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‘Lendas da Maré’ mostra a força da amizade através do futebol

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‘A bola junto todo mundo’ diz seu Arides, um dos lendários

Para muitos, o futebol de domingo é coisa sagrada. Crianças e adultos gostam de se reunir no final de semana para “bater uma bolinha”. Há mais de cinquenta anos as Lendas da Maré, um grupo de velhos amigos, se reúne no Campo da Paty, na Nova Holanda. O time mais antigo, Os Cascudos tem o horário marcado aos domingos às 9h.

A amizade começou junto com a história da construção da Maré, “A bola juntou todo mundo!” explica seu Arides Menezes de 72 anos, um dos organizadores da “pelada”.
Ele conta que com o tempo os amigos foram perdendo o contato, mas que em toda Maré há um membro do Lendas e que sempre tiveram vontade de reunir os lendários, já que há poucos times de veteranos na Maré.

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Foi então que os amigos voltaram a se reunir com incentivo de Gilvan Sales, o Giba, no início deste ano. “A gente fez uma convocação geral e para nossa surpresa veio gente pra caramba!” O reencontro virou um compromisso mensal e seu Arides diz que o melhor é o pós jogo com churrasco e cerveja no bar.

As histórias dos amigos considerados Lendas da Maré se confundem com a história do bairro, desde as palafitas, as remoções da Nova Holanda, os favores da favela para a construção dos barracos. “Na Nova Holanda sempre foi assim na amizade, a gente batia a laje de todo mundo só com um churrasco e cerveja” afirma seu Arides.


Os Cascudos

O Lendas da Maré é a junção de vários times que passaram pela Maré. Elite da Teixeira, Cascudos, Onze da Vila, Ouro Preto e União. A pelada de fim de semana é uma tradição de gerações, antes dos Lendas existirem, os pais deles já jogavam no time conhecido como Oriente.

Os Cascudos é uma alusão a experiência adquirida ao longo dos anos, qualidade admirada pela garotada do futebol: “Os garotos adoram ficar perto da gente ouvindo nossas histórias” afirma Arides. “A gente joga só vinte minutos pra fazer uma graça porque não aguentamos mais, depois a gente senta e fica olhando eles jogarem” completa.

Na época que os cascudos estavam “pendurando as chuteiras” passaram a bola para outro time, hoje em dia o mais novo está com cinquenta e oito anos. “Hoje em dia nossos filhos estão nos acompanhando” afirma Marcos Santos, o “pimpolho” de 67 anos.

Com o tempo alguns colegas de futebol morreram e são lembrados com respeito e saudades em todos os jogos.

Maré recebe 1ª Conferência da Primeira Infância na Areninha 

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Maiara Carvalho*

Nesta sexta-feira (28), a partir das 9h30, será realizada a 1ª Conferência da Primeira Infância, na Areninha Herbert Vianna. O evento busca discutir e construir uma nova realidade para as crianças de 0 a 6 anos do Conjunto de favelas da Maré baseado na pesquisa de diagnóstico intitulada “Primeira Infância na Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado (PIM)”, iniciativa dirigida pela Redes da Maré entre 2020 e 2022 com o apoio da Fundação Porticus. O espaço será palco da participação ativa de organizações e da população, em prol de mudanças significativas na agenda de políticas públicas sobre o tema.

Entendendo a complexidade do cuidado parental enquanto morador da Maré, a metodologia de pesquisa teve como objetivo compreender e fornecer subsídios ao Poder Público explorando o tema abordado. “A questão transcende, portanto, a mera experiência de crescimento na Maré, uma vez que envolve um processo de crescimento integrado ao território. Ou seja, um espaço que não apenas nutre e cuida, mas também contribui ativamente para a construção do futuro”, reforça Eliana Sousa Silva, fundadora da Redes da Maré. 

Educação, saúde e violência

Das 2.144 pessoas entrevistadas, os dados mais preocupantes são em relação à educação e saúde. Segundo a pesquisa, 62,9%  das crianças de 0 a 3 anos estão fora das creches, apesar do aumento de escolas no território nos últimos anos. 

A violência vivida enquanto morador da Maré também tem fortes influências nas problemáticas captadas durante a pesquisa. Quando perguntados como a violência afeta as crianças da Maré,  37,1% relataram o impacto da perda de aulas e 26, 1% a diminuição do desempenho escolar, além dos relatos de como a saúde mental e o comportamento dessas crianças são diretamente afetadas. 

