A vida pautada pela luta em (sobre)viver

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A população transgênero convida a sociedade a combater a transfobia não só no Dia da Visibilidade Trans como durante todo o ano

Maré de Notícias #120 – janeiro de 2021

Por Thaís Cavalcante

Datas se tornam importantes a partir de seus significados. E aqui no Brasil não é diferente: foi preciso que pessoas trans, em 29 de janeiro de 2004, fossem ao Congresso Nacional  levantar o debate sobre essa população. Desde então, o dia nunca mais foi o mesmo, ao ser escolhido para ser o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data também viu nascer a campanha Travesti e Respeito: já está na hora dos dois serem vistos juntos, do Programa Nacional de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)/Aids do Ministério da Saúde.

A politização do movimento trans foi decisiva na luta pelos seus próprios direitos. Em 1992, surgiu a primeira organização política de travestis da América Latina, a Associação das Travestis e Liberados do Rio de Janeiro (ASTRAL). A partir daí, foram criadas associações e realizadas conferências, surgindo uma articulação nacional para levantar demandas dessa população como, por exemplo, o direito de ser reconhecida pela identidade de gênero escolhida.

Assim como entender suas lutas, conquistas e história, é necessário saber que a população transgênero é composta por travestis e transexuais, ou seja, pessoas que não se identificam com o seu gênero de nascimento. Uma pessoa transexual pode ser mulher trans, homem trans, ou pessoa trans não-binária (que não se identifica com o gênero feminino nem o masculino).

Resgatar o ontem sem esquecer o hoje

Keila Simpson

Keila Simpson, mulher trans e presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) de Salvador, afirma que o dia 29 é, sim, um marco histórico na luta dos movimentos organizadores, mas que, antes disso, a militância trans já resistia à forma como a sociedade a compreendia. Por isso, relembrar a luta individual e coletiva, resgatar a memória e celebrar a data é expor a naturalização de que tanto precisam.

“Não existe uma característica que determine todas as pessoas. Essa população vem da realidade da falta de políticas públicas e sempre foi colocada em segundo plano. Foi só começando a reivindicar, de fato, esse pertencimento à sociedade para se  entender que as diferenças são só físicas e de gênero. Todo mundo é humano. Somos iguais a qualquer outra população vulnerável”.Sobre os maiores desafios enfrentados, Keila cita três, fundamentais. O primeiro é viver, pois, de acordo levantamento da Antra, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans em todo o mundo. O segundo desafio é sobreviver, buscando ainda direitos humanos básicos. O terceiro é a inserção dessa população na sociedade – na escola, no mercado de trabalho, na roda de amigos, no jantar de família.

Movimentos de favela na luta por direitos

Um povo historicamente marginalizado e vulnerável também se articula para garantir direitos básicos de quem vive em favelas e periferias. Essa realidade foi abraçada por organizações da sociedade civil, ativistas e militantes, que se mobilizam e criam alternativas dentro de seus territórios marginalizados e com seus próprios corpos.

Gilmara Cunha

Gilmara Cunha, ativista e mulher negra trans, é estudante de psicologia e moradora da Nova Holanda. Líder do Grupo Conexão G de Cidadania LGBT para Moradores de Favelas, ela conta que, durante a pandemia, as organizações que cuidam e apoiam essas pessoas precisaram se reinventar para atender demandas como a falta de acesso a benefícios, documentação e emprego. A sede do Conexão G fica na Maré e foi a primeira ONG do país comprometida com a causa LGBT em favelas. Outra conquista de Gilmara foi o reconhecimento do seu trabalho através do recebimento da Medalha Tiradentes, a maior honraria concedida pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).

A responsabilidade é grande e se concentra no combate à violência, na busca pela educação de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros e a promoção da saúde para essa população. “Conexão G tem a perspectiva de construir políticas públicas para uma população que é apagada, pensar em como essas políticas LGBT, que a gente acredita ser um avanço dentro do sistema governamental, podem chegar nessa população”, diz. Segundo ela, existe uma política avançada no movimento, mas não é suficiente. “Ainda temos que pautar nossa existência”.Quem também faz isso com recorte de gênero é a Coletiva Resistência Lesbi de Favelas, que existe há 12 anos no território mareense. O grupo lançou em 2020, juntamente com o Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), o Mapeamento sócio-cultural-afetivo das lésbicas e mulheres bissexuais do Complexo da Maré. Os dados sobre a existência dessas mulheres serão a base do fortalecimento das políticas públicas existentes e do estímulo à criação de novas.

“Precisamos constranger o Brasil para que ele tome conta dessa população, dizendo para a comunidade internacional, para os governos municipais, estaduais e federal, que olhem para esses números e desenvolvam estratégias para erradicar a violência e dar um fim a essas mortes.”

Keila Simpson, mulher trans e presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra)

Saúde pública pra quem?

Leonardo Peçanha

Dentro dessa realidade, a saúde pública para transgêneros é uma das necessidades mais urgentes. Centros de referência, ambulatórios e clínicas que os atendem são poucos e têm estrutura precária, afirma Leonardo Peçanha, que é homem negro trans, Mestre em Ciências da Atividade Física e especialista em gênero e sexualidade. “A gente esperava que o atendimento de pessoas trans fosse mais humanizado. Existe uma dificuldade de o profissional de saúde usar os protocolos que já existem. Afinal, somos humanos também”, observa.

Ele cita como exemplo o tratamento hormonal para pessoas trans. “Não é diferente de uma pessoa cisgênero. Se o médico se negar a fazer o tratamento, é preconceito e transfobia”. Leonardo admite, ainda, que questões como essa alimentam as vendas de medicamentos e insumos não acessíveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no mercado paralelo para quem se encontra em estado de maior vulnerabilidade.

O preconceito que atinge a população LGBTQIA+ em relação às IST e ao vírus da Aids (o HIV) também é um obstáculo ao acesso à saúde, estimulando a transfobia e a homofobia. Entretanto, os números vão no sentido oposto do senso comum estabelecido ainda nos anos 1980, quando o HIV se tornou conhecido. Heterossexuais são mais da metade dos brasileiros contaminados pelo vírus através do sexo, de acordo com o Boletim Epidemiológico de HIV/AIDS do Ministério da Saúde, atualizado em 2019.

“Isso tem a ver com a moral daquela época. É uma hipocrisia achar que pessoas LGBTs vão pegar a doença e espalhá-la. Doença dá em todo mundo”, diz Leonardo. Ele se refere à epidemia de Aids que afetou essa população nos anos 1980, impactando mais homens gays e levantando questões sobre saúde e sexualidade. Não à toa, o reconhecimento governamental dessa população veio a partir da resposta ao alastramento da doença. Os direitos e as garantias fundamentais para transgêneros ainda estão avançando, assim como medidas para minimizar historicamente as injustiças que impactam a essa população e garantir direitos que ainda são negados a ela. A luta é contínua. Keila Simpson fala da importância do levantamento feito pela Antra. “Precisamos constranger o Brasil para que ele tome conta dessa população, dizendo para a comunidade internacional, para os governos municipais, estaduais e federal, que olhe para esses números e desenvolva estratégias para erradicar a violência e dar um fim a essas mortes. O mapeamento é um pedido de socorro para que essas pessoas possam viver”, conclui.

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