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Estudantes da Maré perderam um quarto do semestre letivo em 2023 por causa de operações policiais

Boletim Direito à Segurança Pública na Maré aponta que operações policiais causaram a suspensão de 25 dias de aulas

Lucas Feitoza e Maria Teresa Cruz

As crianças e adolescentes moradoras do Conjunto de Favelas da Maré ficaram quase um mês sem aulas em 2023, por causa das 34 operações policiais realizadas no ano. Os dados estão no 8º Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, lançado no dia 14 de junho deste mês. 

O levantamento aponta os impactos nos direitos dos moradores da Maré, como saúde, educação e o direito ao lazer. Se considerarmos os 200 dias de aulas previstos por lei, os estudantes da Maré perderam um quarto do semestre no ano passado. A série histórica do boletim, que começou a ser sistematizado em 2016, traz um número alarmante: alunos perderam um ano e meio de estudos por causa de fechamentos de unidades escolares de 2016 a 2023.

A assistente social Aline Regina, que também atua na Redes da Maré, fala do lugar de mulher preta, moradora de favela e mãe solo de uma criança atípica. “Sei o quão árduo, difícil e desafiador é fazer com que nossos filhos possam vivenciar uma infância plena, experimentando da saúde, do brincar, do lazer, da educação e da segurança”, declara.

 Ela destaca que, mesmo conhecendo a legislação que deveria garantir os direitos básicos às crianças, essa não é uma realidade na favela.

“O cenário de violência presenciado por nossos filhos causam medo, angústia, estresse, ansiedade,  depressão, síndrome do pânico, entre outras questões de saúde mental, além de gerar atrasos no desenvolvimento social e cognitivo da criança. Só esse ano já se foram 17 dias sem aulas por causa de operações”

Aline Regina

O sistema de ensino da Maré conta com quatro unidades estaduais e 46 municipais. Em operações policiais, está previsto o acionamento do protocolo Acesso Mais Seguro, que visa proteger não apenas os pais e alunos, como os profissionais da educação. “Além do impacto na aprendizagem, a gente vai ter outros efeitos, como o desemprego, visto que muitas dessas mães não contam com rede de apoio e precisam faltar ao trabalho por causa desses confrontos.”, pondera Aline Regina.

Cotidiano de incertezas

Para Andréia Martins, uma das diretoras da Redes da Maré e integrante do Eixo de Educação, os impactos no processo de ensino e aprendizagem mostrados no boletim são evidentes. “As aulas não são adequadamente repostas, mas a gente não pode se limitar a medir o impacto apenas naquele momento, naquele dia da operação em que não houve aula. Estamos falando de um cotidiano de incertezas e aí não precisa ser tão especialista para entender os impactos, por exemplo, na saúde mental. A sensação permanente de incerteza, de insegurança atrapalha toda uma construção da subjetividade do ser humano. E isso com a infância é muito cruel, né? Porque as crianças não conseguem expressar exatamente o que elas estão sentindo, mas elas dão sinais. Vão adoecendo, mudando o comportamento”, analisa.

Andréia Martins exemplifica esse cenário ao mencionar o livro “Eu devia estar na escola”, uma coletânea de relatos e desenhos feitos por crianças e jovens da Maré em dias de operação, lançado em março deste ano. “A escola deveria ser um lugar como a sua casa, né? Um lugar seguro, um lugar de acolhimento, um lugar de pessoas felizes para que esse ambiente possa ser propício para construção do conhecimento. Mas essa é uma realidade muito distante para os estudantes da Maré. As ilustrações e os recadinhos do livro mostram o quanto essas crianças estão impactadas. E a gente precisa de uma política pública que olhe para essas especificidades”, avalia.

Preocupação mundial

O impacto da violência nas crianças e adolescentes é uma pauta global. Em agenda no Brasil na semana passada, a Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Proteção Contra Violência, Najat Maalla M’jid, passou pelo Rio de Janeiro e falou sobre a violência armada no ciclo de desenvolvimento de crianças e adolescentes. 

