Aproveitamento integral dos alimentos dribla a fome

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Oficina de gastronomia marca o encerramento do projeto Impacto de Vida

Por Adriana Pavlova em 23/08/22 às 7h

A pandemia de covid-19 arrastou cerca de 14 milhões de brasileiros de volta para o mapa da fome. Hoje, 33 milhões de pessoas no país não têm o que comer todos os dias, número que quase dobrou desde o início da crise sanitária, em 2020. Enquanto o Brasil conhecia esses dados assustadores, 77 mulheres da Maré aprendiam como aproveitar alimentos de forma integral, em oficinas ministradas por instrutoras do curso de gastronomia Maré de Sabores, da Casa das Mulheres. As aulas marcaram o encerramento do projeto Impacto de Vida, um desdobramento dos aprendizados da campanha Maré diz NÃO ao coronavírus, articulada pela Redes da Maré com diferentes parceiros.

Nas aulas que aconteceram na cozinha da sede na Redes no CIEP Gustavo Capanema, na Vila do Pinheiro, e na Casa das Mulheres, no Parque União, as participantes cozinharam, junto com as professoras Adriana Moreno e Lívia Santos, quitutes como pão árabe de frigideira, bolinho de arroz, sopa de abóbora com chips de alho-poró, salada de feijão, conserva de beterraba, molho pesto feito com talos de espinafre e doce de banana com maracujá. 

Se muitas alunas estavam tímidas no começo, aos poucos — cortando legumes e temperos, descobrindo ingredientes nunca usados como o alho-poró, medindo farinha, refogando e fritando juntas — elas foram ganhando intimidade e se soltando para terminar tudo com uma deliciosa degustação de sabores nem sempre conhecidos.

Moradora da Vila do João, Érica de Fátima saiu da aula feliz com a experiência e disse ter gostado do que poderá fazer daqui para frente para tornar a comida do dia a dia mais saborosa e saudável. 

“Aprendi que a gente não joga os talos das folhagens fora e também pode fazer caldo de legumes caseiro, evitando comprar aquele caldo pronto para dar gosto na comida. Nunca tinha imaginado fazer um pão na frigideira, que é muito prático. Também aprendi que a sobra de pão francês pode ser transformada na farinha panko, usada para empanar o bolinho de arroz”, diz.

Mãe de um menino de 4 anos e de uma garota de 14, Érica teve que mudar drasticamente o cardápio de sua casa durante a pandemia porque foi demitida da creche onde trabalhava; o marido, que é porteiro, sofreu corte de salário. Para ela, o cesta de alimentos entregue pelo Impacto de Vida fez muita diferença para manter as refeições diárias. “A cesta ajudou muito, principalmente os alimentos orgânicos, porque a gente não estava mais comprando nada de verdura. Até dava para comer mas faltava legume e fruta”, conta.

Antônia Adriana Rodrigues da Silva, também moradora da Vila do João, aproveitou a oficina para cozinhar ao lado da filha Camila. Ela perdeu o emprego num restaurante self-service na Maré por conta da pandemia e hoje faz bico numa lanchonete perto de casa. Mãe solo de três, Antônia chegou a sofrer com falta de comida na época em que as escolas ficaram fechadas.

“Todo mundo estava em casa e teve dias que não tínhamos o que comer. Minha irmã me ajudou e depois, com sorte, encontrei com a assistente social da Redes da Maré na rua. Até então não conhecia a Redes. Fui entrevistada, passamos a receber a cesta de alimentos e as crianças ganharam o tablet para se conectarem com a escola. Depois que as aulas presenciais foram suspensas, eles não tinham qualquer contato com os professores”, relembra.

