Estudo aponta que moradores das periferias e cidades da Região Metropolitana do Rio percebem o agravamento da crise no clima, mas ainda se sentem intimidados pela complexidade do tema
Por Tamyres Matos, em 15/06/2022 às 7h
Qual a relação entre a combustão nos lixões de Nova Deli, capital da Índia, que enchem o ar de fumaça tóxica e o aumento da frequência e intensidade das enchentes que deixam um rastro de mortos e desabrigados no Rio de Janeiro? Especialistas e organizações nacionais e internacionais do meio ambiente tem uma resposta unânime: o agravamento da crise climática. A preocupação que aproxima cidades separadas por mais de 14 mil quilômetros e um oceano tem sido discutida em diversos níveis nas últimas décadas, mas será que as pessoas estão realmente ouvindo?
No mês de maio, o Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por meio do Laboratório Conexões do Clima, apresentou o resultado da pesquisa qualitativa “Mudanças Climáticas e Desenvolvimento Econômico: percepções da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. O levantamento realizado em março deste ano apresenta um diagnóstico sobre como as classes média e média/baixa – dentro e fora das regiões periféricas – percebem os efeitos do aquecimento global em seu cotidiano.
“As pessoas se preocupam bastante principalmente a partir de desastres como as enchentes, elas notam as mudanças climáticas no próprio cotidiano. Há uma percepção geral de que a gente vive uma crise ambiental grave e que as consequências podem ser devastadoras. As pessoas mencionam espontaneamente aumento dos desastres ambientais, dias mais quentes, chuvas mais fortes e mais frequentes e estações do ano mais indefinidas”, analisa Tatiana Roque, professora da UFRJ e coordenadora do Fórum.
Entre os entrevistados na pesquisa, praticamente não houve reações que pendessem ao negacionismo – a ideia de que todas as consequências do clima são naturais, negando-se a influência humana direta -. Algumas preocupações apareceram em praticamente todos os depoimentos: chuvas intensas, inundações, deslizamentos e os riscos à segurança hídrica (água como direito de todos). Também foram lembradas o agravamento dos últimos anos das queimadas na Amazônia e no Pantanal, mas como problemas mais distantes.
Segundo Tatiana, que apresentou os resultados do levantamento, todo mundo lembra da situação da geosmina – que contaminou a água dos cariocas – e alguns dos participantes citam a despoluição da Baía de Guanabara como um case de fracasso na luta pela preservação do meio ambiente. A professora comentou que o tema é considerado complexo, etéreo e de difícil compreensão pela maioria das pessoas. “Sentimos as pessoas intimidadas pela complexidade do tema”. O Maré de Notícias teve a mesma sensação. Muitos dos mareenses procurados para uma entrevista afirmaram não estarem “preparados” para conversar sobre o tema, mesmo para uma opinião mais geral.
Responsabilidades e ação
O estudo mostrou que, embora a questão ambiental seja considerada importante, a maioria das pessoas não consegue fazer a conexão entre as responsabilidades sobre os danos e as ações a serem tomadas a partir disso. Apenas alguns poucos conseguem abordar toda a complexidade do assunto e, para isso, mobilizam argumentos, conceitos, além de estruturar narrativas. Em geral, as pessoas mais jovens tendem a ser mais críticas e têm maior capacidade de entendimento sobre o aquecimento global, suas causas e consequências.
Para os entrevistados, o indivíduo é o principal culpado pelos problemas ambientais, em um nível mais micro de análise. As falas geralmente ficam no seguinte espectro: “O maior vilão dos problemas ambientais é o ser humano”; “As pessoas não têm educação, jogam lixo em qualquer lugar”; “Precisamos ser menos egoístas, pensar mais nos outros, economizar água”.
De acordo com Tatiana, “de uma forma mais geral, há um descompasso enorme entre a percepção da complexidade e da abrangência dos problemas e a aposta em soluções micro, individualizadas. A questão do lixo, mau uso da água são foco da maior parte das críticas e as pessoas, em geral, relacionam isso a um comportamento individual”.
Um relatório divulgado no fim de maio pela Organização das Nações Unidas (ONU) mostrou que os indicadores de mudanças climáticas bateram recordes em 2021. O estudo, desenvolvido pela Organização Meteorológica Mundial, destaca piora em quatro deles: aumento das concentrações de gases do efeito estufa, da acidificação dos oceanos, além da elevação do nível do mar e das temperaturas. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou, com base nos dados, que estamos cada vez mais próximos de uma “catástrofe climática”.
Em 2019, imagens dos incêndios que assolaram a Amazônia reforçaram a conexão entre o agronegócio e a crise climática. De acordo com ativistas do meio ambiente, a floresta foi queimada para dar lugar à produção de carne bovina, soja e outras commodities agrícolas para aumentar os lucros das corporações transnacionais de alimentos. Em relação ao consumo de água, o agronegócio é a área que mais utiliza água em todo o mundo. A porcentagem deste consumo no Brasil chega a 72% e, em alguns outros países, pode ultrapassar os 80%.