Em encontro na Câmara dos Vereadores com jovens líderes de movimentos que atuam pela garantia de direitos de crianças e adolescentes, Najat ouviu mais sobre as preocupações e realidades vividas em territórios de favela, incluindo a falta de segurança pública.

Em entrevista exclusiva para o Maré de Notícias a pediatra ressaltou que garantir direitos é um dever do Estado e que “acho que esse é um momento enorme para o Brasil começar a revisar a forma que lidam com a segurança pública e também o que pode ser feito para garantir que todas as crianças e adolescentes que são deixados para trás estejam sendo incluídos e levados em conta em toda a parte econômica.” pontua. Dra Najat também ressalta que crianças, adolescentes e ativistas jovens devem ser vistos pelos Estados como parte da solução e envolvidos nas tomadas de decisões.

 “A falta de acesso e permanência segura nas escolas afeta não só o desenvolvimento das próprias crianças, mas tem impacto econômico negativo para o desenvolvimento de toda a cidade”, declarou em coletiva de imprensa.

Maré amanhece com 19ª operação policial no território 

Moradores relataram tiros na Nova Holanda e Parque União nas primeiras horas desta manhã 

Na manhã desta quarta-feira (3), moradores do Parque União, Nova Holanda e Rubens Vaz no Conjunto de Favelas da Maré amanheceram com sons de tiros. “Misericórdia! Ninguém merece acordar assim”, lamenta um morador por volta de 5h50. 

A Polícia Civil iniciou nas primeiras horas da manhã uma operação que, segundo os relatos, foi marcada por intensa troca de tiros, bombas e presença de veículo blindado (caveirão) pelas principais ruas da Nova Holanda. 

Em nota, o órgão respondeu que a operação é contra a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas e para cumprir 16 mandados de prisão na Nova Holanda e no Parque União. 

19 operações em 6 meses

Esta é a 19ª operação policial do ano na Maré, causando prejuízos contínuos à vida dos moradores. Até agora, 24 escolas foram fechadas, incluindo duas estaduais. Além disso, a Clínica da Família Jeremias Moraes da Silva suspendeu suas atividades nesta manhã, e a Clínica da Família Diniz Batista dos Santos, apesar de manter os atendimentos na unidade, interrompeu as visitas domiciliares.

São 19 operações em apenas 6 meses, o que significa quase uma operação por semana. Qual a efetividade e resultados desta aposta de uma política de enfrentamento ao longo de todos esses anos?

ADPF das Favelas

Entre as exigências preconizadas na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) das favelas — instrumento jurídico que impede o Estado de praticar condutas que firam a constituição e violem direitos dos moradores — está a presença de ambulância durante as operações para socorrer possíveis feridos, assim como câmeras corporais dos agentes com o objetivo de diminuir letalidades durante as incursões. No entanto, não há registros ou relatos que confirmem o seguimento dessas determinações.

Apesar disso, em entrevista a TV Globo na última terça-feira (2), o Secretário de Segurança Pública afirmou que Cláudio Castro fez um investimento de 3 milhões mensais só com câmeras corporais.

Não binária e cria da Maré, artesã exalta a cultura negra e LGBTQIAPN+

Cria da Vila do João, Retinto Fecar conta que desde criança dançava com sua mãe, onde nasceu a vontade de estar perto das ações culturais da favela

Rahzel Alec*

A favela é um território de criatividade: aqui nascem os crias, as músicas, as comidas típicas, a farofada, as gambiarras e sempre tem espaço para um novo puxadinho. O Conjunto de Favelas da Maré não fica fora disso e, mesmo com 16 favelas e 140 mil habitantes, quem vê de fora consegue captar que essa terra tem espaço para todo mundo e mais um pouco. Assim como outros territórios de periferia que foram marginalizados desde o seu início, a Maré também precisou se movimentar para lutar contra o racismo, a violência policial e outras dores que afetam todos os moradores, como a falta de água e o acesso à saúde de qualidade. 

A partir das iniciativas culturais, de esporte, cuidado e incidência política que surgiram ao longo dos anos, através dos próprios moradores, muitos crias tiveram a oportunidade de enxergar novos caminhos para preservar a identidade das favelas a partir de suas histórias e das histórias de suas famílias e, com isso, muitas dessas produções e iniciativas que pensam no bem estar, na criatividade e na liberdade do favelado surgiram dentro desse território.

