Conquistar espaços na busca pela igualdade na política e na sociedade de maneira geral é uma batalha diária e incansável
Maré de Notícias #137 – junho de 2022
Por Raniery Soares, em 17/06/2022 às 07h.
É ano eleitoral e debater representatividade na política é cada vez mais importante. Nos últimos anos, personalidades abertamente LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais e outros) foram eleitas e travaram batalhas importantes dentro do Legislativo — mas sua luta também se estendeu àquela por suas vidas.
Jean Wyllys foi o primeiro LGBT assumido a ser eleito para a Câmara dos Deputados (em 2010 e depois, em 2014 e 2018), mas renunciou ao último mandato e saiu do país por conta de ameaças de mortes. No Rio, a cria da Maré Marielle Franco foi a primeira mulher negra e bissexual eleita para a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Em seu mandato, levou as pautas das mulheres lésbicas e bissexuais para dentro do legislativo carioca, antes de ser morta em um atentado, na noite do dia 14 de março de 2018.
Companheira de Marielle à época do crime brutal em pleno Centro do Rio de Janeiro, a vereadora Monica Benicio (PSOL) analisa o cenário de intimidação constante: “Vivemos em uma sociedade extremamente conservadora e LGBTfóbica que nos violenta constantemente, não reconhece a nossa existência, as nossas identidades e os nossos desejos como legítimos, logo não nos reconhece em nossa humanidade.
Segundo ela, “quando falamos de pessoas LGBT+ em territórios de favelas, falamos de violações de direitos humanos específicas, múltiplas e agravadas, dado o caráter instituído da política de “insegurança” pública, as dinâmicas de pobreza desses territórios, opressões de gênero e raça e a dificuldade de acesso a serviços básicos, como educação, saúde e lazer”.
Em 2018, o Brasil elegeu o maior número de pessoas LGBTQIA+ da história: 160, segundo dados divulgados pela Aliança Nacional LGBTI — um crescimento de 386% em relação ao último pleito. Entre os eleitos estão as deputadas estaduais Erica Malunguinho (PSOL-SP) e Leci Brandão (PT-SP), e o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) — todos eles diariamente travam batalhas pela causa LGBT. Em 2020, foram eleitas as vereadoras Monica Benício (PSOL/RJ), Tainá de Paula (PT-RJ) e Duda Salabert (PDT-MG).
Para Monica, a estrutura da sociedade brasileira é discriminatória e coloca diversas barreiras para evitar que pessoas LGBTQIA+ ocupem espaços de poder, seja pelas dinâmicas da vida que impõe outras prioridades, pela falta de oportunidade ou pela falta de visibilidade.
“Isso impede que muitas pessoas nos conheçam de fato e votem na gente para ocupar espaços de poder. Ter uma representante que conheça e reflita diretamente a vivência na periferia, nos movimentos sociais e na defesa das pautas de minorias é um avanço fundamental. Principalmente pelo que passa hoje o Brasil, um processo de ataque aos direitos conquistados”, diz.
A vereadora reforça a importância da representatividade, especialmente em um momento tão complicado para existências “fora do padrão”. “É justamente por todo esse cenário que é importantíssimo que cada vez tenhamos mais pessoas LGBT+ na política reafirmando e lutando pelos nossos direitos, mas acima de tudo, enfrentando as opressões que fazem da nossa sociedade uma sociedade tão desigual e injusta para a maioria da população”, afirma.
Uma Maré LGBTQIA+
Ao abordar o início da militância LGBT organizada no maior conjunto de favelas do Rio, o pesquisador e artista Wallace Lino publicou um artigo no qual a “Noite das Estrelas” é apresentada: “Eram antigos shows criados por LGBT+ na Maré, no Rio de Janeiro, durante as décadas de 1980 e 1990. A abordagem pretende apresentar fragmentos da pesquisa desenvolvida pelo Projeto Entidade Maré na costura de pensamentos de intelectuais negras e negros para estabelecer a Noite como material vivo das grafias e explosões do amor, cosmopoéticas e memórias negras LGBT+ faveladas. Uma resistência cultural e corporal LGTB+ dentro do conjunto de favelas”.