Os estudos se iniciaram no contexto da pandemia da Covid-19, para dar conta do desafio foi preciso mobilizar uma grande equipe. “Cinco frentes de pesquisa e ação foram desenhadas para a produção do diagnóstico e permitiram intervenções que decorreram da metodologia da pesquisa participante. Essa abordagem possibilitou que a equipe de pesquisa não apenas se inserisse no campo ativamente, mas que também mobilizasse a população e os trabalhadores do território a participarem e refletirem sobre a experiência da infância na Maré”.

G20: Maré no mapa

Os debates sobre a Primeira Infância a partir dos dados coletados na pesquisa se tornam ainda mais importantes neste ano. Em 2024, o Rio de Janeiro se torna sede do G20, o maior encontro de chefes de Estado e Governo que se reúnem para discutir e propor soluções para um “mundo justo”, como reitera o slogan da organização. 

Dentro dos três principais temas que os debates buscam abordar, a Inclusão social e o combate à fome e à pobreza é uma forte vertente de aproximação ao que será também discutido na 1ª Conferência da Primeira Infância na Maré. O evento traz a oportunidade de cobrar políticas públicas mais efetivas e soluções que tratem da lacuna social referente aos problemas sofridos pelos pequenos moradores do território no período mais decisivo da vida: a infância. 

(*) Maiara Carvalho é estudante de Rádio e TV da Universidade Federal do Rio de Janeiro e faz parte do projeto de Extensão Conexão UFRJ com o Maré de Notícias.

 ‘O que me motiva a lutar é a minha família’, diz irmã de Jefferson, morto por PM há 4 meses

Testemunha é ouvida pela primeira vez sobre morte do seu irmão ocorrida na Avenida Brasil, durante uma manifestação em fevereiro

Maria Teresa

Uma das três testemunhas de acusação pela morte de Jefferson de Araújo Costa, 22 anos, baleado pelo cabo da PM Carlos Eduardo Gomes dos Reis, foi ouvida pela primeira vez nesta segunda-feira (24). Jefferson foi morto no dia 8 de fevereiro deste ano, durante uma manifestação contra violência policial na Avenida Brasil, no acesso a Nova Holanda. A testemunha ouvida é uma das irmãs e estava ao lado da vítima no dia da morte. Ao Maré de Notícias, ela afirma que agiu com normalidade. “É uma coisa que tem que ser feita. Falei o que tinha que ser falado, porque eu tava ali do lado, eu vi tudo acontecer”.

O Ministério Público do Rio de Janeiro pediu uma nova audiência para ouvir as outras duas testemunhas de acusação. A defesa tem cinco testemunhas, todos policiais militares. Nesta fase do processo, as testemunhas dos dois lados serão ouvidas e a juíza Tula Corrêa de Melo tomará a decisão pela pronúncia ou não. Ou seja, se o caso segue no Tribunal do Júri ou se irá para a Justiça Militar. Em linhas gerais, a Justiça terá que decidir se o homicídio é culposo, quando não há intenção de matar, ou doloso, quando há intencionalidade na ação e, portanto, caberá o julgamento na justiça comum. A juí,za original do caso está em férias e, na audiência desta segunda-feira, foi substituída por Alessandra da Rocha Lima Roidis.

A irmã de Jefferson afirma que a morte dele provocou uma dor inclassificável na família e é por isso que decidiu lutar por Justiça. “A minha família do jeito que está depois da perda… Ele morava com minha vó, que morreu a poucos dias. Não se aguentava de tristeza”, conta. “Éramos próximos, às vezes ele me ajudava no trabalho, todo dia tomava café comigo. [Jefferson era] Muito brincalhão, tudo ele ria, um pouco envergonhado. Quando tinha que pedir alguma coisa, colocava a mão na cabeça assim”, disse, lembrando do trejeito do irmão.

A Redes da Maré, através do projeto Maré de Direitos, do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, atuou desde o instante em que Jefferson foi atingido, tanto no apoio psicológico e assistencial aos familiares, como no processo judicial. Um dossiê sobre o caso foi produzido pela equipe trazendo um extenso compilado de registros fotográficos do local do crime, testemunhos, vídeos, para evidenciar que Jefferson foi morto à queima-roupa e desarmado. Uma das versões do agente de segurança pública  que atirou no rapaz é que Jefferson estaria com uma pedra nas mãos e ele foi usar o fuzil para tirar o objeto das mãos da vítima. A pedra nunca foi encontrada e registros de diversos ângulos mostram que o rapaz estava com as mãos vazias. 