Iniciativas como as primeiras Associações de Moradores, os encontros e paradas LGBTIA+ da favela, os coletivos que surgiram ao longo dos anos e instituições como o CEASM, Luta pela Paz, Conexão G, e a Redes da Maré, foram importantes para fortalecer gerações de crias que na Maré se criaram, na Maré se fortaleceram e na Maré transacionaram. 

“Eu cresci como uma criança viada, sempre tive trejeitos, e só hoje me entendo como não binária. Já me tratavam diferente desde os meus 12 anos” 

Retinto Fêrcar, de 28 anos é dançarina, artersã, performer e cria da Vila do João. Ela conta que desde criança dançava com sua mãe nas festas de família, onde nasceu a vontade de estar perto das ações culturais da favela, e foi no Centro de Referência de Mulheres da Maré que Retinto teve seu primeiro acesso ao teatro. O desejo preocupava seu pai, que logo a inseriu em uma escolinha de futebol para que ela “fizesse coisas de menino”. 

“Eu até era boa no futebol sabe, dava um baile nos meninos, mas eu queria muito experimentar o teatro e a dança e foi o que escolhi”.

A Escola Municipal Teotônio, no Conjunto Esperança, foi um espaço em potencial para incentivar a estudante a se jogar de vez no mundo da dança. O corpo escolar ensaiava apresentações e organizou o 1º Concurso de Dança das Escolas, onde a Teotônio ganhou o primeiro lugar nas duas edições. 

Mesmo tendo uma boa relação com a arte e cultura dentro da favela, a vivência na escola e na rua de casa tinha como marca a LGBTIfobia. Aos 13 anos, Retinto já precisava lidar com os xingamentos e algumas agressões vindas de crianças vizinhas, colegas de classe e até adultos. “Comecei a me impor quando percebi que eu não era obrigada a aceitar essas agressões”

Através de um projeto social na Vila do Pinheiro,  Retinto passou a ter aulas de hip-hop e conhecer mais sobre as musicalidades da cultura negra brasileira e internacional. Seu interesse pelo carnaval surgiu quando, ainda na época da escola, conheceu o projeto Usina de Cidadania, que atuava em Manguinhos e tinha como objetivo introduzir jovens no conhecimento das artes como dança, teatro e percussão, onde seguiu por alguns anos.

A curiosidade pela dança afro foi um motivador para conhecer novos lugares e em uma dessas oportunidades surgiu o convite para ensaiar junto do Bloco Orunmila – bloco de Carnaval que ressalta a importância da cultura afro-brasileira, apadrinhado pelo bloco do Ilê Ayê.

No início o comprometimento com os ensaios e a maquiagem das companheiras de bloco. Retinto não tinha muito conhecimento sobre maquiagem em si, mas a artista gostava de enxergar como suas companheiras de dança ficariam com alguns adereços. Foi quando aprendeu sobre as amarrações de turbante e sua importância para a Comunidade negra. 

A autoestima veio a partir daí, em contato com outras pessoas negras, de religião afro e que também eram da dança. A artesã conseguiu perceber que não estava tão deslocada quanto pensava.

“Foi um choque de realidade porque eu fazia nas meninas mas eu mesma não usava. Eu saída de casa com os panos dentro da bolsa e quando chegava na Avenida Brasil eu amarrava pra ir pros eventos. Era uó mas foi assim que aprendi a fazer um turbantão em qualquer lugar e ficar bonita na rua”, conta Retinto, que há época tinha receio do preconceito dos vizinhos e outros moradores em relação às amarrações de turbante, por causa dos casos conhecidos por agressões a pessoas de religiões de matriz africana.

“O turbante foi algo que entrou na minha vida e se tornou a minha marca registrada. E foi através dele que eu consegui me conectar com várias pessoas da minha favela”, conta a modelo e performer, que a passou a conciliar sua carreira como modelo e dançarine com os Workshops sobre amarração dentro e fora da Maré.

