A nova literatura brasileira é das favelas e periferias; conheça escritor José Falero

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Por Jorge Melo, em 12/09/2021 às 07h

Se você é jovem, pobre, mora numa favela, sonha ser escritor e acha que esse sonho é impossível, preste bem atenção à história de José Falero (José Carlos da Silva Júnior). Gaúcho, 34 anos (1987), morador de uma das vilas, a versão gaúcha das favelas mais pobres de Porto Alegre.

A Lomba do Pinheiro, onde Falero vive com a mãe, é muito parecida com as 16 favelas que compõem a Maré:casas amontoadas, muito tijolo aparente, um emaranhado de fios da rede elétrica, lixo nas esquinas, água empoçada, violência e ações policiais que desrespeitam o cidadão. Mas como toda favela, há muita gente boa, que vive, trabalha, faz comércio e conta histórias incríveis, divertidas, tristes, bizarras, inacreditáveis, românticas. José Falero faz parte desse grupo, nascido em Porto Alegre em 1987, o escritor que estreou, em 2019, com VILA SAPO, elogiada reunião de contos. Atualmente, ele mantém uma crônica semanal na revista digital Parêntese.

Em 2020, com um livro chamado “Os supridores” (Editora Todavia, 2020), a versão sulista dos repositores, funcionários que abastecem as gôndolas dos supermercados, Falero foi considerado umas das maiores revelações da Literatura brasileira.

Me parece que meus textos refletem muito da minha vivência e da minha formação, de modo geral. A violência e a precariedade, por exemplo, sempre estiveram, e ainda estão, ao meu redor, compondo o universo onde habito, e elas também aparecem com bastante frequência em tudo que eu escrevo. Mas costumo trazer um olhar crítico em relação a elas, uma revolta associada a elas, porque nunca consegui engoli-las, nunca fui capaz de aceitá-las. Outra coisa muito presente nos meus textos é o bom humor. Acho que nós da periferia somos especialistas nisso, e não à toa: nossa vida é bastante dura, e por isso o nosso exercício de procurar motivos pra sorrir é diário, constante.” conta José Falero.

O escritor gaúcho leu o primeiro livro aos 20 anos. Não gostava de ler, achava as revistas em quadrinhos, principalmente os mangás, os videogames e os filmes mais interessantes porque apresentavam imagens, no caso dos quadrinhos; som e imagem no caso dos filmes e a possibilidade de controlar os personagens nos videogames.)

A volta à escolas e os Racionais

Ao ler o primeiro livro, do início ao fim, Besta Fera, de Jack Wood, uma história sobre lobisomens, para provar à irmã que realmente não gostava de ler, Falero se encantou com a possibilidade de imaginar, que só a Literatura permite: dar rosto, corpo, figurino e movimento aos personagens; escolher os lugares, interpretar as situações. Na realidade uma história que é apenas daquele leitor, baseada em suas experiências, vivências. Falero desde então transformou-se num leitor voraz. Leu de tudo, Política, História, Filosofia.

E através da leitura começou a ver o mundo de outra forma. As diferenças, a pobreza, as desigualdades, a política, o poder, as classes sociais. E começou a entender por que o mundo é dessa forma. Decidiu voltar à escola, em 2020. ”Nós experimentamos, neste momento, no Brasil, uma terrível ascensão de forças fascistas, antidemocráticas — forças, essas, que são um tipo de resistência, uma espécie de revide aos importantes progressos que vínhamos fazendo até o golpe de 2016. Não era difícil perceber que a nossa sociedade, até então, vinha experimentando transformações positivas, proporcionadas principalmente pelas políticas de ações afirmativas. O perfil das pessoas que tiveram acesso às universidades ocasionou uma verdadeira revolução no debate público brasileiro. Nunca se debateu de maneira tão ampla e profunda coisas como o racismo, o machismo, enfim, todas as problemáticas sociais de um país absolutamente injusto como o nosso e os mecanismos de manutenção de privilégios. Creio que a abertura do mercado literário para escritores como eu vem na esteira dessa transformação. E as editoras, que de bobas não têm nada, rapidamente perceberam a enorme demanda que existe pra toda essa diversidade por tanto tempo reprimida”, reflete Falero.

