A Maré é um celeiro de escritores

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Autores mareenses mostram a força da favela em livros 

Maré de Notícias #126 – julho de 2021

Por Hélio Euclides

Maria Carolina de Jesus, Ferréz, Sérgio Vaz, Rodrigo Ciríaco e Conceição Evaristo são alguns dos autores que sempre lutaram pelo reconhecimento da literatura da periferia como um segmento importantíssimo para a sociedade. Eles inspiram novos escritores a reproduzir via literatura a voz da favela e suas vivências. Na Maré, escritores mostram a força do território mas, apesar dos avanços, eles ainda lutam para superar dificuldades, como problemas financeiros e a falta de espaço no mercado editorial. 

“Esses escritores têm uma importância enorme pelo lugar a que pertencem”, defende o professor Rodrigo Alexandre, supervisor do Setor de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para ele, os escritores precisam que sua obra também seja absorvida fora da favela. “Acredito que é essencial existir a união de forças. Para isso, a universidade precisa acolher esses escritores; só assim ampliam-se as vozes. O grande problema é que o mercado editorial não abre as portas. É preciso entender que se existem livros de Carolina de Jesus e Conceição Evaristo não é porque essas empresas são boazinhas“, explica. Alexandre acredita que é preciso aprimorar os escritores, mostrar estratégicas e ensinar técnicas por meio de oficinas –e esse trabalho precisa ser desenvolvido em cursos de extensão da universidade. 

Uma das ferramentas de destaque para evidenciar a literatura periférica é a organização de eventos como o Congresso de Escritores da Periferia de São Paulo; a Festa Literária das Periferias (FLUPP), que acontece no Rio e já está na nona edição, com produção literária da geração de escritores favelados; e o Festival Favela Literária, cuja única edição ocorreu em 2019, também no Rio, organizado pela Central Única das Favelas (CUFA).

Segundo Alexandre, não se pode aceitar que uma criança saia da escola pública sem conseguir ter plena compreensão do que lê. “É necessário reforçar a educação para mostrar os invisíveis e, assim, termos uma nova escola. A biblioteca não pode ser o lugar do castigo, ler um livro e escrever um resumo dele não deve ser uma punição. Hoje, se troca a leitura pelas redes sociais. Ela não pode ser apenas por interesse, tipo passar no ENEM. O momento por que o país passa também atinge os escritores. O Brasil ficou mais pobre de saber, por não ter investimento em educação. Há um ministério que deseja taxar livros, um governo que corta verbas para bolsas científicas. O país tem um governo que só deseja movimentar a economia, nunca o cérebro”.

Marcos Diniz

A voz nas páginas de um livro

Para quem escreve, fica a dúvida: será que ficou bom? A desconfiança faz com que muitos escritores deixem as suas produções arquivadas. Marcos Diniz começou na escrita ainda na infância. Ele sempre guardava tudo o que produzia, o que só mudou em 2016, quando participou do seu primeiro edital, incentivado por um amigo. “Comecei a entender que alguém tinha gostado do que escrevo. Vi que ser escritor não é só ser famoso e sim, o exercício da escrita”, conta. Ele já acumula 20 antologias e mais um livro publicado.

Para Diniz, escrever é o ato de criar mundos, histórias, personagens, de tocar outras pessoas. “Desejo escrever profissionalmente, o que é algo libertador. Sou um autor da Maré, incentivo o consumo de cultura da favela. A fala na favela se fortalece e nos faz conhecer o território”, relata.

Adriana Kairos

Adriana Kairos, moradora do Parque União, tem seis livros escritos e criou o projeto A Literatura dos Espaços Populares Agora (Alepa), que estimula a produção poética e ficcional de autores oriundos de periferias. Ela reclama que o maior problema do autor periférico é a falta de recursos para a publicação de novos trabalhos. Para Adriana, a voz da periferia é necessária e precisa ser ouvida porque, durante muito tempo, outras vozes vinham de fora para dentro. “O que falta para que registros de memória e ficção de autores periféricos sejam escritos e publicados é uma política pública na área da educação e cultura”, avalia. Ela acredita que um incentivo seria a realização de eventos como saraus ou slams que, infelizmente, não são divulgados – muitos não são nem mesmo documentados. 

