Basta de violência doméstica

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Ter consciência de que se vive um relacionamento abusivo é o primeiro passo para buscar apoio jurídico e psicológico e sair dessa situação

Maré de Notícias #122 – março de 2021

Por Andressa Cabral Botelho

A violência doméstica muitas vezes é silenciada ou sequer reconhecida como agressão. O isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus provocou um aumento do número de casos, já bastante alto: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cada ano 1,3 milhão de mulheres são vítimas da violência doméstica, que não é definida apenas como agressão física. 

Um antigo companheiro da diarista Jaqueline Costa, de 62 anos, moradora do Cosmorama, em São João de Meriti, escondia seus documentos para que ela não pudesse sair de casa nos fins de semana. Lidiane Santos, 33 anos, de Bangu, foi coagida a ter relações sexuais com o seu ex-namorado. No Cosme Velho, a pesquisadora Paula Pires, de 28 anos, lembra do medo que sentia ao dizer ao ex-namorado que viajaria para congressos – era a deixa para ele acusá-la de traí-lo quando estivesse longe. 

Embora sejam situações distintas, as três foram vítimas de violência doméstica e familiar, conforme a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Jaqueline, Lidiane e Paula são exemplos que mostram que a violência doméstica pode atingir mulheres de quaisquer idades, raças e classes sociais, e de formas diferentes. E mesmo que a lei exista há quase 15 anos, ainda é pouco conhecida e, por isso, poucos sabem como se combate a violência doméstica e onde buscar ajuda. 

A psicóloga e moradora do Parque União Carmem Costa já atendeu pacientes que foram agredidas. Segundo ela, o tema é complexo porque grande parte das mulheres não conhece a fundo a lei e não percebe que foi vítima de violência doméstica: “Quando me deparo com indícios que evidenciam um caso de violência doméstica, vou cutucando e fazendo a pessoa se questionar o que está acontecendo”, explicou. 

Segundo a psicóloga, apesar de hoje este ser um assunto bastante debatido, é difícil para a mulher romper o ciclo da violência que a vítima. “É uma situação muito delicada; existem diversas situações que fazem com que a pessoa permaneça em um relacionamento abusivo, como vergonha ou dependência emocional, financeira ou familiar – isso acaba prendendo a mulher na relação. Não dá para usar um protocolo padrão para avaliar os tipos de violência porque há uma série de sutilezas em cada caso”, observou a psicóloga. 

“Ele só fica agressivo quando bebe”, “ele age assim, mas é um bom pai” ou “ele é trabalhador e sustenta a casa” são algumas das justificativas que Carmem já ouviu de pacientes.

Quando isolamento se torna um risco

O isolamento em casa se mostrou como a medida mais segura e eficaz para evitar a transmissão do vírus da covid-19; porém, a medida agravou a situação de mulheres que já eram vítimas de violência doméstica – elas passaram a conviver em tempo integral com os seus agressores. Essa situação não é exclusiva do Brasil. Na Itália, por exemplo, foram registradas 1.039 denúncias telefônicas entre 1º e 18 de abril de 2020, frente às 397 denúncias no mesmo período de 2019, segundo Elena Bonetti, ministra da Família e da Igualdade de Oportunidades daquele país. 

No Brasil, os casos de feminicídio aumentaram 22% em 12 estados brasileiros nos dois primeiros meses de pandemia, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Também houve nesses estados um aumento de 3,8% nas ligações feitas ao 190, número de emergência da Polícia Militar, para sinalizar situações relacionadas a violência doméstica. Diante dessa situação, foi sancionada a Lei nº 14.022/2020, que prevê, durante a pandemia, o enfrentamento mais severo à violência doméstica que vitima não apenas a mulher, como também crianças, idosos e pessoas com deficiência. 

A emergência sanitária que hoje atinge o mundo também pode estar na diminuição do número de denúncias nas Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAM), tendo em vista a dificuldade de se fazer a denúncia pessoalmente, ou o receio de a mulher ser pega entrando em contato com as autoridades para notificar a violência sofrida. Enquanto notou-se um crescimento nas ligações para o 190, registros de ameaça, lesão corporal dolosa e estupro, tiveram uma redução de -15,8%, -9,9% e -11,8%, respectivamente, ainda de acordo com o relatório. Entretanto, a internet tornou-se um canal no qual o problema aflorou com força: entre fevereiro e abril de 2020, a expressão “violência doméstica” foi mencionada 5.583 vezes no Twitter, sendo que 53% dessas menções aconteceram entre 20h e 3h.

As maiores vítimas da violência doméstica são mulheres, majoritariamente negras. “Quando fazemos a separação por raça e cor, percebemos que racismo e sexismo andam de mãos dadas”, destaca a coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ), Flávia Nascimento. Das mulheres agredidas por parceiros em 2019, 52,2% delas eram negras e 45,5%, brancas. A proporção se repete nos casos de homicídio doloso (em que há a intenção de matar): 59% das vítimas eram mulheres negras e 33%, brancas, segundo a edição referente àquele ano do Dossiê Mulher, elaborado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP/RJ).

Só uma espiadinha

Uma prática bastante comum entre os usuários de redes sociais é o stalking, ou perseguição obsessiva. O que, para uns, é apenas um meio bobo de saber o que outras pessoas fazem buscando informações em suas redes sociais, para o stalker é uma forma de controlar alguém, sem estar presente fisicamente. 

Após o término da relação, no início de 2019, Paula Pires percebeu que o seu ex passara a frequentar os mesmos lugares que ela, o que a incomodou: “Antes de terminarmos, ele não gostava de ir a esses locais. Sabendo que eu estaria lá, ele passou a forçar esses encontros, o que me deixou incomodada e sentindo que minha liberdade estava sendo cerceada. Cheguei a deixar de ir a certos locais para não ter o desconforto do encontro”. A pesquisadora contou também que, se ele costumava mandar mensagens para ela, com a pandemia passou a acompanhar os stories do Instagram, mesmo não se seguindo mais nas redes. 

O que muitos não sabem é que a prática de stalking é uma contravenção penal e prevê pena de 15 dias a dois meses de reclusão. Em dezembro de 2020, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1369/19, que penaliza o praticante com seis meses a dois anos de detenção ou multa. Caso o autor seja íntimo da vítima e haja uso de armas durante a perseguição, a pena pode aumentar para até três anos. Desde que percebeu essa postura de seu ex, Paula passou a registrar as investidas para fazer um registro de ocorrência na DEAM.

Onde buscar ajuda

O estigma, a vergonha e o silenciamento são algumas das razões da violência doméstica ainda ser subnotificada. As vítimas que resolvem buscar a lei precisam driblar inúmeras barreiras, como a recusa da polícia em entrar em certas localidades e o perigo que denunciar a violência sofrida representa para a vida de mulheres moradoras de favela e periferia. “Existem serviços que podem orientar essas mulheres, como os Centros Especializados de Atendimento à Mulher e o Núcleo Especial de Direito da Mulher e de Vítimas da Violência (NUDEM), da Defensoria Pública do Rio, onde elas recebem orientações, conhecem as alternativas que têm e o que pode ser feito para que essas mulheres não se calem. E quando a gente diz ‘calar’, não é denunciar o agressor e sim, buscar orientação”, destaca Flávia Nascimento durante o curso Garantias Legais, ofertado pela Ouvidoria da Defensoria do Rio. 

Para a defensora pública, o mais importante desses espaços não é incentivar a denúncia e sim, fornecer orientação para que a vítima tenha autonomia ao tomar suas decisões, além de oferecer acompanhamento sociojurídico e psicossocial.

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