O escritor viveu um trauma quando tinha onze anos. Ao declamar uma letra do grupo de Rap, Racionais MC’s, foi praticamente expulso pela professora da sala. A letra recitada e interrompida era A fórmula mágica da paz, do álbum clássico dos Racionais, Sobrevivendo no Inferno. Falero continuou na escola até os 16 anos, mas achou que ali não era um lugar para ele. Foi trabalhar, ajudar nas despesas da casa. Mas as leituras e o mundo que se abriu para ele a partir dos livros o fez mudar de ideia. Agora quer ser professor. Até porque nos dias de hoje, os Racionais são lidos em escolas de todos os níveis e utilizados até mesmo em provas de seleção para o Ensino Superior. A experiência naquela sala de aula, no entanto, deixou marcas e foram necessários muitos anos até retornar à Escola de Jovens e Adultos-EJA.

“A escola tem muitos problemas, mas é um espaço de aprendizado e crescimento importante. O ideal, claro, seria que a escola caminhasse no sentido de não expulsar ninguém; que caminhasse no sentido do acolhimento; que caminhasse no sentido de abranger as diversidades e interagir com elas, produzir conhecimento junto com elas, em relação a elas. Acho, inclusive, que muitos progressos foram feitos nesse sentido, quando comparo a escola de hoje com a escola do meu tempo de Ensino Fundamental. Ainda há muito trabalho a ser feito, mas, como eu disse, a escola é um espaço de aprendizado e crescimento importante, e me parece melhor hoje do que foi no passado.

Foto: Josemar Afrovulto

Todo mundo gosta de Literatura

Ex-ajudante de pedreiro, auxiliar de cozinha, supridor em redes de supermercados e porteiro, Falero nunca imaginou que pudesse um dia ser um escritor, manter a casa e pagar os boletos com dinheiro ganho com a escrita. Literatura não dá dinheiro, com algumas poucas exceções. O brasileiro lê pouco, 2,43 livros por ano, segundo pesquisa do Instituto Pro-Livro. Mas a Literatura pode abrir portas, conectar pessoas e ideias e até criar redes de solidariedade.

A casa de Falero literalmente caiu, ou quase; e uma vaquinha na internet o ajudou a construir uma nova, simples, mas em melhores condições para a saúde da mãe. Os doadores eram pessoas que tinham lido seus livros; escritores que admiravam seu trabalho e críticos que consideram importante o tipo de Literatura que faz. “No modo como vejo as coisas, não há como um ser humano não gostar de literatura, seja esse ser humano da periferia ou não. É uma questão de experimentar e exercitar. É possível não experimentar e/ou não exercitar o contato com a literatura. Isso, sim, acontece bastante no Brasil. Acontece demais. Acontece mais do que seria recomendável. Pessoas e mais pessoas que não experimentam e/ou não exercitam a leitura e a escrita. Mas não creio que seja possível uma pessoa experimentar e exercitar regularmente o contato com a literatura e não gostar. Penso assim por que esse contato com a literatura, a meu ver, realça muitos aspectos da própria humanidade. Mata um tipo de sede e um tipo de fome. O problema é que a nossa sociedade, infelizmente, é especialista em uma coisa: desumanizar. Nos desumaniza de diversas formas. Nos desumaniza com a precarização do trabalho, nos desumaniza com distribuição de renda injusta, nos desumaniza ao nos dificultar — e muitas vezes mesmo impossibilitar — o lazer, o estudo e a fruição. E nos desumaniza, também, ao nos apartar da literatura. E nos aparta da literatura em diferentes esferas. De modo geral, há pouco incentivo à leitura e à escrita no Brasil, e a periferia em particular ainda precisa lidar com uma produção literária que historicamente a representou pouco e mal, contribuindo para destruição da subjetividade dos cidadãos periféricos em vez de potencializá-la.”, analisa.