Matheus Araújo

Outro escritor mareense é Matheus de Araújo, morador do Rubens Vaz, que lançou em 2018 o livro Maré Cheia, numa edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). De lá para cá, veio a pandemia e Matheus interrompeu a carreira de escritor pela necessidade de contribuir com a renda familiar. “Queria ter estabilidade financeira e psicológica, mas não somos escritores ricos que podem acordar cedo e ficar no quintal de casa ou na rede escrevendo num bloquinho de nota. Nós escrevemos quando estamos voltando para casa no ônibus, quando conseguimos sentar”, diz o autor, acrescentando que o retorno à atividade é um desafio, mas o momento é de paciência.

Vitor Felix

Desde que aprendeu a ler e escrever, Vitor Felix não largou mais os livros. “A minha escolha em ser um escritor começou no fim do Ensino Médio, num concurso de redações. Foi ali que descobri que a escrita podia ser levada a sério”, revela. Ele acredita que é desafiador ser autor em favela, pois isso vai na contramão do que a sociedade espera. ”Quando eu escrevo, também marco a presença da favela nesse lugar da inteligência”, diz. Felix dá dicas para quem quer escrever, como correr atrás de espaço em revistas literárias, saraus e construir uma rede de leitores aos poucos. Ele ressalta, porém, que esse é um trabalho de resultados a serem colhidos no longo prazo.

Sara Alves

Muitos escritores escrevem sobre o que presenciam no território. Sara Alves, moradora da Vila do João, tem dois livros publicados e sabe que é preciso muita luta: pobres sempre escreveram, só não são valorizados. “Temos o excepcional exemplo de Carolina Maria de Jesus. Minha escrita é mais que terapia, é uma maneira de expor meu olhar, minha indignação, tristeza, lutas e direitos. Diante da complexa realidade em que vivo, com o contexto sociopolítico e econômico, a escrita foi surgindo como uma forma de desabafo”, conta a autora, enfatizando ser indispensável o incentivo à leitura e o direito à educação.


Iniciativas que incentivam novos escritores

Crianças usuárias das bibliotecas Lima Barreto e Jorge Amado exibem os livros que escreveram em atividades nas salas de leitura – Arquivo Biblioteca Lima Barreto

O projeto Livro Labirinto nasceu em 2017, numa parceria entre a Caju Conteúdo e Projetos e a Redes da Maré. Uma das atividades realizadas é o clube de leitura da Biblioteca Lima Barreto, na Nova Holanda. Em tempos pandêmicos, as leituras coletivas têm acontecido de forma remota. No momento, as crianças estão lendo o livro Amoras, do cantor e compositor Emicida, enquanto os jovens iniciam o ciclo sobre Torto Arado, de Itamar Vieira Jr., e Memórias da Plantação, da artista e pensadora Grada Kilomba.

Outra iniciativa acontece no Espaço de Leitura Jorge Amado, que fica na Lona Cultural Municipal Herbert Vianna. São atividades literárias, como encontro com autores e rodas de conversas, onde as crianças são estimuladas a escrever e produzir suas próprias histórias. Em parceria com o projeto Escritor Para o Futuro, foi possível produzir livros, nos quais as crianças são protagonistas, escritores e ilustradores das histórias que elas mesmas criam. Os livros são Maré de Alegria e Maré Herança Ancestral. “Quando leio, aprendo coisas novas. Quero mostrar como é a Maré, falar das coisas boas, que muitas pessoas não veem”, diz Marina de Souza, de 10 anos, moradora da Nova Holanda.

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