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Dois lados da mesma moeda

Leilah Landim

Convidamos duas pessoas com atuações diferentes para responderem as mesmas perguntas. A primeira a responder é Leilah Landim. Doutorado e pós-doutorado em Antropologia Social. Professora na Escola de Serviço Social, onde vem trabalhando mais recentemente com a temática de grupos e organizações em áreas periféricas à cidade do Rio de Janeiro – como a Baixada Fluminense – com ênfase nas mobilizações de reação à violência do Estado, como a reação a situações de chacina.

1) Historicamente, que importância teve a organização da sociedade civil em movimentos sociais?

Os movimentos sociais são diversificados em suas formas de organização, sujeitos, ideários, objetivos e rituais públicos. Estamos falando aqui de ações coletivas no campo das transformações participativas e democráticas contra as desigualdades, pela justiça social, que contemplem interesses das classes populares, nas bases da sociedade. Isso inclui questões culturais e de identidade, como o racismo, o gênero, a etnia e outros.

2) Quais as conquistas desses movimentos?

Mobilizações deixam rastros. As transformações sociais são lentas e contraditórias. Por exemplo, nada será como antes após as manifestações contra o impeachment, contra as catracas, contra a violência e pela paz na Maré. Creio ser evidente que houve conquistas significativas em áreas, por exemplo, como direitos das mulheres, dos LGBTs, das políticas relacionadas à questão racial e de ideias e atitudes na sociedade em relação a esses segmentos e seus interesses, nos últimos trinta anos.

3) Como é a relação entre o Estado e os movimentos sociais hoje em dia? Viramos um País intolerante? Como sair dessa condição?

A sociedade brasileira, de feitio historicamente autoritário, hierárquico e patrimonialista, com mais de 400 anos de mão de obra escrava e industrialização tardia, não foi propícia ao surgimento de amplos movimentos sociais ou da construção de uma sociedade civil forte e organizada. No entanto, não faltaram ao longo do tempo revoltas e reações à dominação e à exploração. A história das lutas de escravos e negros, desde os quilombos até o movimento abolicionista, é um exemplo disso. Nesse caso, como em tantos outros e já chegando aos tempos atuais, a estratégia das forças dominantes sempre é a de ilegitimar, criminalizar ou, simplesmente, abafar e não dar visibilidade aos movimentos sociais e suas conquistas. O pior é que, em grande medida, essa dominação é interiorizada por gente que há algum momento participa de movimentos sociais. Faz-se uma forte mobilização; consegue-se um resultado; e há depoimentos de participantes de que isso se deve a um político tal, a um juiz tal… A afirmação de suas conquistas, mesmo que parciais e ambíguas, deveria ser uma direção afirmada pelos movimentos.

Convidamos duas pessoas com atuações diferentes para responderem às mesmas perguntas

 

Anna Carolina Costa

Quem responde aqui é Anna Carolina Costa, militante socialista e feminista, organizada pelo #MAIS, professora de História da Rede estadual do Rio de Janeiro. Tenho 37 anos e me incorporei às causas sociais quando era estudante secundarista, do Colégio Pedro II. Sou mãe e, desde que meus meninos nasceram, o feminismo e a luta pela superação da sociedade capitalista ganharam novos significados pra mim! Carrego meus filhos pras ruas, pra aprendermos, juntos, que lutar é uma condição fundamental àqueles que não se conformam com a barbárie do capital.

1) Historicamente, que importância teve a organização da sociedade civil em movimentos sociais?

O fim da escravidão aqui no Brasil foi fruto de muita luta social dos negros e negras que, aquilombados, encorajavam seu povo a serem protagonistas de sua própria história. Em nosso País, não há um direito social ou político que não tenha sido fruto de mobilizações e lutas sociais dos trabalhadores e trabalhadoras.

2) Quais as conquistas desses movimentos?

A campanha pelas Diretas já, lá atrás, quando vivíamos o fim da ditadura militar. Lembrar deste momento histórico é bom, porque exigir a realização de eleições gerais e diretas por meio de uma grande greve geral no País, é também uma das principais pautas dos movimentos sociais no Brasil hoje!

3) Como é a relação entre o Estado e os movimentos sociais hoje em dia? Viramos um País intolerante? Como sair dessa condição?