No entanto, poucos se dão conta da responsabilidade destas grandes corporações nos danos ao meio ambiente. Para alguns dos entrevistados, inclusive, o agronegócio seria mais vítima do que algoz das emergências climáticas. E essa noção não é construída do nada. Com cada vez mais investimentos em comunicação, as críticas a este modelo de negócio geralmente ficam restritas às pessoas mais conectadas aos debates do meio ambiente (“Agro é pop. Agro é tudo”?).
Apesar de diversas matérias dos veículos de mídia alternativos que questionam o modelo de negócio, quando se pesquisa no Google as palavras “agronegócio” e “clima”, estes são os resultados da primeira página que retornam à busca: “Como o clima influencia no agronegócio?”; “Agronegócio tem perspectiva positiva em 2022, mas clima e custos são ameaças”; “A importância do clima para o agronegócio”; “Como a ‘agenda do clima’ ameaça o agronegócio brasileiro e o que fazer para não perder mercado”; “Os impactos do Clima para o Agronegócio”.
Outra percepção do estudo tem a ver com a dificuldade de se pensar como a gestão pública pode realmente atuar para evitar as tragédias ambientais. “Ainda que as pessoas entendam que sintam na própria pele a dimensão das desigualdades e a importância do poder público nisso, elas geralmente não são capazes de produzir conexões efetivas entre as questões climáticas e as políticas públicas para combatê-las. É como se as pessoas não acreditassem mais, acham que não é possível ter uma reação sobre isso”, afirmou Tatiana.
Presente ao evento de lançamento da pesquisa, Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade, acredita que é essencial investir no aumento do alcance da reflexão a respeito da crise climática, apesar de ser possível notar alguns avanços. “Existe uma compreensão mais ampla de que as mudanças climáticas não representam um tema de meio ambiente, é um tema de impacto econômico, social e urbano. As pessoas fazem essa ligação. ‘Pode ter enchente, vai prejudicar a minha casa, eu vou sentir mais calor’. Dá pra dizer que a maioria da população já entendeu que não estamos falando de um tema isolado como já foi no passado, quando era quase um ‘luxo’ falar de meio ambiente”, considerou.
Cenário e possíveis caminhos
Ainda que o cenário seja apontado por praticamente todos os entrevistados como “complexo” e “catastrófico”, as ações propostas pela maioria são sempre voltadas às ações individuais. Os participantes do estudo citaram com frequência a atenção e o cuidado com descarte de lixo. Falaram ainda sobre tópicos como: economia de água e energia elétrica, importância do consumo consciente, entre outros tópicos mais voltados ao microcosmo das escolhas individuais.
“O indivíduo é entendido não em sua dimensão de cidadão – ser político imbuído de direitos e deveres, capaz de pressionar o poder público e de construir saídas coletivas -, mas em sua dimensão de consumidor. Nesse sentido, a perspectiva da luta política quase desaparece”, resume a pesquisa.
Mas quando o debate político é estimulado, a maioria dos entrevistados tem uma percepção contundente de que Jair Bolsonaro não respeita as leis de proteção ao meio ambiente, as decisões dos órgãos fiscalizadores e não protege as “riquezas do Brasil”, enxergando-o como “inimigo do meio ambiente”.
“O tema envolve problemas considerados gigantescos, com causas difusas e consequências diversas. Tamanho grau de complexidade, muitas vezes desperta a sensação de que pouco pode ser feito para combatê-lo – assim como no filme apocalíptico, o fim de tudo parece inevitável e há pouco a ser feito do ponto de vista individual. Por isso também, lembram vagamente de organizações e movimentos sociais que combatem a crise climática e a maioria das ONGs citadas, ainda que pontualmente, são de organizações internacionais como Greenpeace e WWF. E, em menor medida, SOS Mata Atlântica”, aponta o texto do levantamento.
Para Tatiana Roque, o primeiro passo é aumentar a consciência mais ampla sobre o grave problema através de divulgação científica. “A melhor maneira de melhorar o alcance do assunto é ‘traduzir’ esses temas que às vezes parecem abstratos para as pessoas e apresentar as consequências mais palpáveis, mais cotidianas, territorializar a questão. Dessa forma, as pessoas percebem diretamente, especialmente a questão da moradia, do saneamento, do lixo… como problemas totalmente associados às questões ambientais. Essas são as vias promissoras para termos essa conscientização”, diz.
Em sua conclusão, o estudo apresenta os seguintes apontamentos: emergências climáticas devem ser consideradas ponto de partida para o diálogo mais amplo sobre as mudanças ambientais e sobre a sustentabilidade ambiental; articular temas mais amplos à realidade cotidiana das pessoas, por exemplo, mostrar como a situação das queimadas e da agropecuária tem relação com as habitações irregulares, o manejo de resíduos e a necessidade de drenagem urbana; a prioridade de agenda está nas questões de infraestrutura de habitação e saneamento.
Além disso, a segurança alimentar e a segurança no abastecimento de águas são temas que despertam a preocupação e a sensibilidade das pessoas; o papel do governo deve ir além da fiscalização e deve incorporar a necessidade da garantia de direitos e a importância da implementação de políticas públicas; o papel das empresas pode servir como elemento para problematizar os problemas relacionados ao padrão de produção e não apenas o padrão de consumo; o debate sobre desenvolvimento sustentável terá mais aderência se vier antecedido pelo debate sobre o desenvolvimento social e o desenvolvimento econômico.