“Os supridores” não foi o primeiro livro de Falero. A estreia foi com “Vila Sapo” (Editora Venas Abiertas, 2019) em 2019, um livro de contos. A editora acreditou tanto no trabalho de Falero que pegou um empréstimo para lançar o livro e ele bateu pernas por Porto Alegre, com livros na mochila, vendendo exemplares até pagar o empréstimo. Hoje, os direitos recebidos pela venda de “Vila Sapo”, mesmo parcos, ajudam a pagar as contas do mês. Já “Os supridores” foi um sucesso de público e crítica, contribuindo para consolidar um movimento lento mas irreversível: escritores oriundos das periferias e favelas contando suas histórias, trazendo um novo olhar e novas formas; com uma linguagem absolutamente original.

“Na minha opinião, o ato de ler e o ato de escrever, realçam muitos aspectos da própria humanidade, e um desses aspectos é a potencialização do intelecto. Para Sócrates, e pra mim também, “a palavra é o fio de ouro do pensamento”. Ou seja, o próprio pensamento humano é um tecido dourado, e cada fio desse tecido é uma palavra; as palavras são as porções elementares que compõem o nosso pensamento; a nossa capacidade de pensar é fundamentalmente baseada em palavras.

Dessa perspectiva, nada mais saudável ao pensamento humano do que conhecer mais e mais palavras novas, entender os modos como elas se relacionam, especializar-se na expressão a partir delas, desfrutar da delícia de construir com elas e compreender as construções de terceiros também feitas delas. E os dois exercícios mais efetivos nesse sentido são a leitura e a escrita: é por meio desses dois exercícios que melhor se pode familiarizar-se com as palavras e com tudo o que é possível a partir delas.

Todo esse processo torna o pensamento mais lúcido e mais robusto, mais propício ao desenvolvimento de um olhar crítico em relação à sociedade e, por consequência, mais propício à consciência social. Mas olha só como são as coisas. Darcy Ribeiro disse que “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é projeto”. Bem, acontece que afastar o povo brasileiro das letras, fazer as pessoas não verem sentido na literatura, desumanizá-las por esse caminho, romper o vínculo natural entre esses seres humanos e a expressão literária, isso também sempre foi um projeto.”

Um mundo de histórias

Uma escrita capaz de chamar atenção de escritores, críticos e editoras é resultado de muito esforço e treino. Além de ler muito e tentar entender as técnicas empregados pelos autores, Falero também escreveu muito, mesmo quando não havia perspectiva de publicar. Ele começou fazendo quadrinhos artesanais, usando personagens do bairro. Foi o primeiro sucesso. Os vizinhos faziam fila à espera de novas histórias. Nos períodos de desemprego, o escritor trabalhava em média dez horas por dia nos seus textos. Escrevendo e reescrevendo, testando formas, soluções, linguagens. Quando era porteiro do horário noturno aproveitava o silêncio e a falta de movimento para escrever. Ele diz, ironicamente, que foi a primeira vez que lhe pagaram para escrever. Os maiores elogios do público, escritores e críticos são para a capacidade de Falero mesclar o popular, as gírias, palavrões, expressões da cultura da periferia com a norma culta, a linguagem elegante e muito humor. “Mas, se eu tivesse que destacar apenas uma coisa em particular, uma marca que a minha formação e a minha vivência na periferia imprimem com um pouco mais de força no meu texto, eu ficaria em dúvida entre duas coisas igualmente relevantes.

A primeira é a linguagem. Temos as nossas gírias, temos uma forma muito particular nossa de nos relacionarmos com os palavrões, temos o nosso próprio jeito de fazer concordâncias, temos a nossa própria sintaxe, temos a nossa própria gramática. E tudo isso é complexo, dinâmico, pulsante, expressivo, vivo, livre; corre solto, modifica-se rápido. A outra coisa é o perfil dos personagens que protagonizam as minhas histórias. Gente como eu e como as pessoas que me cercaram a vida inteira. Gente que experimenta a sociedade de maneira semelhante à minha, que enfrenta os mesmos tipos de adversidades que eu. O povão. Supridores de supermercado, faxineiros, porteiros, trabalhadores da construção civil. Gente simples, porém cheia de sonhos, anseios, aptidões; gente dona de uma enorme potência — uma potência que costuma ser apagada pela maneira caricata que essas pessoas foram representadas na literatura brasileira historicamente”, finaliza

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