Na história brasileira há um traço fundamental e que permanece, que é a existência de um Estado autoritário, repressor. Os movimentos sociais são criminalizados no Brasil. Se tornou uma prática, lamentável, absurda, inadmissível, que as manifestações de rua invariavelmente tenham presos políticos. Eu vejo a polarização ideológica e política que, hoje, são características do cenário brasileiro, como parte de um crescente conservadorismo no cenário mundial. Então, entendo que a resposta a essa intolerância é a organização destes setores oprimidos para combater, com lutas sociais, este modelo de sociedade hipócrita, moralista, que está apodrecida. Eu acho fundamental que os movimentos sociais tenham independência política de qualquer governo ou de qualquer instituição.

A impunidade dos crimes cometidos pelo Estado

A formação de  grupos  e associações para que as violações de direitos sejam reparadas

Roberto de Oliveira

O combate ao tráfico de drogas no Brasil se transformou em guerra insana, que tem deixado um rastro enorme de mortes nas favelas, principalmente de jovens negros. As armas apreendidas mostram o quanto a população está refém do grosso calibre dos grupos civis armados e da polícia, que também reforça o seu arsenal. O traço mais visível desse modelo de guerra às drogas, adotado pelo Estado, são as operações policiais, que podem vir acompanhadas de violações dos direitos básicos do cidadão, como o de ir e vir, de estudar, arrombamentos, danos morais e em último caso, o direito fundamental à vida.

 

As mães das vítimas e o combate às violações

Ana Paula Oliveira, Janaína Soares e Glaucia dos Santos são três mulheres que perderam filhos negros, jovens e moradores de favelas, para a violência do Estado. Os três foram assassinados por policiais.  Jonathan, filho de Ana Paula, tinha 19 anos quando levou um tiro nas costas de um policial da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos. Christian, de 13 anos, filho de Janaína, morreu com um tiro de fuzil, disparado por um policial numa operação em Manguinhos. Fabrício, filho de Glaucia, foi morto por policiais no primeiro dia do ano de 2014, dentro de um posto de gasolina, nas imediações do Complexo do Chapadão. O relato de Janaína Soares mostra o quanto é difícil levar os casos à Justiça, por causa de intimidações, tentativa de mudanças na cena do crime, perguntas ofensivas nos interrogatórios e a falta de apoio institucional. “Tentaram colocar o corpo dele dentro do caveirão, mas a população não deixou, porque sabia que se tirassem ele dali, ia ficar mais difícil provar qualquer coisa. Disseram que ele estava com radinho, que andava de moto, mas meu filho só andava de bicicleta…”, diz Janaína. A mãe do menino contou que só conseguiu preservar a cena intacta com o apoio dos moradores e da amiga Ana Paula, que ligou para a Secretária da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, que, por telefone, convenceu o comandante da operação policial a lidar de outra maneira com os fatos. Parte da imprensa, ao divulgar os crimes, tenta justificar os assassinatos com insinuações de que as vítimas teriam envolvimento com o tráfico ou teriam “morrido”, ao invés de assassinados, em decorrência da falta de cuidado com a vida do morador de favela.

Pequenas conquistas

No mês de maio foi aprovada no Rio de Janeiro a criação da Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violência no Estado. A Lei foi consequência de uma luta intensa do Movimento Independente Mães de Maio, que nasceu após os Crimes de Maio de 2006, quando o Estado de São Paulo sofreu uma onda de violência com a morte de 500 pessoas, sendo a maioria de jovens negros e pobres. O Deputado Marcelo Freixo (PSOL) ouviu a demanda do movimento de Mães de Vítima de Violência no Estado do Rio e conduziu a aprovação na ALERJ. “A polícia está matando e morrendo muito. Os movimentos de favelas estão mobilizados em torno desses temas, debatendo e construindo… É urgente discutirmos a violência de forma séria, reconhecendo todos os fatores implicados, acabando com essa lógica militarista do extermínio do inimigo, da luta do bem contra o mal”, diz o Deputado, sobre a aprovação da Lei.