Para a advogada da Redes da Maré, Marcela Cardoso, que trabalhou desde o instante em que Jefferson foi baleado, o trabalho realizado pela equipe do Eixo foi fundamental para a mudança de entendimento do caso. Isso porque, em um primeiro momento, a Delegacia de Homicídios, sem nem ouvir familiares e outras testemunhas, tratou o caso como homicídio culposo.

“O trabalho realizado pela Redes da Maré durante o plantão de operação, foi extremamente importante para chegarmos a essa primeira fase do Júri. O Jefferson foi baleado em uma das entradas da Maré e, na sequência, fomos chamados para prestar auxílio. Algumas pessoas da nossa equipe estavam no local, porque não conseguiam entrar na Nova Holanda, por causa de um intenso tiroteio que acontecia naquele momento. Então todos nós chegamos muito rápido ao local e conseguimos buscar elementos, tirar fotos do local, das perfurações, compilamos diversos vídeos que foram enviados pelos moradores e outras testemunhas que ali estavam e produzimos esse dossiê, enviado ao Ministério Público para que servisse efetivamente um manancial comprobatório do que havia acontecido ali”, explicou.

A articulação desse trabalho foi feita com a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e o Ministério Público, que provocou a Justiça a esse respeito, fazendo com que o inquérito retornasse à fase inicial na Delegacia de Homicídios e passasse então a ser tratado como homicídio qualificado.

A testemunha ouvida na audiência desta segunda-feira conseguiu trazer detalhes do ocorrido, já que ela presenciou a dinâmica da ação policial e Jefferson chegou a cair em seus braços após ser atingido.

A advogada Marcela Cardoso lamenta a tentativa de criminalização da favela, evidenciada nesta primeira audiência. “Foi perguntado sobre a vida do Jefferson, se ele tinha passagens. Isso é uma evidente tentativa de criminalização, tanto da conduta do Jefferson, quanto da conduta do ato de se manifestar das pessoas que estava ali, dos jovens, mulheres mareenses, que foram se manifestar por causa de uma operação policial que deixou as crianças presas dentro das escolas e as mães desesperadas do lado de fora”, pontua.

Relembre o caso

No dia 8 de fevereiro deste ano, Jefferson de Araújo Costa, 22 anos, participava de uma manifestação na Avenida Brasil, perto do acesso a Nova Holanda, contra a violência de operações policiais na região. No dia anterior, 7 de fevereiro, durante uma operação policial, Jefferson foi ameaçado de morte por policiais militares. Naquele mesmo dia, a operação havia começado por volta das 9h30, quando a vida na Maré já estava pulsando, comércio aberto e crianças nas escolas. A conclusão foi que as crianças e profissionais da educação ficaram presos dentro da escola em meio ao barulho de tiros e as mães desesperadas dentro de casa, sem poder encontrar seus filhos. 

No dia seguinte, parte dos moradores, em especial mulheres mães mareenses, decidiram realizar uma manifestação na Avenida Brasil. Quando o protesto acontecia, uma outra operação teve início no interior da favela, aumentando a tensão dentro e fora do território. Jefferson estava acompanhado de outros jovens no momento em que um policial militar, que não estava atuando diretamente na operação, desembarca de uma viatura,  se aproxima e usa o fuzil para bater na vítima. Neste exato momento, Jefferson é atingido na barriga e desfalece na calçada. Posteriormente, o policial alegou que Jefferson estaria com uma pedra nas mãos. Os registros em vídeo e testemunhas mostram que o jovem não estava com nada nas mãos. 

A família foi auxiliada pela Redes da Maré que, um dia antes, havia atendido Jefferson por causa da ameaça sofrida. Sem recursos para realizar o sepultamento, no final das contas, a família conseguiu enterrar Jefferson e iniciou, naquele instante, uma luta por reparação. 

“O Jefferson não estava fazendo nada que desse causa a ele receber um tiro de fuzil 762 à queima roupa. Toda essa repercussão do caso se dá muito em razão da própria luta da família, dos amigos, dos moradores, que deram visibilidade a essa ação desproporcional e levaram para a mídia a exposição do que acontece em territórios de favela”, critica a advogada. 

No Mapa Cultural do Rio: Vem aí o Viradão Cultural da Rocinha!

Iniciativa reúne mais de 50 projetos da favela e representa um marco na conscientização do potencial sociocultural

Nos dias 6 e 7 de julho, vem aí o Viradão Cultural da Rocinha! O evento multicultural é realizado pelo Fala Roça, uma organização de comunicação sem fins lucrativos sediada na Rocinha, que atua no desenvolvimento social através do fomento à comunicação e cultura há 11 anos. O evento cultural será realizado na Biblioteca
Parque da Rocinha C4, localizado na estrada da Gávea, nº 454. A entrada é gratuita e qualquer pessoa pode participar.

