Memorial homenageia vítimas da violência

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Painel na Nova Maré tem nomes gravados em azulejos confeccionados por familiares de vítimas no conjunto de favelas

Por Jéssica Pires, em 04/11/2022 às 11h49

O Memorial das Vítimas da Violência Armada no Conjunto de Favelas da Maré, que preserva a memória de 127 pessoas que tiveram suas vidas interrompidas pela violência, foi inaugurado hoje (4), às 15h, na Praça da Paz, na Rua Ivanildo Alves, na favela Nova Maré. 

 A Associação Redes de Maré responde pela iniciativa: a intervenção urbana foi pensada a partir de uma provocação de Artur Viana, morador da Nova Holanda e integrante do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça (que acompanha e monitora os impactos da segurança pública no conjunto de favelas) e concretizada pelo projeto Azulejaria, que faz parte do eixo Direitos Urbanos e Socioambientais.  

“Infelizmente, nem todo mundo tem preservado o direito ao luto. Alguns corpos geram mais comoções que outros. Resultado disso é que historicamente nas favelas, quando morre alguém, a primeira pergunta que fazem é ‘era envolvido?’. Logo, se essa pessoa não se encaixa nos nossos valores sociais, é como se sua passagem não devesse ser sentida”, diz Artur.

Vidas lembradas   

O eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça não somente pensa projetos com o objetivo de ampliar e fortalecer o direito à segurança pública dos moradores; ele também promove plantões de atendimento e acompanhamento de vítimas e familiares que sofrem violações e violências em decorrência das operações policiais e confrontos armados na Maré. 

Também é realizada de forma contínua a sistematização de dados coletados nesses momentos. Só entre 2017 e 2021, o trabalho mapeou 132 operações policiais e 114 confrontos entre os grupos armados no Conjunto de Favelas da Maré. Juntos, estes 246 momentos de conflito causaram 157 mortes. 

O trabalho de reunir e analisar esses dados e construir estratégias que os tornem visíveis para sociedade e o poder público parte da reflexão sobre quais corpos comovem a sociedade e impulsiona a demanda por uma política de segurança pública diferente da hoje empregada não somente do estado do Rio de Janeiro como no país.

Histórico das homenagens

Foto: Douglas Lopes | Equipe do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso a Justiça da Redes da Maré e familiares de vítimas na inauguração do memorial

Em novembro de 2021, a Redes da Maré lançou um memorial em homenagem às vítimas da covid-19 na Maré. Na época, os territórios já haviam perdido 373 moradores para a doença. No Memorial Maré, mais de setenta nomes estão gravados em um mural de azulejos na Rua Bittencourt Sampaio, na Nova Holanda. 

A ideia da criação do memorial de vítimas da violência surgiu em 2018. Porém, a pandemia requereu tanto medidas de distanciamento social como ações emergenciais de enfrentamento da doença. Por isso, a produção do painel teve que esperar, mas não as mães e familiares das vítimas, que continuaram a ser atendidas e acompanhadas. 

“Nomear as vítimas da violência armada através dessa homenagem, traz à luz a discussão sobre segurança pública nas favelas e valoriza a memória como um direito fundamental das famílias que convivem com a dor da perda dos seus familiares”, destaca Patrícia Ramalho, assistente social que acompanha o projeto.

O processo de mapeamento das 126 famílias que aceitaram ter o nome de um familiar no memorial começou também em 2018. Em 2019, um ato ecumênico marcou a instalação dos primeiros azulejos que anunciavam a existência do futuro espaço. Este ano, uma equipe formada pelos artistas que integram o projeto Azulejaria e profissionais dos projetos que acompanham a produção do memorial viabilizaram as oficinas nas quais familiares produziram, por cinco meses, as peças com o nome dos entes que perderam.

Dor coletiva

Uma das oficinas aconteceu na própria Rua Ivanildo Alves, no dia 23 de setembro, quando moradores do entorno colaboraram na pintura dos azulejos. As mães e familiares das vítimas também criaram um manifesto que está no painel. 

“Através desses desenhos, acho que todo mundo terá a oportunidade de perceber que essa é não só uma dor coletiva e inimaginável, como é também a história pessoal de cada mãe, e de cada familiar, com as vítimas”, destaca Laura Taves, arquiteta e responsável pelo Azulejaria na Maré.  

Segundo ela, “criando e montando o painel, a relação que nós, a equipe do Azulejaria, desenvolvemos com as vítimas é muito mais próxima do que se não soubéssemos suas histórias. Mesmo sem conhecê-las, conhecemos suas mães, suas dores e o desejo delas de respeito e justiça pela memória de seus filhos e parentes”.

Foto: Laura Taves

Nunca mais

“As oficinas oferecem a quem vive o trauma a oportunidade de dizer ‘Nunca mais!’ Algo que precisa ser lembrado para que não volte a acontecer. Cada uma dessas pessoas que partiram fez diferença na vida de outras”, diz Laura.

A ideia do Azulejaria é de um exercício de arte que busca fortalecer as potências individuais de seus participantes a partir da construção artística coletiva. E essa foi a percepção de Vânia da Silva Pereira e Hortência Alves dos Santos, mães vítimas da violência e integrantes do coletivo Mães da Maré. As duas participaram das oficinas e registraram por meio de desenhos nos azulejos memórias, sentimentos e reflexões. 

Vânia tem 48 anos e é moradora nascida e criada na favela Rubens Vaz. Ela também é mãe de Marvin Natan Pereira Viana, que foi vítima da violência armada na Maré aos 26 anos, em 2019. “Aqui a gente expõe todas as nossas inconformidades, nossas tristezas. A gente sai leve e deságua tudo que tem que desaguar, esvazia e coloca tudo nos azulejos. Saímos fortalecidas.”  

Para essa mãe em luto, “um memorial para os nossos filhos não é vergonha, é ver que o nosso pedacinho, uma parte nossa está ali sendo lembrada, e isso é muito importante pra gente”.

Moradora da Nova Holanda, Hortêcia recebeu a notícia da morte do filho Gelson Martins Filho no dia 11 de janeiro de 2021. O jovem tinha 28 anos. “Tudo que eu estava sentindo desenhei ali. Fiz eu e meu filho caminhando no meio de um bambuzal. É uma dor que não desejo para ninguém”, diz a mulher de 57 anos.

Hortência acredita que “a importância de ter um memorial na Maré para os nossos filhos vitimados pela violência armada é mostrar para a sociedade e os moradores que eles não são só números. Que ali estão histórias de vidas e de muita dor, de muitas lutas por trás de cada vítima”. 

Para Bruna Silva, moradora da Vila do Pinheiro e mãe do jovem Marcus Vinícius que foi alvejado por tiros quando se dirigia à escola, em 2018, o espaço cumpre o papel de exaltar a memória e o não o esquecimento da justiça e da sociedade civil para casos como o do filho: “Marcus Vinícius presente hoje e sempre.” 

Foto: Laura Taves

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