 

Organizadas para apoiar outras mães e combater a impunidade

As Mães das Vítimas de Violência viajam pelo Brasil e pelo mundo com o apoio da Anistia Internacional, para contar suas tristes experiências. Elas também apoiam outras mães, que descobrem nelas uma luz, para transformar a dor em enfrentamento. Além da militância nacional, elas atuam localmente. Ana Paula, Janaína Soares e Fátima, outra mãe vítima da violência praticada por policiais, criaram o grupo Mães de Manguinhos, enquanto Glaucia faz atividades comunitárias no Chapadão, com o grupo Mães sem Fronteiras. Segundo Marcelo Freixo, a Defensoria Pública e a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ são locais onde a pessoa recebe assistência e  orientação adequada. A partir disso, os demais Órgãos competentes, como o Ministério Público, são acionados. A Redes da Maré também faz um trabalho de acompanhamento e encaminhamento para instituições que garantem gratuitamente, acesso à Justiça em casos de violações de direitos cometidos por agentes de Segurança Pública.

Seu dinheiro pode caber no seu bolso

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Aprenda como poupar  e terminar o mês fora do vermelho

João Ker

Aumento na conta de luz, salário atrasado, período de desemprego, gasolina cara e o preço das compras de supermercado só cresce de mês em mês. Às vezes, pode parecer quase impossível sair do vermelho no fim do mês e fazer com que seu salário renda 30 dias. Bem, esse até pode ser o caso em algumas situações, mas saiba que é sempre possível enxugar alguns gastos extras aqui e ali, para melhorar seu orçamento. Abaixo, o assessor de investimentos Miguel Milanez[1] dá algumas dicas de situações que você pode e deve evitar para não se ver preso em dívidas que se tornem uma bola de neve:

Para começar o mês bem:

– Nunca planeje gastar tudo o que você recebe no mês. Se você tem uma renda fixa ou mesmo se seu pagamento varia de um período para o outro (de acordo com vendas ou comissões, por exemplo), lembre-se sempre de guardar uma quantia “por precaução”. Pense que a qualquer momento você pode perder o emprego e que alguns meses podem ser piores que outros. Uma reserva também pode ser útil para se precaver para situações como um conserto de última hora, até uma enfermidade.

No supermercado:

– Faça uma lista de compras antes de ir ao mercado e seja fiel a ela. Pequenas compras impulsivas podem fugir do seu controle. Às vezes, um item acaba se tornando dez e, no final do mês, o dinheiro pode lhe fazer falta.

– Compare preços antes ir às compras e, se necessário, divida os produtos entre dois ou mais estabelecimentos. No fim das contas, o que você poupou com promoções, descontos e pequenas vantagens entre um produto e outro significa um dinheiro extra no orçamento do mês.

Com cartão de crédito e parcelamentos:

– Mantenha seu próprio controle de tudo o que gastou no cartão de crédito. Lembre-se de comparar o limite restante com o que você ainda tem sobrando. Nunca deixe ultrapassar o que você tem pra gastar esse mês.

– Tente pagar tudo à vista e sempre negociar descontos para essas compras. Ao parcelar, mesmo que sem juros, você pode se esquecer do valor total da compra e focar apenas no preço da parcela, o que tende a se tornar uma bola de neve para quem tem dificuldade de se controlar com cartões de crédito e cheques.

– Planeje compras grandes com o máximo de antecedência possível, seja uma nova TV, um celular ou, até mesmo, aquela máquina de lavar que precisa ser trocada. Também evite ao máximo fazer financiamentos e parcelamentos com juros, mesmo que eles pareçam pequenos a princípio.

– Não deixe a fatura do cartão para depois. Muito menos parcele ou pague apenas o valor mínimo, que representa uma parte bem pequena do problema real. Lembre-se de que, no mês seguinte, você precisará pagar o restante da parcela, uma multa por atraso e as próximas compras.  Essa bola de neve criada pelo cartão também gera outro gasto: os juros rotativos, que podem chegar a taxas de até 15%.

– Se tudo der errado e você não conseguir pagar a fatura do mês, retire a quantia da reserva de emergência. Se ainda assim não for suficiente, tente negociar com o Banco um empréstimo – as taxas continuarão menores que aquelas cobradas pelo cartão. Caso chegue a esse ponto, pegue apenas o valor necessário e negocie o menor número possível de parcelas para o seu orçamento.