Criatividade na cozinha

A experiência na oficina de aproveitamento integral de alimentos animou Antônia a participar do processo seletivo para as aulas regulares do curso de gastronomia Maré de Sabores, na Casa das Mulheres, no segundo semestre: “Eu amei a aula. Tudo ficou muito gostoso e a gente aprendeu a não jogar nada fora. Muita coisa me surpreendeu, como conseguir fazer gelatina natural com a casca do maracujá (ao ser cozida na panela de pressão rapidamente, a casca ganha uma textura gelatinosa e pode ser usada em doces para dar mais consistência). Eu já gosto de inventar na cozinha e agora vou inventar muito mais.

Segundo ela, atualmente sua família não consegue comer carne todos os dias e, quando dá, é frango, ovo ou salsicha. 

Assim como Antônia, outras participantes da oficinas de conclusão do Impacto de Vida também foram atraídas pela possibilidade de participarem do curso Maré de Sabores. As aulas foram uma clara porta de entrada para tudo que acontece na Casa das Mulheres, que a maioria nunca tinha ouvido falar até começar a receber as cestas de alimentos. 

Hoje, depois de 12 anos de histórias, o curso Maré de Sabores é muito mais do que uma formação em gastronomia; é a possibilidade de alargar a visão sobre segurança alimentar, mostrando a importância da mudança cultural do hábito de nutrição, apostando no produto in natura e discutindo o alto consumo de alimentos ultra processados. 

A chance de qualificação em gastronomia apresentada às participantes do Impacto de Vida é, assim, o início de uma mobilização mais ampla, como explica Mariana Aleixo, coordenadora da Casa das Mulheres e do Maré de Sabores: “É muito importante o papel da Casa das Mulheres no processo. A partir de um desejo de formação, de geração de renda, essa mulher da Maré tem a chance de ter um trabalho, conquistar autonomia e, naturalmente, vai começar a problematizar questões subjetivas, que até então não conseguia elaborar.”

Segundo ela, “a Casa das Mulheres oferece suporte psicossocial e jurídico para as demandas individuais dela e conta ainda com uma frente de direitos sexuais e reprodutivos”.

Aproveitamento total

A ideia de uma oficina de gastronomia para marcar o fechamento do Impacto de Vida partiu das próprias participantes do projeto, que teve como principal beneficiárias justamente mulheres (84,5%) responsáveis por seus domicílios — a maiori, pretas e pardas (70,6%) com idades entre 20 e 49 anos (67,3%). 

Durante um encontro reunindo as famílias do projeto em outubro de 2021, surgiu a demanda por alguma atividade ligada à alimentação, já que a entrega das cestas, incluindo alimentos orgânicos, foi um pilar estruturante do Impacto de Vida, como explica a coordenadora da equipe de apoio ao luto, Laís Araujo.

“Além de apresentar e dar acesso a outros projetos da Redes no momento em que o Impacto de Vida conclui seus trabalhos, outro ponto positivo das oficinas é que muitas vezes, na entrega das cestas, recebíamos o retorno de que as famílias não conheciam alguns orgânicos. Nas oficinas houve tanto a chance de conhecer alimentos pouco usuais para elas, como o alho-poró, como também descobrir como aproveitar integralmente legumes como a beterraba.”

O projeto Impacto de Vida teve como objetivo acompanhar famílias mareenses a médio prazo, com entrega mensal de cesta alimentícia e quinzenal de frutas e legumes orgânicos; distribuição de tablets e de chips para que crianças e adolescentes tivessem acesso às aulas remotas, aos professores e aos deveres; e atendimento psicossocial a mulheres que perderam familiares para a covid-19.De julho de 2021 a maio de 2022, 308 famílias receberam alimentos, 264 tiveram suporte para a conectividade e 66 contaram com apoio no luto, com acompanhamento regular de psicóloga e assistente social. Na retaguarda do Impacto de Vida, havia uma equipe multidisciplinar formada por 16 mulheres, muitas delas moradoras da Maré. 

A cesta básica foi criada para ajudar a definir o valor do salário mínimo e pensada como o essencial para alimentar uma família de quatro pessoas – Foto: Gabi Lino

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