A intolerância é uma forma de Dominação Social

Data:

Maré de Notícias #120 – janeiro de 2021

Por Professor Doutor Babalawô Ivanir dos Santos

A intolerância religiosa faz parte de um processo dicotômico da dominação social, política e religiosa: a divisão entre a “boa” e a “má” religião em solo brasileiro, na qual os adeptos das religiões africanas, com suas culturas e suas representações, configuram um mal a ser combatido pelos não adeptos dessas religiosidades. Entretanto, a compreensão sobre o que vem a ser uma boa ou uma má religião não faz parte da cosmovisão e das experiências dos adeptos das religiões de matrizes africanas, que têm por base as tradições dos grupos étnicos africanos que chegaram ao Brasil na condição de escravos. 

Para os religiosos e as religiosas de matrizes africanas, não existe o dualismo bem/mal; todas as ações, escolhas e vontades são de responsabilidade dos próprios indivíduos (e não de uma força ou um ente religioso que age sobre o indivíduo), que trouxeram consigo suas culturas, religiosidades, formas de ver e entender o mundo – ou seja, uma experiência religiosa totalmente diferente daquela que aqui dominava o país: o catolicismo. Esta experiência religiosa, em contato com o catolicismo português e as religiões nativas, ganhou novas ressignificações e reconstruções. 

Fomentados pelo racismo e pelo preconceito, os processos de colonização religiosa nas Américas ajudaram na construção de uma ideia e uma identidade não positivas das religiões e culturas de matrizes africanas – processos esses que foram instigados principalmente pelo crescimento dos grupos religiosos evangélicos pentecostais e neopentecostais e o acirramento das guerras espirituais. Destarte, do ponto de vista histórico, “conflitos e disputas” religiosos nunca deixaram de fazer parte das transformações sociais brasileiras. Sim, nunca deixaram, pois não existe unanimidade sobre religiões e religiosidades, seja aqui no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo. Entretanto, no Brasil, os conflitos religiosos, ou melhor, a INTOLERÂNCIA religiosa está de mãos dadas com o racismo e com todas as formas de preconceito. 

“É com educação e reeducação que vamos construir uma sociedade menos intolerante e menos racista.”
Professor Babalawô Ivanir dos Santos

A intolerância religiosa se camufla cotidianamente em opinião pessoal dentro da nossa sociedade. Opiniões essas que não permite enxergarmos o quão danosas são, para a sociedade brasileira, as violências patrimoniais, físicas, psicológicas e simbólicas contra as religiões de matrizes africanas. Um brevíssimo “passeio” nos fatos históricos nos revela que a intolerância religiosa contra os adeptos das religiões de matrizes africanas está intimamente ligada ao início e às transformações da sociedade brasileira. Já na década de 1980, ataques e atos de intolerância, principalmente no estado do Rio de Janeiro, passaram a ser praticados pelo poder paralelo (cujos membros hoje se identificam como “traficantes evangélicos), obrigando o fechamento, dentro das favelas, dos templos religiosos de matrizes africanas e proibindo o seu funcionamento.

Não podemos deixar de pontuar que tivemos avanços significativos no combate à intolerância, como a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), criada pela lei estadual nº 5.931/11 com o objetivo de combater os crimes de racismo e homofobia, preconceito e intolerância. A construção e realização de Fóruns Inter-religiosos que atuam na promoção da equidade religiosa e no fortalecimento de grupos de pesquisa, que se debruçam sobre o tema dentro das universidades públicas, também marcam um grande ponto de luta contra a intolerância religiosa. Contudo, ainda precisamos investir em uma pedagogia descolonizadora voltada para as diversidades e a pluralidade. É com educação e reeducação que vamos construir uma sociedade menos intolerante e menos racista. Pois todas essas “questões” não são “problemas” que precisam ser pensados apenas pelas vítimas desses crimes. A intolerância religiosa é uma questão social, política, econômica e religiosa e precisa ser debatida em todas as esferas dos poderes. 

A origem da data
O dia 21 de janeiro é conhecido como o Dia Nacional de Combate à Intolerância religiosa, instituída pela Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, em homenagem à Yalorixá Gildária dos Santos, a Mãe Gilda do Ilê Axé Abassá de Ogum, localizado na Bahia. Mãe Gilda veio a falecer após uma acusação de charlatanismo, o que motivou que integrantes de religiões protestantes invadissem o terreiro da Sacerdotisa, agredindo-a física e verbalmente. Após este episódio, Mãe Gilda sofreu um enfarte e morreu. Em 2020 completou 20 anos de sua morte.

Sobre o autor
Professor Doutor Babalawô Ivanir dos Santos é membro da Universidade Federal do Rio de Janeiro: pós-doutorando em História Comparada (PPGHC/UFRJ); pesquisador do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER/UFRJ) e do Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais e pré-coloniais (LEHA-UFRJ); está à frente da Coordenadoria de Religiões Tradicionais Africanas, Afro-brasileiras, Racismo e Intolerância Religiosa (ERA-RIR/LHER/UFRJ). É integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e conselheiro estratégico do Centro de Articulações de População Marginalizada (CEAP). Interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR); Conselheiro Consultivo do Cais do Valongo; Vice-presidente da América Latina no Conselho Internacional African traditional religious organizations, the Ancient Religion Societies of African Descendants International Council (ARSADIC), Nigéria.

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