O Viradão Cultural visa promover a visibilidade dos pontos culturais identificados no Mapa cultural da Rocinha, plataforma colaborativa criada pelo Fala Roça. “Vamos reunir mais de 50 iniciativas locais identificadas para fortalecer a raiz cultural da Rocinha, mas também para conectar os projetos culturais aos moradores das favelas do Rio de Janeiro”, afirma Monique Silva, diretora de gestão de projetos.

Das 10h às 21h, da manhã de sábado (6/7) até a noite de domingo (7/7), o evento ocupará os quatro andares da Biblioteca Parque Rocinha – conhecida também pelos moradores como C4, que significa Centro de Convivência, Comunicação e Cultura. A programação será diversificada, incluindo debates, apresentações de teatro, música, dança, exposições de artes, grafites, fotografias, artesanatos, exibição de curtas e
documentários, como a Via Sacra da Rocinha.

A programação do Viradão Cultural da Rocinha também terá palestras sobre o apoio do comércio e turismo para a cultura local, acessibilidade e inclusão cultural nas favelas, captação de recursos, entre outros assuntos. Inclusive, o evento contará com ações de acessibilidade, que incluem interpretação em LIBRAS nos debates, para garantir a inclusão de pessoas com deficiência (PCD). Ainda, terá pontos de
hidratação, com apoio da concessionária Águas do Rio.

Para além da importância cultural e do entretenimento oferecido, o Viradão Cultural da Rocinha visa proporcionar um impacto socioeconômico no território, fomentando a economia criativa local. Para isso, contará com 30 barracas com comidas de empreendedores dos projetos culturais do Mapa Cultural da Rocinha, que hoje tem 124 iniciativas cadastradas.

Por isso, oferecerá remuneração para as 50 iniciativas do Mapa Cultural da Rocinha cadastradas e que foram selecionadas para participar do evento. “Nosso objetivo é incentivar a formação de redes de conhecimento e parcerias entre grupos culturais e conectar os moradores com essas iniciativas”, explica Michel Silva, diretor institucional do Fala Roça.

O evento tem apoio do Governo do Estado, através da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, que administra a Biblioteca Parque Rocinha C4. Também conta com apoio do Governo Federal a partir da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar 195, de 2022), via Ministério da Cultura. A lei foi elaborada para garantir a distribuição eficiente dos recursos e a execução de projetos em todo o território nacional.

O Viradão Cultural da Rocinha busca evidenciar a rica produção cultural da favela, fortalecendo a raiz cultural do território. Além disso, o evento anseia contribuir para a retomada da cultura no território periférico, incentivando à participação, integração e, até colocar a Rocinha no calendário de eventos culturais do Estado do Rio de Janeiro. O evento tem apoio institucional da Secretaria Nacional de Periferias, via Ministério das
Cidades e da plataforma Mapa das Periferias, e da União Pró-Melhoramento dos Moradores da Rocinha (UPMMR). Apoiam ainda o Viradão Cultural da Rocinha, os comércios locais: Via Trattoria, Mirante da Rocinha, Firma Telecom e Gráfica NG.

Monitoramento da Redes da Maré expõe desrespeito à ADPF das favelas em operações policiais

Às vésperas do lançamento do 8º Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, uma operação iniciada na terça-feira, que durou mais de 32 horas, deixou seis pessoas mortas, sete feridas e 140 mil em pânico, prova a importância do levantamento de dados para o controle social da atividade policial. Em 2024, chegamos ao triste total de duas pessoas mortas por mês no Conjunto de Favelas da Maré em operações policiais. O número já é maior que o do ano passado, onde ocorreram oito mortes durante 34 operações.

Os dados anuais do boletim relativos a 2023, mostram que o desrespeito à ADPF 635, ou ADPF das Favelas, é uma conduta do Estado. No ano passado, a polícia descumpriu sistematicamente seis preceitos da ação; só na operação desta semana, foram desrespeitadas cinco recomendações.

Um dos destaques foi a ausência no uso de câmeras corporais pelos agentes da segurança pública, importante dispositivo para combater ilegalidades durante as operações. Em 2023, somente em sete das 34 operações policiais foi observado o uso de câmera de vídeo nos uniformes dos agentes. A ausência de perícia em situações de morte também chama a atenção.

