“A mobilização do território só foi possível graças ao trabalho que fazemos há 20 anos na Maré”

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Uma entrevista com a paraibana Eliana Sousa Silva, que cresceu na Nova Holanda, uma das 16 favelas da Maré, onde morou por 30 anos e desde muito cedo começou a atuar como ativista e acadêmica. 

Por Luciana Bento – Jornalista e coordenadora de comunicação do Conexão Saúde na Maré

A operação, complexa, envolveu diferentes atores, mobilizou mais de 500 profissionais de saúde e engajou 1.620 voluntários. Ao final, contando dois dias de repescagem, 36 mil pessoas foram vacinadas com pelo uma dose do imunizante AstraZeneca. Hoje, 96% dos moradores da Maré acima de 18 anos estão vacinados com a primeira dose – número muito acima da média nacional. Números e resultados que foram comemorados e divulgados, mas uma dimensão mais sutil da campanha Vacina Maré chamou a atenção da mídia e de diferentes atores: a capacidade de mobilização de moradores e de articulação de parceiros dentro e fora do território para que a ação ocorresse em tão pouco tempo.

Uma dimensão que aconteceu em apenas duas semanas, fora dos holofotes, no chão de cada uma das ruas das 16 favelas que formam a Maré e que revelou para o País a potência de uma organização da sociedade civil que atua há mais de 20 anos no território: a Redes da Maré.  À frente da organização está a paraibana Eliana Sousa Silva, que cresceu na Nova Holanda, uma das 16 favelas da Maré, onde morou por 30 anos e desde muito cedo começou a atuar como ativista e acadêmica.  Eliana cedeu essa entrevista exclusiva para o boletim Conexão Saúde – De Olho no Corona

A adesão, os resultados, a forma como a ação aconteceu, o engajamento de influenciadores, artistas, associações de moradores, instituições locais, unidades de saúde e escolas… Esta capacidade de mobilização, esta potência no território, chamou muito a atenção durante a campanha Vacina Maré. Pode nos contar como tudo aconteceu?

Foram muitos desafios e a vacinação em massa era o principal deles, mas não o único. Foi necessário primeiro informar os moradores de que a ação iria acontecer, convencer os moradores a aderir, propagar a ideia de que a vacinação não é um ato individual, tem a ver com o cuidado e proteção coletiva, organizar a logística, engajar parceiros, angariar voluntários, mapear quem ainda não estava cadastrado na clínica da família para que ninguém ficasse excluído do processo.

Organizar tudo isso em tão pouco tempo não foi um processo mágico e sim algo construído ao longo do tempo, incluindo as parcerias necessárias e fundamentais para que as coisas aconteçam. Parcerias, articulações, produção de dados e tecnologias de mobilização que temos cultivado e experimentado ao longo dos anos. 

Estamos falando de uma expertise histórica, mas a pandemia potencializa os desafios e traz questões novas, que sequer existiam

Exato. Muita coisa tem sido construída à medida em que os acontecimentos vão se desenrolando e novos problemas surgem. Em relação à pandemia, vimos a necessidade urgente de atender pessoas que perderam renda e estavam passando fome e desenvolvemos a campanha Maré Diz não ao Coronavírus.  A partir das necessidades que detectamos no território, buscamos parcerias para a criação do projeto Conexão Saúde – De Olho na Covid – que foi fundamental para que a ação Vacina Maré fosse realizada. E agora partimos para outra fase, com o estudo liderado pela Fiocruz sobre os efeitos da vacina sobre os moradores da Maré e todos os desdobramentos que virão a partir dos resultados obtidos. 

A comunicação teve um papel estratégico nestas ações? Como é esclarecer, informar e mobilizar moradores em tempos de fake news, com tantas informações falsas circulando não só na Maré, mas em todos os ambientes?

Para mim, a informação, a comunicação e a mobilização caminham juntas. Não tem como separar. E assim como as outras tecnologias sociais que citamos, como produção de dados na favela e articulação de parceiros, a comunicação tem sido prioridade em nosso trabalho. No caso da Vacina Maré, procuramos trabalhar em 360 graus. Usamos desde megafones, na comunicação de rua até estratégias nas redes sociais, passando por veículos comunitários, informações via WhatsApp, podcasts, assessoria de imprensa e colaboração de artistas e influenciadores digitais. 

Quando envolvemos neste processo alguém como o Raphael Vicente, que é um influenciador digital da Maré, vemos a potência do capital humano presente no território, um jovem que atinge um público inacreditável, de uma forma muito eficiente. Temos que olhar para estas possibilidades e trabalhar da melhor forma com elas. Foi esta frente que possibilitou levar uma mensagem clara até as pessoas e isso é essencial. As pessoas não se engajam em algo que esteja claro que fará bem pra elas. Para além da Vacina Maré, a comunicação tem tido um papel essencial na pandemia. Se a gente for pensar na disseminação de fake news hoje, na forma como as pessoas consomem as informações falsas, é muito grave. E como em muitos momentos trabalhamos a informação científica, complexa, que é distante das pessoas, saber informar é fundamental em todo o processo. 

Você fala bastante da necessidade de construir projetos estruturantes na Maré, de organizar ações que vão além dos eventos em si. Como a Vacina Maré se insere neste objetivo de longo prazo? 

Quando falamos da perspectiva de um projeto estruturante, precisamos compreender a complexidade dos problemas e desafios que temos ali – principalmente porque não temos, nas favelas, direitos efetivados como em outras partes da cidade. Então, mais do que uma ação isolada, a campanha Vacina Maré engloba a identificação de uma demanda, produção de conhecimento, logística, organização e construção de metodologias sociais que envolvem inovação, mobilização, comunicação, informação segura. Tudo isso se desdobra na construção de políticas públicas, de efetivação de direitos. 

E como construímos um processo orgânico, legítimo e dinâmico, que envolva a população?

Para nós, esta ideia de continuidade que é a mais importante. Ela tem a ver com o direito à saúde de qualidade, entender as demandas que os moradores têm, saber as reais condições de vida e bem-estar destas pessoas, que ações preventivas podem ser implementadas… 

Com a vacinação caminhando, como você enxerga o porvir – não só na Maré, mas a nível global?

A pandemia está dando uma medida mais clara de como a sociedade precisa se envolver para que as coisas mudem de rumo. A vacinação é de interesse público, acima de qualquer questão. Vivemos um momento complicado onde as questões coletivas são colocadas em xeque a todo momento, sobretudo no Brasil. Temos que reconhecer esta potência coletiva, de tanta coisa que foi feita pela sociedade civil durante a pandemia, mas também de olhar para os desafios e fragilidades que temos como País, especialmente dentro do campo da saúde. Acredito que nossa situação no Brasil não é pior por causa do SUS, da sua construção e papel ao longo das últimas décadas, do engajamento e compromisso de seus profissionais.Acho que vamos ter que olhar as perdas que tivemos, que não foram poucas. Perdas humanas, mas também em outras áreas, de sucateamento de equipamentos públicos, perdas de direitos, de esperança ao vermos tanta gente passando fome, de questionamento da ciência…  Com a vacina vamos ter a possibilidade de respirar e avaliar como a gente está saindo disso tudo, sabendo que ela não é uma solução mágica. Daqui pra frente, não tem como fugir: é o cuidado com a vida coletiva, com o meio ambiente, com os desequilíbrios e desigualdades. A solução está com a gente. 

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