Conseguiu juntar dinheiro no fim do mês?

– Guarde essas reservas e force os juros a trabalhar para você, e não contra. Investir dinheiro não é necessariamente “coisa de gente rica” – existem modelos pequenos que chegam a 100 reais por mês. A poupança já é uma ótima maneira de começar: simples e não requer um valor mínimo.

– Preocupe-se com o seu futuro e pense que investimentos são como uma bola de neve do bem. É possível investir um pouco todos os meses e, daqui a 15 ou 20 anos, comprar um carro ou até mesmo uma casa. Isso sem falar na sua aposentadoria, assim você não depender da previdência do governo.

[1] João Miguel Milanez é assessor de investimentos pela XP Investimentos, sócio da RJ Investimentos, formado em administração pela UFRJ e atualmente mestrando no Coppead/UFRJ.

 

 

Maré de Notícias #77

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Um mar de gente nas ruas pedindo paz

Moradores da cidade inteira, juntos no “Basta de Violência! Outra Maré é possível…”

Roberto de Oliveira e Hélio Euclides

O dia era de sol e mais de mil pessoas aguardavam o início da Marcha Basta de Violência! Outra Maré é Possível, na Praça do Parque União, um dos dois pontos de partida da passeata. O outro local de encontro era a Associação de Moradores do Conjunto Esperança, onde mototaxistas, artistas e moradores cantavam trechos do Rap da Felicidade, um dos maiores sucessos do funk carioca.

O começo foi tímido, mas cada vez que aumentava o número de participantes o grupo ganhava força e manifestantes seguravam cartazes e distribuíam rosas. Alunos e professores estavam presentes na Marcha: “liberamos as aulas para que todos participem desse movimento contra a violência. É bom lembrar que esse tema é trabalhado nas nossas escolas”, conta Cesar Benjamin, Secretário Municipal de Educação.

“É um momento ímpar de buscar a valorização desse espaço. Queremos a garantia para nossos alunos terem todas as aulas do ano letivo. A sociedade precisa olhar para a Maré”, destaca Simone Aranha, diretora da Escola Teotônio Vilela.

O evento foi organizado pelo Fórum Basta de Violência que, desde março de 2017, reúne moradores, líderes comunitários e trabalhadores da Maré para encontrar soluções que possam dar fim às violências causadas por confrontos entre grupos de Um mar de gente nas ruas pedindo paz civis armados e operações policiais que, sob o discurso da guerra às drogas, coloca a polícia do Rio de Janeiro na posição de uma das que mais matam e que mais morrem no mundo, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Pedro Arthur, funcionário da ONG Luta Pela Paz disse que o fato de não poder sair de casa o incomoda. “A gente não aguenta mais tanta violência de todos os lados. É doloroso ter a sensação de que você está preso dentro de casa”, disse o músico.

Em frente ao CIEP Operário Vicente Mariano, os atores representaram os mortos, vítimas da violência. “Mais uma vez queremos reivindicar o direito de ir e vir. Esse é o desejo de toda a cidade”, desabafa Marielle Franco, Vereadora. Nos muros da Escola Escritor Bartolomeu Campos de Queiros, cartazes com trabalhos dos alunos chamavam a atenção.

Moradores da cidade inteira participaram do evento | Foto: Elisângela Leite

A passeata levou cinco mil pessoas para a Rua Evanildo Alves, ponto de encontro das “duas Marchas”. Conhecido popularmente como “Divisa”, o local é marcado por inúmeros confrontos com vários mortos. “Eu estudava no Colégio Elis Regina e muitas vezes eu ia pra escola e tinha gente morta no pátio, então ver tanta gente aqui hoje é algo sentimental”, afirma Fagner França, morador da Baixa do Sapateiro.

A “divisa” deu lugar a apresentações artísticas. Alunos da Lona Cultural Herbert Vianna fizeram paródia com a canção “Não deixe o samba morrer”. Uma Mc do Morro do Alemão recitou uma rima sobre machismo, violência, racismo e pobreza. Mães da Maré e de Manguinhos falaram das ausências de seus filhos vitimados. “Lutamos, pois nossos filhos têm mãe, pai e voz. Nós queremos viver. Nós temos direito ao luto”.

