Artigo: A rua entra no ciclo da vida

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Por Léo Motta, em 30/05/2021 às 7h

Pensei que esse dia nunca iria chegar. Eu que estive alí nas calçadas sei o tamanho da exclusão pela qual passamos. Com a chegada da pandemia, os desafios da vida para quem está em situação de rua ficou ainda pior, aumentando o muro da exclusão já existente entre a sociedade dita como ”aceitável” e aqueles que são invisibilizados.


No início não havia máscara, água, álcool em gel e tão pouco roupas limpas. Em todos os momentos, era trazido o temor através do dedo apontado para quem está no meio fio de uma sobrevida, julgado e rotulado. E não bastou. Somando aos que já estavam, com a crise do desemprego e a volta da fome (sempre presente), rostos novos chegaram e outros simplesmente sumiram. Não é possível saber os motivos, tampouco se foi por quem. Afinal de contas, teve testagem em massa para estas pessoas?


Mas de certa forma uma luz no fim do túnel apareceu. Os problemas permanecem, claro. Mas posso dizer que, pela primeira vez, vi os meus sendo vistos, no simples e obrigatório direito de se vacinarem. Não irei esquecer desse dia nunca, o dia da maior conquista da população em situação de rua.

Foto: Daniel Castelo Branco

Narro as cenas: estava sentado e me preparando para ser vacinado, observando pessoas chegando na fila. Alguns descalços e com as vestes em maltrapilho. Não me contive, indo às lágrimas.


Lembrei de todas as nossas lutas pela valorização, dos medos, das nossas vontades. Os amigos que partiram sem ao menos presenciar esse ato tão nobre e digno. Recordei daqueles que foram vitimados pelo vírus e que marcaram minha vida. Não podia deixar de emocionar.
Não ter um endereço não impede a vida. A rua não é lugar de viver, e muito menos de morrerQue para além desse momento, haja tantos outros em prol dessas pessoas que tanto precisam de olhar e atenção, carinho e respeito.

Léo Motta, emocionado, ao participar da campanha de vacinação para pessoas em situação de rua. Foto: Daniel Castelo Branco


Viva a vacina, viva a Ciência, viva o SUS e a inclusão – que sem duvidas é o único caminho para um mundo melhor. No calendário dos dedos, espalhados pelas ruas que mais parecem comôdos do lar em toda a cidade, ficará marcado o dia em que nós, que vivemos cercados de histórias de derrota, tivemos vitória.


Leo Motta é ex-pessoa em situação de rua e escritor.

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