Em 2018 a Maré sofreu uma mega operação policial durante e um dos focos da operação foi próximo ao Espaço Infantil Éder Carbonera, na Vila do João. O ato impactou a vida de dezenas de crianças e funcionários que estavam na escola durante a incursão e presenciaram os disparos. Na mesma semana Retinto foi chamada para dar uma atividade sobre a população negra com as crianças e teve a ideia de contar uma história enquanto os ensinava a amarrar um turbante. “Eu contava a história de dois coleguinhas que estavam afastados e precisavam se encontrar. Foi muito interessante fazer essa atividade nesse momento porque as crianças estavam muito abaladas com o que aconteceu e essa Foi a minha forma de conseguir dialogar com eles sobre o racismo e também sobre a estética negra”, conta a artista, que pontuou o sucesso da atividade entre os mini crias e a vontade de continuar produzindo contos, histórias e outros materiais sobre o racismo à brasileira, que também converse  com as crianças da favela. 

Inspirada nos turbantes e adereços que começou a construir para os desfiles dos blocos afro, a artista transformou algumas ideias em peças complementares para as roupas utilizadas pelas suas companheiras de dança, criando as Viseiras. Enfeitadas com pedras de búzios, palhas e outros elementos afro referenciados, as peças, que são leves e criativas, trazem referências da cultura africana.

A partir das ideias desenvolvidas para as Viseiras surgiram as suas primeiras headpieces ou Cabeça, como prefere chamar. As Cabeças são peças inspiradas na simbologia da coroa em diferentes culturas, elas trazem cores elementares e outras referências da cultura negra têm ganhado destaque em ensaios fotográficos e em performances de artistas negros e LGBTQIA de dentro e de fora do Rio de Janeiro. Recentemente, a Cabeça Hórus foi prêmio da DeVeras Ball, evento que aconteceu no final de agosto deste ano, no Museu da Maré. O evento,  promovido pela Casa de Laffond reuniu a Comunidade Ballroom Rio, uma cena artística criada e movimentada por pessoas negras e LGBTI+, que nasceu em Nova York entre os anos 30 e 40 e tem sido popularizada no Brasil desde 2015, através de batalhas de dança como vogue femme e old way.

A  comunidade artistica do Rio de Janeiro tem protagonistas de diversas favelas, inclusive da Maré, com lendas como a Legendary Imperatriz Lua Brainer 007, que é uma travesti negra cria da Nova Holanda e Legendary Kill Bill, que é bicha preta cria do Parque União. O evento teve como tema principal uma homenagem a Jorge Laffond e contou com sete categorias de performance, canto e dança, além da categoria face, que tem o objetivo de convidar pessoas a performarem para o público e os jurades a face mais bonita.

“Foi forte! Eu acredito muito nos artistas que tem dentro da Maré e fomentar um evento como a DeVeras Ball e poder trazer outros artistas de fora do território pro Museu da Maré, pra  contar a história do território de onde eu sou cria é muito representativo. Já até me perguntaram quando vai ter de novo.” conta Retinta, que na Ballroom tem o nome e título de Star Princess Aziza Laffond.

*Rahzel é comunicador e produziu essa reportagem para o projeto Cores Marés, do Maré de Notícias, criado com o apoio com apoio da Redes da Maré e do Fundo Positivo.

‘Lendas da Maré’ mostra a força da amizade através do futebol

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‘A bola junto todo mundo’ diz seu Arides, um dos lendários

Para muitos, o futebol de domingo é coisa sagrada. Crianças e adultos gostam de se reunir no final de semana para “bater uma bolinha”. Há mais de cinquenta anos as Lendas da Maré, um grupo de velhos amigos, se reúne no Campo da Paty, na Nova Holanda. O time mais antigo, Os Cascudos tem o horário marcado aos domingos às 9h.

A amizade começou junto com a história da construção da Maré, “A bola juntou todo mundo!” explica seu Arides Menezes de 72 anos, um dos organizadores da “pelada”.
Ele conta que com o tempo os amigos foram perdendo o contato, mas que em toda Maré há um membro do Lendas e que sempre tiveram vontade de reunir os lendários, já que há poucos times de veteranos na Maré.