O movimento LGBT de Favelas não ficou estagnado; em 2006, nascia o Grupo Conexão G de Cidadania LGBT de Favelas, fundado por Gilmara Cunha, mulher trans, negra e da Maré. O grupo era formado por jovens que resolveram agir para minimizar os preconceitos vividos por pessoas LGBT dentro dos territórios de favelas do Rio de Janeiro. Em 16 anos de luta, o Conexão G conquistou para a Maré um Centro de Cidadania LGBT+, aparelho do governo estadual que oferece atendimento multidisciplinar com auxílio jurídico, psicológico e social.
Gilmara é a diretora-geral do grupo, e afirma que “a chegada deste equipamento, o primeiro da América Latina em um território de favelas, é muito importante e necessário para pensar estratégias de prevenção a vida da nossa população LGBTI+ favelada. Nunca na história do Brasil houve um equipamento que pensasse especificamente no favelado”. Segundo ela, “quando penso nos crimes de ódio que nossa população vivencia cotidianamente, tenho certeza de que é preciso levar esses equipamentos para outras favelas”.
Na Maré, o movimento LGBT é organizado e diverso. O ano de 2016 é o da criação da Coletiva Lésbi de Favelas, um grupo de mulheres lésbicas e bissexuais que pensam políticas públicas dentro dos territórios de favelas. Em 2018, o grupo passou a se chamar Coletiva Lésbica da Maré e inaugurou um espaço no Pinheiro, uma das favelas da Maré. O objeto é acolher mulheres lésbicas em situação de vulnerabilidade social, que tenham sido expulsas de casa e vivem em contexto de violência doméstica.
Histórico de luta
De uma violência policial à visibilidade internacional da luta pela existência: essa é a história do movimento LGBT, cujo marco fundador é a revolta de Stonewall Inn, um bar localizado em Nova York, nos Estados Unidos, 28 de junho de 1969. Na madrugada deste dia, um grupo de policiais, à revelia do acordo feito entre as autoridades e o mafioso Tony Lauria, deu uma batida no bar (um dos poucos lugares a servir bebida à população LGBT, já que a esta era vetada a licença para comercializar álcool).
A violência policial contra quem se divertia no local teve como resposta a resistência de travestis. Uma grande figura surgiu daquelas duas noites de enfrentamento: Marsha P. Johnson. Sua oposição contra a truculência inspirou uma luta internacional em busca de visibilidade e direitos para a população LGBT em todo o mundo. Apesar de ser inegavelmente uma figura importante neste episódio histórico, Johnson negou que tenha sido uma das pessoas que iniciou a revolta.
Os efeitos da Revolta de Stonewall Inn. como ficou conhecida, foram sentidos nos EUA e no mundo inteiro, dando origem ao Dia do Orgulho LGBTI. Uma das principais consequências da rebelião foi a criação de grupos expressivos no Movimento LGBTI dos Estados Unidos: o Gay Liberation Front (GLF) e o Gay Activist Alliance (GAA) e o coletivo STAR (Street Transvestite Action Revolutionaries), criado por Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson, na Universidade de Nova York. O objetivo era fortalecer a comunidade e aprovar importantes leis para a população LGBTI na cidade.
Resistência nacional
No Brasil, em plena ditadura militar, as primeiras tentativas de organização política da população LGBT ocorreram no fim dos anos 1970. No Estado do Rio de Janeiro, em 1978, foi publicado o número zero do jornal Lampião da Esquina, destinado especificamente a essa população. O Lampião circulou de 1978 a 1981.
Ainda na ditadura militar, em 1983, nossa Stonewall Inn ocorreu em São Paulo: o levante no Ferro’s Bar foi protagonizado por mulheres lésbicas e apoiado por grupos feministas. Conhecido como um bar lésbico, a partir do preconceito dos donos do estabelecimento, um ato político deu origem ao que ficou conhecido como Stonewall Brasil. Por conta desse levante, o dia 19 de agosto tornou-se a data na qual se comemora o Dia do Orgulho Lésbico em São Paulo.