A arte da preservação

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Profissionais do conserto de roupas, sapatos e panelas resistem ao consumo em massa e provam que preservar pode ser muito melhor que comprar novo

Maré de Notícias #109 – fevereiro de 2020

Flávia Veloso

Qual foi a última vez que você mandou um pertence para o conserto, para não precisar comprar novos? A grande quantidade de lojas, promoções e condições de pagamento facilitam a compra de novos produtos, levando ao descarte dos antigos. Por que não consertar, ao invés de descartar?

Certos produtos, como aparelhos eletrônicos, eletrodomésticos e móveis, ainda recebem uma segunda chance, devido aos preços mais elevados quando comprados diretamente nas lojas, mas tornou-se muito comum que se substituam roupas, sapatos, panelas e demais objetos que não custam tão caro assim.

Os costureiros, sapateiros e funileiros de panelas são profissões que datam milhares de anos na História da humanidade e que resistem ao tempo. Além do conserto de acessórios e objetos, os trabalhadores destes ofícios preservaram seu espaço se reinventando, e até usam suas habilidades para dar outras utilidades aos objetos que chegam às suas mãos.

Neste funileiro de panelas, a Maré confia

José Severino é referência trabalhando com conserto de panelas | Foto: Douglas Lopes

José Severino de Oliveira conserta panelas na esquina da Rua Teixeira Ribeiro com a Flávia Farnese, há 10 anos. Aprendeu o ofício observando outros profissionais trabalhando, e hoje faz conserto de qualquer panela.

Uma cliente fixa de Seu José diz que ele é um dos únicos funileiros de panelas que conhece na Maré, então quando precisa dar uma renovada nos utensílios, sai de sua casa no Morro do Timbau e leva até ele, que sempre faz um bom trabalho.

O funileiro diz que não é uma profissão difícil, mas que, às vezes, precisa de ferramentas de trabalho que só encontra em oficinas, como quando precisa desamassar as panelas.

“Todo dia vem cliente consertar panela, da favela toda. Tem gente que não conserta bem, então o pessoal volta aqui, e eu não cobro caro. De manhã, saio para comprar material, porque também vendo peças de fogão, e à tarde fico aqui, de domingo a domingo”, contou José Severino sobre o dia a dia de sua profissão.

45 anos de experiência na sapataria

José Paulo, o Paulinho – Parque União – conserta e também confecciona sapatos | Foto: Douglas Lopes

Já no Parque União, na Rua Raul Brunini, o sapateiro José Paulo, conhecido como Paulinho, recebe vários pedidos de conserto de sapatos, de clientes que confiam no seu trabalho. E não é para menos, o sapateiro tem 45 anos de profissão. Aprendeu por curiosidade, aos 8 anos de idade, quando ficava sentado na porta de um sapateiro, até que ele se ofereceu para ensinar o ofício ao pequeno José Paulo. Seu trabalho é tão bom, que brinca: “Só não conserto chulé.” A qualidade do trabalho fez com que os fregueses se tornassem fixos, conquistando gente até de fora da Maré. 

Paulinho explica que consertar sapato tem de valer a pena. Não adianta mandar para o conserto se o sapato estiver muito gasto, e isso é analisado pelo sapateiro. E os reparos não são muito baratos, portanto, o produto deve ser de boa qualidade, que valha em loja no mínimo R$150. Paulinho garante que, depois do conserto, é muito difícil que volte a apresentar defeitos.

José Paulo já confeccionou sapatos, mas explica que a confecção é muito difícil para ele fazer sozinho. Ele, inclusive, já inventou um tipo de sapato que não deixa entrar areia, mas infelizmente não conseguiu vender a patente: “Há anos inventei um sapato que não entra areia, inclusive virou notícia, mas não consegui uma empresa que comprasse a patente. Por fim, dei de presente para um rapaz, que sempre traz chuteiras para consertar, e ele afirmou, depois de usar, que realmente não entra areia”, contou, sobre sua criação.

Um novo olhar para as roupas

Creusa Rosa da Silva nasceu no interior de Pernambuco e aprendeu o básico da costura com as matriarcas da família. Aos 18 anos, veio para o Rio de Janeiro, onde já trabalhou como dona de bar, vendedora de flores, de sanduíche na praia, de alho no trem e fazendo quentinhas. A intensa troca de ocupações de Creusa é um traço de seu espírito livre. “Eu não poderia ser uma mulher do tipo ‘Amélia’. Sou dessas mulheres livres. Se eu quero, vou fazer. Temos de respeitar o espaço das pessoas e elas têm de respeitar o nosso”, exalta a pernambucana.

Creusa da Silva – Morro do Timbau – faz ajuste de roupas e cria peças de retalhos das roupas | Foto: Douglas Lopes

Há aproximadamente 10 anos, já morando no Morro do Timbau e onde também é costureira, Creusa começou a se aperfeiçoar no conserto de roupas e reaproveitamento de tecidos assistindo a vídeos na internet, e vem adaptando as técnicas que aprende para dar uma cara nova às peças. “Trabalho com conserto, porque as pessoas precisam. Às vezes, as roupas custam muito caro, então elas consertam. E eu não remendo as peças, porque acho que fica feio, faço consertos que dão um detalhe de customização”, explica sobre seu trabalho diferenciado.

Essa criatividade faz tanto sucesso que ela possui clientes em toda a cidade, muitas na Zona Sul, inclusive. Além do bom trabalho nos consertos, ela ainda transforma roupas: vestidos viram saias, calças ganham customizações e até retalhos e tecidos inutilizados viram bolsas, mochilas e chinelos, que ela vende na favela.

Nem tudo o que é descartado, é lixo, mas…

Jogar fora não pode mais ser uma atitude inocente. O Brasil é o 4º País que mais produz lixo no mundo, com um total de 380 kg de resíduos sólidos produzidos por pessoa ao ano (Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, 2018/2019). Certos materiais levam centenas de anos para se decompor.

Você sabia?

O sapato mais antigo já encontrado tem mais de 7 mil anos, é feito de fibra de plantas e foi encontrado no sítio arqueológico Arnold Research Cave, no estado de Missouri, nos Estados Unidos da América. Entretanto, nas pinturas rupestres (pré-históricas, que datam de 10 mil anos antes de Cristo), pode-se identificar sapatos usados pelas figuras humanas.

Você sabia?

Estudos mostram que as pessoas usam roupas há mais de 30 mil anos. As primeiras agulhas eram feitas de ossos de animais ou marfim. Foi só no século XIV depois de Cristo que a agulha de ferro foi inventada. Já a primeira máquina de costura foi patenteada em 1790, por Thomas Saint. O modelo da primeira máquina foi evoluindo até o ano de 1851, quando Isaac Singer, da famosa marca Singer, inventou a máquina de costura com pedal, a mesma usada ainda hoje.

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