Especial saúde mental: lutas cotidianas para lidar com a saúde mental

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Como a força comunitária dentro das favelas da Maré transformou realidades

Thaís Cavalcanti

Maré de Notícias #152 – setembro de 2023

A população de favela vive desigualdades e sofrimentos cotidianos, muitas vezes motivados pela violência. E o agravamento desta realidade se mostrou ainda mais desafiador quando o inimigo era invisível. 

A pesquisa da organização Movimentos, Coronavírus nas Favelas: a Desigualdade e o Racismo sem Máscaras, mostrou como a pandemia da Covid-19 piorou a ansiedade, a tristeza e a insônia dos moradores dos territórios. O estudo também reforça que não é papel de coletivos e organizações prover a assistência em saúde, e sim um dever do Estado.

A psicóloga Hévelin Vasques, nascida no Parque União, coordena o Espaço Ser, projeto de atendimento psicológico criado com apoio do pastor Sérgio Mota, da 1ª Igreja Batista no Parque União.

Como membro da igreja, ela faz a ponte entre pacientes e psicólogos, que cobram um valor simbólico, para garantir o compromisso do paciente com o serviço e pagar o profissional. “A gente sabe que ainda existe um preconceito muito grande sobre o assunto, mas vejo que as igrejas e as pessoas estão mais abertas. Os líderes estão permitindo falar sobre saúde mental dentro desses espaços. Na Maré, por exemplo, as pessoas são mais abertas para esse assunto, principalmente os adolescentes”, diz.

Embora sala de atendimento seja anexa à Igreja, o projeto é independente e frequentado por pessoas de todas as religiões. “A fé tem um papel importante na vida do ser humano e, ao profissional de psicologia, não cabe o julgamento do paciente”, afirma Hévelin.

A articulação local fez a diferença num conjunto de favelas tão grande quanto a Maré. Quando a tendência de automutilação entre jovens começou a crescer, clínicas da família, o Núcleo de Apoio à Saúde da Maré (NASF) e o Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSi II) se uniram para apoiar os pacientes.

O Espaço Ser conta com sete psicólogos parceiros e faz cerca de 65 atendimentos todo mês. Os atendimentos começam às 8h e podem terminar às 22h.

O psicólogo Douglas Santos foi atendido pelo projeto e voltou anos depois, agora do outro lado. Foto: Afonso Dalua

Quem chegou como paciente para cuidar da depressão, anos atrás, foi Douglas Santos, morador do Parque União: “Foi bem difícil esse período, eu entendia que era uma doença séria e sabia que não podia negligenciar. Tive que ser corajoso e vi como falar pode ser transformador.” 

Também fizeram diferença para ele a medicação, amigos, uma rotina de exercícios físicos, leitura, banhos de sol, sono regulado e alimentação saudável. Quando se formou psicólogo, Douglas voltou ao projeto, agora do outro lado. Há dois meses ele divide sua rotina entre seu trabalho à noite e os atendimentos psicológicos durante o dia: “Minha volta foi muito simbólica, até me emocionei. Hoje estou fazendo algo que no passado fizeram por mim.”

Os problemas mentais são desencadeados por uma situação específica ou por uma combinação de fatores. A violência no território pode ser um agravante, como mostra a Pesquisa Construindo Pontes (2021), realizada pelas organizações Redes da Maré e People’s Palace Project, do Reino Unido. 

Um a cada três adultos da favela tem sua saúde mental afetada pelos conflitos armados. Somam-se a este fator o histórico familiar, o racismo, a LGBTfobia, o desemprego, traumas e demais problemas sociais, físicos e psicológicos que aumentam as chances de adoecimento mental. Como consequência deste cenário, há o aumento dos quadros de ansiedade e do uso abusivo de álcool e outras drogas.

Os moradores da Maré não estavam sozinhos para encarar essa realidade durante a pandemia. Marluce da Mata entrou como voluntária na startup social SAS Brasil em 2020 e hoje é coordenadora de Saúde Mental da instituição. Durante dois anos de pandemia ela atendeu, por meio de consultas online, moradores da Maré pelo projeto Conexão Saúde: De Olho na Covid.

“A Maré foi uma comunidade que abriu as portas para nós. A gente via a valorização das pessoas na saúde mental e o nível alto de estresse, ansiedade, depressão e luto — especialmente devido à covid-19”, diz. 

A SAS Brasil ofereceu teleatendimentos gratuitos para tratar da saúde física e mental. Só na Maré e em Manguinhos, foram 3.775 atendimentos até o segundo semestre de 2021 — um projeto pioneiro, gratuito e de amplo alcance na favela. 

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