Como o ritmo que nasceu na Pequena África ecoa na Maré e transforma vidas há gerações
Neste mês de dezembro, celebramos o Dia Nacional do Samba. Para além de sinônimo de música e dança, o samba é um dos representantes da herança africana, um dos povos que fundaram o Brasil e, ainda nos dias atuais, têm sua história desvalorizada. Uma história tão forte que nem mesmo a escravização e a criminalização foram capazes de esconder.
Em 2007, o samba foi consagrado como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). No conjunto de favelas da Maré, o pandeiro, o cavaquinho e o tantan ecoam os ritmos dos antepassados que, através da música, mantiveram sua cultura viva. Nessa matéria, vamos conhecer a trajetória de três desses grupos, o Fundamental, o Nova Raiz do Samba e o No Lance.
Se não fosse o samba
“E se não fosse o samba, quem sabe hoje em dia eu seria do bicho” é um verso do cantor e compositor Bezerra da Silva, mas Alexandre Gonçalves, 47 anos, voz e banjo do Grupo Nova Raiz do Samba, a usa para ilustrar sua juventude nos bailes cariocas. Mais conhecido como Dão, ele participava dos “bailes funk de corredor”, em que dois grupos (Lado A e Lado B) se enfrentavam.
O que o motivou a participar das brigas foi a raiva gerada por um episódio traumático. “Como eu imitava o Michael Jackson, eu ia para o baile dançar, só para dançar mesmo. Até que um dia fui vítima de uma violência e essa violência gerou outra violência, né? Toda a ação gera uma reação, comigo não foi diferente. E eu, atrás de vingança, procurei o meu algoz, o cara que me deu um tapa na cara”, conta.
Quando completou 18 anos, Dão decidiu retomar sua vocação para a arte. Já não se reconhecia e tinha medo de perder a vida da mesma forma que muitos dos seus amigos. “Eu também comecei a cometer pequenos delitos, mesmo que indiretamente. Eu usava a desculpa de que estava com a galera do baile e a gente acabava surrupiando pequenos pertences como relógios e cordões. E aí eu comecei realmente a me enveredar por um caminho obscuro, até que um amigo meu, o Léo, sumiu, desapareceu, e eu tive que mudar meu rumo, porque senão ia acabar me dando mal. E aí o samba retornou para o meu caminho”.
O menino que batucava a música Mel na boca, de Almir Guineto, nas latas, galões e barris, enquanto aguardava na fila da bica, agora faz parte do grupo Nova Raiz do Samba, que recentemente completou 18 anos, ao lado de Marcelo Fernandes (Mamá), também na voz e repique de mão; Wagner Costa (Waguinho), no tantan e Luiz Henrique da Costa (Neguinho), na voz e no surdo.
Santo de casa
Thiago Pires Borba, 39 anos, morador do Parque União, também começou a amar o samba por influência dos que vieram antes. “Sempre amei música! De música clássica ao frevo, mas quando assisti aos grupos de samba que nos antecederam aqui na Maré, me despertou a vontade de fazer samba também!”, comenta.
Deu início ao seu caminho e encontrou pessoas que partilhavam do mesmo sonho. Após muito estudo, ensaio e aperfeiçoamento, o que era “brincadeira de tocar samba” fez sucesso nas festas e eventos da Maré. Hoje, Thiago é a voz do Grupo Fundamental, ao lado de Michel George (cavaquinho), Pedro Artur (reco-reco) e Hércules Cezar (percussão).
No começo do grupo, devido às poucas oportunidades, criaram o Pagode do Fundamental, localizado no Parque União, de onde Thiago é cria. Em outubro, o evento completou 20 anos. Com o apoio dos moradores, da associação e do comércio local, sempre mantêm a casa cheia.
“Nossa trajetória não foi fácil, aliás continua não sendo fácil. Como toda pessoa periférica, esbarramos em vários empecilhos que torna tudo mais difícil e nos obriga a trabalharmos 10 vezes mais”. E completa: “Existe um ditado popular que diz que: ‘santo de casa não faz milagre’, mas esse ditado cai por terra com a gente. São 20 anos de grupo, de pagode na Maré e não teve um dia nesses 20 anos que não tocamos para muitas pessoas. Fora todo o apoio em tudo que fazemos. Sempre a nossa gente com a gente”, conclui.
Sonho e realidade
Danilo Siqueira, 37, voz do Grupo No Lance, explica que, embora seja reconhecido pela população e pelos contratantes, ainda é preciso valorizar ainda mais o trabalho dos capas (como são conhecidos os artistas do meio musical). “Para nós, o principal desafio é equilibrar o sonho com a realidade financeira. Atualmente, muitos de nós vivenciamos uma jornada dupla: trabalhamos no setor privado e dedicamos tempo à música. Essa é a realidade de vários artistas da Maré. Encontrar um equilíbrio saudável entre a paixão pela arte e a estabilidade financeira”, conta.
Dan, como também é conhecido, é cria da Vila dos Pinheiros. A história dele com o samba teve forte influência do pai. “Desde pequeno, fui imerso na música graças à minha família. Meu pai, um grande fã de samba, foi o responsável por despertar meu amor pela música. Lembro-me da primeira vez que ele me levou a uma roda de samba. Foi um momento que mudou minha vida. A partir daí, a música se tornou uma parte fundamental da minha jornada”, diz. Junto a Danilo, que é a voz do No Lance, estão Anderson Barros (Andy), voz e violão, e Leonildo Lima (Nil), voz, reco-reco e gestor do No Lance.
O Grupo, fundado em 2002, na Maré, circula por todo o país, mas reverencia a potência da favela em promover arte e cultura em cada esquina. “A cena musical da Maré é incrivelmente rica e vibrante! Não precisa sair do bairro para curtir uma variedade de gêneros: samba, rock, funk, forró, trap e muitos outros. É maravilhoso como tudo se mistura de forma harmônica. Na Vila do João, por exemplo, uma única rua nos oferece uma jornada musical completa: começa com o forró da Entrada da Avenida Brasil, passa pelo MPB do Estrela da Vila e termina com o pagofunk do Castelo do Chopp. Tudo isso na mesma rua! É simplesmente incrível!”, elogia.
Nossa história
Depois da abolição de escravidão no Brasil, o Estado logo tratou de relembrar aos negros, agora ex-escravizados, que os interesses da Princesa Isabel eram mais comerciais do que humanitário. A Lei da Vadiagem foi a encarregada de proibir todas as expressões culturais e religiosas associadas à população negra.
O samba carioca nasceu na chamada Pequena África (região que abrange os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo), Zona Portuária e no centro do Rio. Nomes como Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida) e Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos) são os principais responsáveis pelo samba que conhecemos hoje.
Donga é um dos autores da música Pelo Telefone, primeiro samba a ser registrado e gravado, em 1916. Tia Ciata, reconhecida como a grande mãe do samba (além de candomblecista e cozinheira de mão cheia) promovia rodas de samba no quintal de casa, mesmo proibidas por lei, que eram frequentadas por músicos, negros alforriados e seus descendentes. Com a difusão do rádio no Brasil (principal meio de comunicação da época) e o surgimento das escolas de samba, o ritmo conquistou cada vez mais espaço no cenário musical e social.
De lá para cá, apesar do samba ter conquistado o Brasil e o mundo, pouca coisa mudou em relação ao racismo e a marginalização dos corpos e territórios negros. Entretanto, a favela e o samba seguem sendo o que são: o espelho de uma gente que nunca desistiu de ser.