns anos era relativamente comum que os ônibus fizessem ponto final na Rua Principal, na Nova Holanda, mas que as possibilidades foram rareando com o passar do tempo.“Nós pegávamos dentro da comunidade os transportes para Copacabana, Leblon, Barra da Tijuca, Recreio… depois parou tudo. Os ônibus passaram a ficar somente no posto de gasolina da Avenida Brasil. Com a pandemia, os ônibus sumiram por um tempo. Depois, voltaram a fazer ponto no mesmo posto de gasolina, mas é somente um ônibus para cada lugar e eles saem muito cedo. No meu caso, por exemplo, eu entro às 7h no trabalho, mas preciso estar 5h na Brasil para pegar o ônibus e depois não tem outro.”

É ponto pacificado que a circulação dos veículos maiores nas comunidades não é tão simples. No caso do 919, os veículos são micro-ônibus. Muitas ruas são estreitas e possuem carros e motocicletas parados em pontos que prejudicam a livre circulação deste tipo de transporte. A solução encontrada pela Prefeitura em algumas regiões são os chamados “cabritinhos” (kombis) e as vans regulamentadas. Em nota, a Secretaria dos Transportes afirma que são três linhas (3.37, 3.62 e 3.66) de kombis e mais três de vans (Maré x Bonsucesso, Vila do Pinheiro x Bonsucesso e Vila do João x Bonsucesso).

No entanto, boa parte da população acredita que a frota é insuficiente para atender efetivamente a população de mais de 140 mil pessoas do bairro da zona norte. “Na comunidade tinha ônibus para ir para Copacabana, Castelo e outros lugares. Quando eu preciso ir a outras partes do Rio, costumo pegar um mototáxi para chegar aos pontos da Avenida Brasil, mas é um gasto a mais. Nós, moradores da periferia, precisamos de mais atenção com isso. Somos trabalhadores que acordam cedo e têm compromissos nos diversos pontos da cidade, mas a oferta (de transportes) é um absurdo”, critica Jonathan Ribeiro, de 23 anos, morador da Vila do Pinheiro que integra o grupo de distribuidores da versão impressa do Maré de Notícias.

‘Grupo do 955’ vira família do ‘busão’

Ao conversar sobre o atual cenário, Dila expressa a todo tempo, as saudades que tem de quando a Maré tinha maior oferta de ônibus. A mareense cita o amigo motorista conhecido como “Negão”, que conduz um dos veículos há muitos anos. Ela lembra das confraternizações que extrapolaram o trajeto de casa ao trabalho, da criação de um grupo de WhatsApp para manter os passageiros informados sobre qualquer mudança no trajeto, além de reafirmar que todo mundo se conhecia. “Viramos um grande grupo de amigos, era divertido. A gente fazia café da manhã, fazia aniversário. Tudo dentro do ônibus. Os motoristas já conheciam todos os passageiros, já sabiam onde iriam subir e descer. No Natal, a gente costumava fazer amigo oculto. Todo mundo brincava, não tinha briga.”

Amizades feitas dentro do ônibus proporcionaram diversos encontros ao grupo | Foto: Arquivo pessoal
Com o presente nas mãos, Dila aparece em registro da realização de amigo oculto de fim de ano com o “grupo do 955” | Foto: Arquivo pessoal

Segundo Dila, eles se tornaram o “grupo do 955”, ônibus que seguia em direção ao Recreio. Ela explica que a turma não tem mais a mesma unidade, pois o aumento das restrições na disponibilidade de ônibus faz com que as pessoas tenham que recorrer a outras opções, geralmente mais caras. “Hoje em dia, muita gente não está pegando mais porque só tem um ônibus, um horário de saída. Se você perder o ônibus das 5h, não consegue outro. Às vezes, quando eles demoravam muito, a gente ligava para a garagem, conseguia saber se tinha algum problema. Agora, essa relação não existe mais”, aponta.

Dila acredita que as poucas opções de linhas prejudicam os mareenses até mesmo na hora de conseguir trabalho. “Quando a situação era um pouco melhor, tinham 3 ônibus para eu voltar pra casa, um saía do Recreio às 17h30, outro 18h15 e o último 19h. Eles entravam aqui na volta pra casa. Então a gente pegava ele na Praça do Ó, na Barra, e vinha direto pra casa, pagávamos só uma passagem. Era bem mais fácil arrumar um serviço novo”, diz. 

Ela conta, com orgulho, das muitas amizades que fez dentro do coletivo, parte da sua rotina por tanto tempo. As histórias são muitas, desde quando Dilamar e seus amigos foram consultores ativos para motoristas iniciantes na circulação dentro da Maré, até os dias de amigos reunidos no pôr do sol na praia com direito a aviso do motorista momentos antes do ônibus passar. “Às vezes, às sextas-feiras, a gente combinava de tentar sair mais cedo do trabalho e se encontrar na praia para tomar um banho de mar. Tínhamos o telefone do motorista e ele falava pra gente que hora ia passar o ônibus para voltarmos pra casa. Aí ficávamos de 16h até umas 18h na praia e quando dava 18h30 todo mundo se ajeitava para ir em direção ao ponto. Todo mundo rindo, brincando, queimado de praia… era muito bom. Dava pra trabalhar e se divertir também em outras regiões da cidade”, relata, cheia de nostalgia.

Ônibus da linha 955 ainda com “Maré” no letreiro | Foto: Kaio de Macedo / Ônibus Brasil

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