Escolas de pequeno porte sacodem a poeira e dão a volta por cima
Por Hélio Euclides e Juliana Neris
No último carnaval, ocorreu um episódio que causou grande repercussão no carnaval carioca. Tratou-se do pagamento milionário de R$ 10,3 milhões a uma modelo famosa para marcar presença em um camarote patrocinado. Surpreendentemente, essa quantia superou o investimento total da Prefeitura nos desfiles. De forma individual, a modelo recebeu mais do que o montante destinado pela Prefeitura para os desfiles. Com um “incentivo recorde” às escolas de samba do Grupo Especial, que atingiu a marca de R$ 2,150 milhões, considerado o maior da história.
No entanto, as escolas que estão longe dos holofotes da Sapucaí enfrentam uma dura realidade financeira e estrutural marcada por desafios. A cidade do Rio de Janeiro possui hoje cerca de 86 escolas de samba organizadas em grupos por ordem hierárquica: 12 do Grupo Especial, 15 da Série Ouro,e mais ou menos 60 distribuídas entre as séries prata e bronze e 17 do Grupo de Avaliação. O grupo Especial e a série Ouro disputam na Sapucaí e as demais na Intendente Magalhães.
Neste cenário, é essencial compreender o processo de colocar um desfile para frente, mesmo diante de adversidades, e a resistência do samba enraizado nos territórios de favela, destacando a importância do elo com os moradores. As escolas não apenas batalham pela continuidade do desfile, mas também pela preservação da resistência e da memória do samba. Diante da escassez de apoio, suporte financeiro, invisibilidade e inúmeros outros desafios, algumas escolas de samba se veem obrigadas a encerrar suas atividades, fechando suas portas e com isso sua história.
Carnaval Carioca: Críticas e Reflexões
O Maré de Notícias conversou com dois envolvidos no carnaval, um pesquisador e uma integrante de escola, que compartilharam suas experiências sobre como as escolas enfrentam as adversidades econômicas para garantir a continuidade de suas atividades e analisam como essas questões impactam o maior espetáculo da Terra, destacando a necessidade de uma reflexão mais profunda sobre as estruturas que permeiam esse evento cultural.
Fabricio Castilho, é professor e historiador formado pela UFRJ, mestre em História da cultura afro brasileira pela UFRRJ e autor do livro “Samba na escola: apoteose para uma educação antirracista e integrante do Departamento de Cultura da Mocidade Indepentende de Padre Miguel. Castilho provocou a refletir sobre a essência do carnaval e questionar para quem, de fato, está sendo feito esse grandioso evento cultural.
MN: Como você enxerga o carnaval no comparativo das escolas de grande porte às de pequeno porte?
“Tenho bastante críticas em relação a isso. Hoje existe uma espécie de camarote do samba, onde os holofotes até mesmo da imprensa são voltados para o carnaval elitizado. Dentro do que uma escola de samba se propõe a ser, da sua origem, da ancestralidade e da festa para o povo, do povo negro e isso reflete muito no que é o Brasil hoje de fato, tanto no contexto histórico quanto nos aspectos sociais.”
MN: Essa camarotização e elitização interferem no papel do samba como fator social ?
“Precisamos lembrar que as escolas chegaram antes do sambódromo. Elas não existem para desfilar, elas existem para o povo! É preciso antes de tudo entender o contexto em que o carnaval foi criado e quem o criou para o que está acontecendo nos dias atuais. A transformação social em produto comercial e com isso o afastamento do povo.”
MN: O que você pensa sobre a criação de Políticas Públicas e Carnaval de dados para as escolas de pequeno porte?
“Cultura é um direito. É também sobre o direito à cidade, ao lazer. Sobretudo a permanência e resgate da memória da escola e dar estrutura para desfilar através de políticas públicas pensando para além dos holofotes da Sapucaí. Há carnaval acontecendo em todo o Rio de Janeiro.”
A outra entrevistada é Patrícia Costa, representante da Unidos de Manguinhos, que ressalta a importância de não apenas focar no espetáculo grandioso da Sapucaí, mas também em dar atenção e apoio às escolas que desempenham um papel fundamental na preservação das tradições e raízes do samba.
MN: Como você percebe a principal diferença entre as escolas do Grupo Especial e aquelas da Intendente Magalhães, Grupo Prata, Bronze e Avaliação?
“A diferença se dá muito também pela ausência de patrocínios. Embora essa disparidade já tenha sido mais acentuada no passado, a realidade persistente é que muitas escolas enfrentam desafios orçamentários significativos para realizar o tão desejado desfile. O objetivo é não apenas viabilizar os desfiles, mas também capacitar essas agremiações para captar recursos de forma mais eficaz.”
MN: Qual é a sua opinião em relação aos patrocínios?
“A Escola nunca recebeu patrocínio, mas não vemos isso como um problema, enxergo como um incentivo e modernização. Mesmo assim, ajudamos nossas coirmãs de outros grupos na doação de fantasias. Esse ano recebemos ajuda da Unidos da Tijuca e para o carnaval do ano que vem, a ajuda vem da madrinha, Estação Primeira de Mangueira. O carnavalesco Evandro Sebastian está modificando, recriando, remodelando essas fantasias doadas para o desfile da escola para o próximo ano.”
MN: E como é a preparação do carnaval com pouco recurso? Qual o maior desafio enfrentado tanto para colocar a escola na rua quanto de estrutura?
“É difícil! Colocar um desfile para frente vai além dos ensaios e da produção de fantasias. É uma jornada marcada por superação, criatividade e trabalho árduo que dura todo o ano. Para nós escolas do grupo de avaliação, geralmente usamos a frase: Um dia de cada vez. Para o folião, o carnaval termina na quarta de cinzas, para nós ele já começa na dispersão, quando recolhemos as fantasias utilizadas durante o desfile, os ferros e armações, pois tudo será reutilizado.”
MN: Sem subvenção a tempo, qual o plano B?
“Durante todo o ano a escola promove eventos para arrecadação. A escola também aluga a quadra para futebol de areia e, comerciantes locais ajudam com doações para a feijoada da escola. Dessa maneira, buscamos fazer o desfile acontecer, batendo de comércio em comércio e tendo ajuda das coirmãs.”
MN: Qual é a experiência de assistir ao desfile após dedicar todo o ano à preparação? “Sempre sinto como se fosse a primeira vez. Poder bater no peito e falar: eu sou Manguinhos. É o Quilombo Manguinhos. Preciso falar dos artistas anônimos que trabalham arduamente o ano inteiro, com pouco recurso e conseguem fazer história. A escola enfrentou diversos contratempos esse ano, mas a força dos integrantes faz valer a pena cada sacrifício.
Dia 28 de novembro foi publicado, no Diário Oficial, o decreto de número 53.632, referente à subvenção da Prefeitura do Rio para a realização do Carnaval 2024. Este valor deve cair na primeira quinzena de dezembro. É de suma importância que se debata uma regularização de valores e prazos para este repasse. Lei orgânica, para que não seja recorrente atrasos, e não tenha reajustes de valores condicionados sem que seja realizado por políticas públicas.
O carnaval carioca, ao ultrapassar os limites da Sapucaí, revela uma complexidade de desafios, resistências, superação e também beleza e muita alegria e diversidade. Este olhar abrangente busca proporcionar uma compreensão mais profunda do que está por trás do brilho e da festa, explorando as histórias de perseverança e a importância cultural do samba nas favelas.