/Já leu essas?

Foi então que os amigos voltaram a se reunir com incentivo de Gilvan Sales, o Giba, no início deste ano. “A gente fez uma convocação geral e para nossa surpresa veio gente pra caramba!” O reencontro virou um compromisso mensal e seu Arides diz que o melhor é o pós jogo com churrasco e cerveja no bar.

As histórias dos amigos considerados Lendas da Maré se confundem com a história do bairro, desde as palafitas, as remoções da Nova Holanda, os favores da favela para a construção dos barracos. “Na Nova Holanda sempre foi assim na amizade, a gente batia a laje de todo mundo só com um churrasco e cerveja” afirma seu Arides.


Os Cascudos

O Lendas da Maré é a junção de vários times que passaram pela Maré. Elite da Teixeira, Cascudos, Onze da Vila, Ouro Preto e União. A pelada de fim de semana é uma tradição de gerações, antes dos Lendas existirem, os pais deles já jogavam no time conhecido como Oriente.

Os Cascudos é uma alusão a experiência adquirida ao longo dos anos, qualidade admirada pela garotada do futebol: “Os garotos adoram ficar perto da gente ouvindo nossas histórias” afirma Arides. “A gente joga só vinte minutos pra fazer uma graça porque não aguentamos mais, depois a gente senta e fica olhando eles jogarem” completa.

Na época que os cascudos estavam “pendurando as chuteiras” passaram a bola para outro time, hoje em dia o mais novo está com cinquenta e oito anos. “Hoje em dia nossos filhos estão nos acompanhando” afirma Marcos Santos, o “pimpolho” de 67 anos.

Com o tempo alguns colegas de futebol morreram e são lembrados com respeito e saudades em todos os jogos.

Maré recebe 1ª Conferência da Primeira Infância na Areninha 

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Maiara Carvalho*

Nesta sexta-feira (28), a partir das 9h30, será realizada a 1ª Conferência da Primeira Infância, na Areninha Herbert Vianna. O evento busca discutir e construir uma nova realidade para as crianças de 0 a 6 anos do Conjunto de favelas da Maré baseado na pesquisa de diagnóstico intitulada “Primeira Infância na Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado (PIM)”, iniciativa dirigida pela Redes da Maré entre 2020 e 2022 com o apoio da Fundação Porticus. O espaço será palco da participação ativa de organizações e da população, em prol de mudanças significativas na agenda de políticas públicas sobre o tema.

Entendendo a complexidade do cuidado parental enquanto morador da Maré, a metodologia de pesquisa teve como objetivo compreender e fornecer subsídios ao Poder Público explorando o tema abordado. “A questão transcende, portanto, a mera experiência de crescimento na Maré, uma vez que envolve um processo de crescimento integrado ao território. Ou seja, um espaço que não apenas nutre e cuida, mas também contribui ativamente para a construção do futuro”, reforça Eliana Sousa Silva, fundadora da Redes da Maré. 

Educação, saúde e violência

Das 2.144 pessoas entrevistadas, os dados mais preocupantes são em relação à educação e saúde. Segundo a pesquisa, 62,9%  das crianças de 0 a 3 anos estão fora das creches, apesar do aumento de escolas no território nos últimos anos. 

A violência vivida enquanto morador da Maré também tem fortes influências nas problemáticas captadas durante a pesquisa. Quando perguntados como a violência afeta as crianças da Maré,  37,1% relataram o impacto da perda de aulas e 26, 1% a diminuição do desempenho escolar, além dos relatos de como a saúde mental e o comportamento dessas crianças são diretamente afetadas. 

Os estudos se iniciaram no contexto da pandemia da Covid-19, para dar conta do desafio foi preciso mobilizar uma grande equipe. “Cinco frentes de pesquisa e ação foram desenhadas para a produção do diagnóstico e permitiram intervenções que decorreram da metodologia da pesquisa participante. Essa abordagem possibilitou que a equipe de pesquisa não apenas se inserisse no campo ativamente, mas que também mobilizasse a população e os trabalhadores do território a participarem e refletirem sobre a experiência da infância na Maré”.

