“O que é reconhecido como pensamento feminista universal, considerando o seu surgimento no continente europeu, de uma forma geral, tem nas mulheres brancas, ocupantes das classe médias e altas, sua maior representação”.
Por Andreza Jorge (*). Publicado na Revista WOW
A luta dos movimentos feministas, dentro de um contexto colonial e escravocrata, que consolidou um território forçado de diáspora e reinvenção da vida de populações africanas e indigenas, nos põe diante do importante debate sobre raça e identidades como elementos imprescindiveis para ampliar a reflexão sobre os conceitos e significados em torno do gênero como categoria analítica na luta feminista.
Há uma necessidade urgente de ampliar as nossas percepções sobre as identidades sócio-historicamente construídas e só assim poderemos continuar a pensar sobre as lutas das mulheres e seus múltiplos processos políticos de resistência e luta pelo mundo afora. Para termos uma boa reflexão sobre a luta das mulheres no mundo, temos que analisar os lugares sociais que essas mulheres ocupam na sociedade e, com isso, perceber a diferença entre os papéis sociais a partir de posições que vão para além da noção binária do ser mulher como o ser “oposto ao homem”.
No Brasil, quais são os papéis e lugares sociais de mulheres brancas, de mulheres negras, de mulheres indígenas, nos mais diferentes setores da sociedade e principalmente nos espaços de poder e prestígio? Eu poderia dizer que o que é reconhecido como pensamento feminista universal, considerando o seu surgimento no continente europeu, de uma forma geral, tem nas mulheres brancas, ocupantes das classe médias e altas, sua maior representação.
Estou falando de um pequeno grupo social que é historicamente privilegiado em função de sua raça/cor e, justamente por isso, ocupa estruturalmente os lugares de classe e de domínio dos meios de produção, construindo suas reivindicações a partir de demandas reais (pra esse grupo) em oposição a opressão patriarcal, ou seja, ao poder e privilégio dos homens cis-héteros, brancos.
Mas, e se pensarmos na luta feminista a partir das múltiplas formas de ser mulher e atrelando diversas identidades sociais e históricas? Se pensarmos nas mulheres e meninas negras, mulheres indígenas? Mulheres lésbicas? Mulheres de classes sociais baixas, trabalhadoras vulnerabilizadas? Mulheres em contextos periféricos, rurais? Mulheres que não tiveram acesso aos sistemas considerados “legítimos” de educação? Mulheres transsexuais? Muitas são as especificidades desta luta, aqui penso principalmente sobre a identidade racial como classificação social fundamental para tentar entender o “ser mulher no Brasil”, penso sobre essas mulheres racializadas como negras e indígenas que tiveram e ainda têm construções coloniais duras e estereotipadas sobre o significado de seus corpos no mundo, carregam na pele essas construções sobre a compreensão de suas humanidades. Quem fala sobre as demandas dessas mulheres, sobre a vivência dessas mulheres? E em quais espaços estão sendo expostas essas reivindicações?
Uma vez que essas reivindicações forem levantadas, precisamos dar um passo a mais. Não queremos ocupar o lugar estagnado de “problema social”, principalmente pelo fato desse “problema social” não ser algo que define a experiência negra e indígena no Brasil. Muito pelo contrário, esse “problema social” que podemos nomear aqui como expressões do racismo estrutural brasileiro, não pode, em hipótese alguma, ser responsabilidade do grupo que é vitimado, tampouco devemos ser cobradas, por uma solução, um caminho, uma “fórmula mágica” para acabar com o racismo brasileiro.
É preciso que a população que historicamente gozou e ainda goza dos privilégios de raça estabelecidos desde a colonização se responsabilize com esse compromisso, inclusive e principalmente dentro dos espaço de discussão sobre igualdades, respeito e transformação social, como o movimento feminista. Até onde as mulheres brancas feministas estão implicadas em promover uma transformação social profunda?
Aqui, desejo apontar alguns caminhos que têm me ajudado a pensar em formas de contribuir com uma discussão coletiva sobre ser mulher no Brasil e no mundo e, para isso, mais do que denunciar e explicitar as nossas demandas diversas em função das identidades sociais, precisamos reconhecer e visibilizar as respostas e soluções coletivas para questões em torno das inequidades de gênero e seus desdobramentos. Com isso, conferir visibilidade para as mulheres racializadas como negras e indígenas que ao longo de toda sua existência construíram para a sociedade, enaltecendo o lugar do conhecimento, da intelectualidade, da espiritualidade, da importância da filosofia de vida de povos que muito tem a nos ensinar sobre sociedade, coletivo, política, família, afeto e relações de gênero.
Nesse sentido, as lutas e movimentos sociais que almejam transformações profundas e igualitárias como povo, precisam urgentemente reconhecer historicamente os valores filosóficos, sociais e culturais de uma forma PLURIversal, contemplando maneiras diversas de compreender o mundo a partir de outros parâmetros cosmogônicos, ontológicos e inclusive, reconhecer que esses valores resistem e re-existem nos dias atuais, formando e sustentando comunidades inteiras, salvaguardando a experiência da vida como uma experiência coletiva e nos apontando caminhos para viver dignamente, em um mundo que sistematicamente nos ameaça, nos ataca e nos mata de muitas formas.
Lélia Gonzalez, importante ativista e intelectual brasileira, cria o termo amefricanas para pensar em um feminismo Afro-latino-americano que contempla a experiência corporal-subjetiva do ser negra-indígena na América. A autora pontuou diversas vezes em seus textos e discursos a necessidade de se pensar o racismo e o sexismo especificamente sobre a cultura brasileira, trazendo a imagem da criação dos estereótipos atribuídos a essas mulheres e seus reflexos dentro da construção social. Precisamos investigar, reescrever a história, reconhecendo que, desde o período da colonização, não só no Brasil, mas em todo o continente Amefricano as mulheres negras e indígenas sempre tiveram ações de resistência e insurgência contra os efeitos das desigualdades entre sexo e raça, agindo de forma estratégica e organizada para alcançar seus objetivos.
O histórico da importância dessas mulheres para a construção de uma nação e para a continuidade de todo um povo tem que ser propagado com a finalidade de tornar visível todo esse legado fundamental para a compreensão de um cidadão de país diaspórico. Muitas são as mulheres negras que fazem dos seus corpos potências para ressignificar as marcas impostas sobre eles através de suas múltiplas expressões, mulheres que, ao longo dos anos, se colocam como linha de frente na luta dessas agendas enfrentadas até os dias de hoje. Eu saúdo e agradeço a todas as mulheres que mantêm esse legado ancestral, traduzido nas favelas, nas festas de cultura brasileira e nas matas desse país.
Meu feminismo existe e é PLURIversal por causa de vocês.
(*) Andreza Jorge é cria da Maré, artista e ativista com foco nos temas que interseccionam gênero, raça e território. Doutoranda em Estudos de Artes da Cena na UFRJ, Mestre em Relações Étnico Raciais pelo CEFET/RJ, Licenciada em Dança pela UFRJ, Co-fundadora do Mulheres ao Vento.