Em nenhuma das oito mortes ocorridas foi realizada a perícia e, em quatro delas, houve indício de execução. Apenas uma das cinco mortes ocorridas na operação desta semana passou por perícia, ocorrida no local onde o policial morreu. Prova de que a ausência desse importante elemento para eventuais processos de responsabilização não é um caso isolado.

O Estado cometeu 211 violações de direitos humanos durante as incursões dos agentes de segurança pública no conjunto de 15 favelas da Maré ao longo de 2023. A mais recorrente foi a invasão de domicílio, que aconteceu em 77% das operações, seguida de dano ao patrimônio. Em terceiro lugar, vem o furto de pertences e em quarto lugar, ameaça. Existe maior incidência de violações de direitos em operações policiais planejadas, o que denota um modus operandi que desrespeita o morador e que não segue qualquer tipo de protocolo de controle e uso da força por parte do Estado.

Esses são alguns dos dados apresentados no levantamento anual feito pelo Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré. Um dos relatos de uma vítima dessas violações obtido pela equipe retrata o processo de criminalização da pobreza, que considera suspeito todo e qualquer cidadão que viva naquele território. Nesse caso, uma profissional teve seu estabelecimento invadido pela polícia durante uma operação, o material de trabalho destruído e pertences furtados.

“Vi uma cena de terror! Tudo o que conquistei com muito suor foi destruído. Quebraram a porta, armário, teto de PVC, geladeira, jogaram meus materiais de trabalho na rua. Minhas espreguiçadeiras quebradas, e o estoque de guaraná, coca-cola, entre outras bebidas, tomaram tudo. Levaram o som, a sanduicheira e alguns produtos de bronzeamento”.

Os dados mostram redução de 70% no número de mortes na comparação com 2022 em contraste ao aumento no número de operações: foram 20 a mais do que no ano anterior. Esse quadro segue a tendência do estado do Rio de Janeiro, que registrou redução de 34% na letalidade policial em operações. Por outro lado, a presença ostensiva da polícia no território gera outros tipos de violência aferidos pelo monitoramento, bem como afeta o acesso da população a direitos básicos, como saúde e educação.

Estudantes perderam um quarto do semestre letivo de 2023 devido ao fechamento de escolas durante operações. No acumulado do ano, a população ficou 26 dias sem atendimento no sistema de saúde por interrupção no funcionamento das unidades em dias de atuação policial. O levantamento também mostra que sete em cada 10 vítimas de algum tipo de violência são pessoas negras, apresentando prevalência de violações sobre as pessoas pretas, pois estas compõem mais de um terço das vítimas, superando o número de vítimas pardas, que é o perfil majoritário nas favelas da Maré.

Atendimento a LGBTQIAP+ nos serviços públicos de saúde

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Formação e sensibilização dos profissionais de saúde é essencial

Edição #161 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

“Você sabe de algum lugar que tenha atendimento psicológico gratuito?”, pergunta Matheus Henrique Lopes, de 25 anos, morador da Baixa do Sapateiro, no nosso primeiro contato durante uma entrevista. Homem trans, negro, cria da Nova Holanda, ele diz que “sente muito, o tempo todo”, e que a transfobia é uma realidade paralisante em sua vida. “O que eu posso fazer é só procurar ajuda”, afirma. 

Há cinco anos Matheus começou a transição de gênero e, o primeiro acolhimento que teve, foi dos irmãos. Eles são sete, ao todo, cinco por parte da mãe e dois do pai. Matheus é o mais velho e conta que, pouco tempo depois do início da transição, os irmãos já estavam brigando na rua para que ele fosse respeitado.

Ele conta que a pergunta sobre o atendimento foi um pedido de ajuda devido a tantas situações que havia vivido e, não sabia mais o que fazer. “Isso [transfobia] ocorre o tempo todo. É como uma música que a gente não acha mais graça e nem tem vontade de dançar”, lamenta.

Matheus explica que evita sair na rua por se sentir julgado pelas pessoas. Inclusive, ele já se sentiu assim até em unidades de saúde. “No começo da minha transição, isso acontecia direto em espaços de saúde, em clínicas da família. Eu usava o meu nome social, mas visivelmente, eu ainda não parecia ser um homem. Então, passavam pessoas na minha frente para serem atendidas, às vezes, pessoas que tinham acabado de chegar. Isso doía bastante, não que ainda não doa, mas é menos do que antes, entende?”.