G20: Maré no mapa

Os debates sobre a Primeira Infância a partir dos dados coletados na pesquisa se tornam ainda mais importantes neste ano. Em 2024, o Rio de Janeiro se torna sede do G20, o maior encontro de chefes de Estado e Governo que se reúnem para discutir e propor soluções para um “mundo justo”, como reitera o slogan da organização. 

Dentro dos três principais temas que os debates buscam abordar, a Inclusão social e o combate à fome e à pobreza é uma forte vertente de aproximação ao que será também discutido na 1ª Conferência da Primeira Infância na Maré. O evento traz a oportunidade de cobrar políticas públicas mais efetivas e soluções que tratem da lacuna social referente aos problemas sofridos pelos pequenos moradores do território no período mais decisivo da vida: a infância. 

(*) Maiara Carvalho é estudante de Rádio e TV da Universidade Federal do Rio de Janeiro e faz parte do projeto de Extensão Conexão UFRJ com o Maré de Notícias.

 ‘O que me motiva a lutar é a minha família’, diz irmã de Jefferson, morto por PM há 4 meses

Testemunha é ouvida pela primeira vez sobre morte do seu irmão ocorrida na Avenida Brasil, durante uma manifestação em fevereiro

Maria Teresa

Uma das três testemunhas de acusação pela morte de Jefferson de Araújo Costa, 22 anos, baleado pelo cabo da PM Carlos Eduardo Gomes dos Reis, foi ouvida pela primeira vez nesta segunda-feira (24). Jefferson foi morto no dia 8 de fevereiro deste ano, durante uma manifestação contra violência policial na Avenida Brasil, no acesso a Nova Holanda. A testemunha ouvida é uma das irmãs e estava ao lado da vítima no dia da morte. Ao Maré de Notícias, ela afirma que agiu com normalidade. “É uma coisa que tem que ser feita. Falei o que tinha que ser falado, porque eu tava ali do lado, eu vi tudo acontecer”.

O Ministério Público do Rio de Janeiro pediu uma nova audiência para ouvir as outras duas testemunhas de acusação. A defesa tem cinco testemunhas, todos policiais militares. Nesta fase do processo, as testemunhas dos dois lados serão ouvidas e a juíza Tula Corrêa de Melo tomará a decisão pela pronúncia ou não. Ou seja, se o caso segue no Tribunal do Júri ou se irá para a Justiça Militar. Em linhas gerais, a Justiça terá que decidir se o homicídio é culposo, quando não há intenção de matar, ou doloso, quando há intencionalidade na ação e, portanto, caberá o julgamento na justiça comum. A juí,za original do caso está em férias e, na audiência desta segunda-feira, foi substituída por Alessandra da Rocha Lima Roidis.

A irmã de Jefferson afirma que a morte dele provocou uma dor inclassificável na família e é por isso que decidiu lutar por Justiça. “A minha família do jeito que está depois da perda… Ele morava com minha vó, que morreu a poucos dias. Não se aguentava de tristeza”, conta. “Éramos próximos, às vezes ele me ajudava no trabalho, todo dia tomava café comigo. [Jefferson era] Muito brincalhão, tudo ele ria, um pouco envergonhado. Quando tinha que pedir alguma coisa, colocava a mão na cabeça assim”, disse, lembrando do trejeito do irmão.

A Redes da Maré, através do projeto Maré de Direitos, do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, atuou desde o instante em que Jefferson foi atingido, tanto no apoio psicológico e assistencial aos familiares, como no processo judicial. Um dossiê sobre o caso foi produzido pela equipe trazendo um extenso compilado de registros fotográficos do local do crime, testemunhos, vídeos, para evidenciar que Jefferson foi morto à queima-roupa e desarmado. Uma das versões do agente de segurança pública  que atirou no rapaz é que Jefferson estaria com uma pedra nas mãos e ele foi usar o fuzil para tirar o objeto das mãos da vítima. A pedra nunca foi encontrada e registros de diversos ângulos mostram que o rapaz estava com as mãos vazias. 