Hoje, ele faz o acompanhamento no Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, unidade que tem um ambulatório referência em transdiversidade. Há um ano sem dinheiro para continuar o tratamento, ele relata que isso está afetando sua autoestima. “Eu ter uma vagina não me incomoda, não ter renda para comprar um hormônio, isso sim me incomoda”.

Menos acesso a saúde

Muitos homens trans, assim como Matheus, acabam não usando as unidades de saúde por medo de sofrerem transfobia. Segundo dados do relatório Violação dos direitos e episódios de violência contra pessoas LGBT+ de favelas 2023, 49% das mulheres trans e travestis procuram as unidades públicas de saúde, enquanto o percentual de homens trans é de 40%.

O boletim também aponta relatos de transfobia por parte dos funcionários de  clínicas da família, tanto em relação a homens trans, que precisavam de atendimento para ginecologia, quanto às mulheres trans, que procuravam atendimento para urologia.

Segundo o relatório, o Sistema Nacional de Regulação (SisReg), impede trans masculinos com nome e gênero retificados, ou seja, já corrigidos para o gênero que se identificam, deles fazerem exames “destinados às mulheres”. A pesquisa conta ainda que, outro motivo que leva homens trans a não acessarem as unidades básicas de saúde, é a falta de remédios usados para a hormonização.

Outro apontamento do relatório é em relação às redes de apoio criadas pelos próprios homens trans, com objetivo de trocar informações sobre hormonização e cuidados da saúde. O Hospital Pedro Ernesto também tem grupos da população trans masculina e foi através de um desses grupos que conhecemos Matheus.

Para Diana de Oliveira, mestre em Ensino em Biociências e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um atendimento humanizado é o primeiro passo para a garantia dos direitos sexuais. “É importante que toda a sociedade receba informações sobre as temáticas ligadas à saúde sexual e reprodutiva, seja através de iniciativas de educação em saúde, seja através de serviços de saúde que devem atender toda a sociedade de forma digna”, pontua.

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Invisibilidade na saúde pública

Camila Felippe, de 26 anos, moradora da Vila do João, conta que percebe que não há uma “saúde pública pensada para os nossos corpos, a sensação é de invisibilidade da população LGBT+”. A estudante de odontologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), afirma que durante o curso, não é abordada a saúde da população LGBT+ nas aulas, há apenas “um seminário que falou sobre infecções sexualmente transmissíveis”.

Em relação ao atendimento recebido nas unidades públicas de saúde, Camila diz  ser bem atendida e que respeitam a sua decisão de apenas ter consultas com  ginecologistas mulheres.  Porém, ressalta que sente falta de informações sobre prevenção contra infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).

“Nunca passei por uma situação de violência. Apesar de ser negligenciada nos meus direitos em relação ao acesso a informação de prevenção quanto uma pessoa LGBT+.”

A estudante desenvolve um trabalho de acolhimento na coletiva Resistência Lésbica voltado às mulheres lésbicas e bissexuais. Ela explica que as meninas acolhidas são levadas para realizar consultas nas clínicas da família, um papel de acolhimento e acompanhamento que poderia ser feito pela família. 

“Não tem como falar nesse assunto sem passar pela educação, a família tem um caminho a desbravar, pesquisar, sentir e dialogar”, opina. 

Combate à LGBTfobia

A superintendente de Atenção Primária do Município do Rio de Janeiro, Larissa Terrezo, afirma que, havendo alguma situação de LGBTfobia, a orientação é que a pessoa  vítima da violência, fale diretamente com a gerência ou diretoria da unidade. 

“A Secretaria Municipal de Saúde e a Atenção Primária do município do Rio combatem toda e qualquer manifestação de preconceito. Então, há muito interesse em apurar todos esses casos. Denúncias também podem ser feitas para o canal de ouvidoria no 1746”, orienta.  

A superintendente ainda destaca que, assim que são contratados para trabalharem em unidades básicas, os profissionais de saúde passam por uma formação de uma semana. Eles também têm acesso a cartilhas voltadas para o atendimento à população LGBT+, que tem alta adesão. Entretanto, Larissa reconhece a dificuldade de alcançar os cerca de 20 mil profissionais da rede municipal.

“A gente tem que pensar, primeiramente, que essas pessoas se sintam confortáveis e sintam que a unidade de atenção primária é um espaço de acolhimento, e não mais um lugar onde elas vão sofrer qualquer tipo de violência”, pondera. 

A superintendente também garante que as unidades de saúde estão abertas para conversas, e que os usuários LGBT+ podem propor ideias de temas para palestras e projetos em que são atendidos.