Para a advogada da Redes da Maré, Marcela Cardoso, que trabalhou desde o instante em que Jefferson foi baleado, o trabalho realizado pela equipe do Eixo foi fundamental para a mudança de entendimento do caso. Isso porque, em um primeiro momento, a Delegacia de Homicídios, sem nem ouvir familiares e outras testemunhas, tratou o caso como homicídio culposo.

“O trabalho realizado pela Redes da Maré durante o plantão de operação, foi extremamente importante para chegarmos a essa primeira fase do Júri. O Jefferson foi baleado em uma das entradas da Maré e, na sequência, fomos chamados para prestar auxílio. Algumas pessoas da nossa equipe estavam no local, porque não conseguiam entrar na Nova Holanda, por causa de um intenso tiroteio que acontecia naquele momento. Então todos nós chegamos muito rápido ao local e conseguimos buscar elementos, tirar fotos do local, das perfurações, compilamos diversos vídeos que foram enviados pelos moradores e outras testemunhas que ali estavam e produzimos esse dossiê, enviado ao Ministério Público para que servisse efetivamente um manancial comprobatório do que havia acontecido ali”, explicou.

A articulação desse trabalho foi feita com a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e o Ministério Público, que provocou a Justiça a esse respeito, fazendo com que o inquérito retornasse à fase inicial na Delegacia de Homicídios e passasse então a ser tratado como homicídio qualificado.

A testemunha ouvida na audiência desta segunda-feira conseguiu trazer detalhes do ocorrido, já que ela presenciou a dinâmica da ação policial e Jefferson chegou a cair em seus braços após ser atingido.

A advogada Marcela Cardoso lamenta a tentativa de criminalização da favela, evidenciada nesta primeira audiência. “Foi perguntado sobre a vida do Jefferson, se ele tinha passagens. Isso é uma evidente tentativa de criminalização, tanto da conduta do Jefferson, quanto da conduta do ato de se manifestar das pessoas que estava ali, dos jovens, mulheres mareenses, que foram se manifestar por causa de uma operação policial que deixou as crianças presas dentro das escolas e as mães desesperadas do lado de fora”, pontua.

Relembre o caso

No dia 8 de fevereiro deste ano, Jefferson de Araújo Costa, 22 anos, participava de uma manifestação na Avenida Brasil, perto do acesso a Nova Holanda, contra a violência de operações policiais na região. No dia anterior, 7 de fevereiro, durante uma operação policial, Jefferson foi ameaçado de morte por policiais militares. Naquele mesmo dia, a operação havia começado por volta das 9h30, quando a vida na Maré já estava pulsando, comércio aberto e crianças nas escolas. A conclusão foi que as crianças e profissionais da educação ficaram presos dentro da escola em meio ao barulho de tiros e as mães desesperadas dentro de casa, sem poder encontrar seus filhos. 

No dia seguinte, parte dos moradores, em especial mulheres mães mareenses, decidiram realizar uma manifestação na Avenida Brasil. Quando o protesto acontecia, uma outra operação teve início no interior da favela, aumentando a tensão dentro e fora do território. Jefferson estava acompanhado de outros jovens no momento em que um policial militar, que não estava atuando diretamente na operação, desembarca de uma viatura,  se aproxima e usa o fuzil para bater na vítima. Neste exato momento, Jefferson é atingido na barriga e desfalece na calçada. Posteriormente, o policial alegou que Jefferson estaria com uma pedra nas mãos. Os registros em vídeo e testemunhas mostram que o jovem não estava com nada nas mãos. 

A família foi auxiliada pela Redes da Maré que, um dia antes, havia atendido Jefferson por causa da ameaça sofrida. Sem recursos para realizar o sepultamento, no final das contas, a família conseguiu enterrar Jefferson e iniciou, naquele instante, uma luta por reparação. 

“O Jefferson não estava fazendo nada que desse causa a ele receber um tiro de fuzil 762 à queima roupa. Toda essa repercussão do caso se dá muito em razão da própria luta da família, dos amigos, dos moradores, que deram visibilidade a essa ação desproporcional e levaram para a mídia a exposição do que acontece em territórios de favela”, critica a advogada.