O evento ainda contou com a apresentação do grupo de capoeira da Instituição Luta Pela Paz, da Orquestra Maré do Amanhã, e do grupo Nova Raiz, que cantou a música “Chega”.

Alexandre Rossi, produtor cultural do Circo Voador (Lapa), levou a namorada finlandesa para conhecer um Rio de Janeiro que não aparece na mídia e Camila Pitanga, atriz, que chegou à passeata de mototaxi, declarou: “como carioca é um dever estar aqui, pois essa violência não é só da Maré, é sofrida por todos nós”. Perto de Camila, Jaqueline Souza de Lima, moradora da Maré, gritava: “eu tenho direito de levar minha filha pra escola todo dia”.

Nos primeiros três meses de 2017, ocorreram 14 operações policiais na Maré. Nesses confrontos, 18 pessoas morreram, número maior que o total de mortes em 2016. As atividades do Fórum Basta de Violência! Outra Maré é Possível vão continuar após a Marcha, para construir caminhos e espaços coletivos de escuta, acolhimento e formulação de propostas para conquistar, de forma organizada, o direito à Segurança Pública na Maré.

SAIBA MAIS EM: http://facebook.com/forumbastadeviolencia

A luta sem fim contra as violações de direito na favela

Parcerias com Ministério Público e Defensoria, campanhas informativas, plantão em dia de operações policiais são algumas das iniciativas do Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré

Adriana Pavlova

A cena, até outro dia, poderia parecer um sonho para os moradores da Maré. Num transporte oferecido pelo Ministério Público do Estado do Rio, um grupo formado por parentes e vítimas de violências policiais segue em direção ao Centro do Rio de Janeiro para um encontro com Procuradores da Justiça do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP) do Ministério Público do Rio. Há um misto de ansiedade e preocupação. Ao chegarem, escutam uma palestra sobre seus direitos e, em seguida, cada vítima ou parente tem a chance de ser ouvida de forma particular e exclusiva por um promotor, com total privacidade para, a partir daí, os representantes do Ministério Público Estadual buscarem informações sobre inquéritos ou mesmo instaurar procedimentos. Aos poucos, a tensão vai dando lugar a rostos mais relaxados. Na volta, a caminho da Maré, todos parecem bem mais tranquilos.

“As vítimas de violência ou seus parentes esperam uma explicação. Se há inquérito já aberto, é importante informar como está transcorrendo”, explica a procuradora Viviane Tavares Henriques, coordenadora do GAESP, apontando para uma nova fase dentro do próprio Ministério Público. “Nós do Ministério Público sentimos a necessidade de não ficar mais trabalhando só no papel, distantes. Queremos mais diálogo com as comunidades, como a Maré. Queremos cada vez mais aproximação, atendendo e analisando os casos de perto. Mas, sobretudo, trabalhar preventivamente para que as violações não ocorram. Não queremos apenas a punição, não queremos mortes, queremos que nada disso aconteça e para isso temos de trabalhar antes.”

A visita de vítimas de abusos policiais ao Ministério Público do Estado do Rio, organizada em parceria com o Eixo de Segurança Pública da Redes de Desenvolvimento da Maré, é mais um dos resultados concretos do trabalho diário da Redes  buscando a ampliação de direitos dos moradores do território da Maré. Um trabalho árduo que envolve diretamente uma equipe de cinco pessoas que, nos últimos anos, tem ampliado suas ações: indo para as ruas divulgar, de casa em casa, os direitos dos moradores; criando novas parcerias com Órgãos de Justiça e instituições civis; fazendo circular informação de violações da polícia contra a população, tão comum em favelas, ou tentando intervir em casos de abusos de policiais militares ou civis em dia de operação na Maré, atendendo aos moradores com auxílio de assistente social e advogado; e ajudando a barrar – por meio de liminar – operações policiais noturnas na favela, o que é proibido por lei, mas que muitas vezes não é respeitado.

“Experimentamos estratégias, porque o espaço da Segurança Pública no Rio de Janeiro e no Brasil é muito frágil. Nosso trabalho é pensar numa prática de Segurança cidadã, com ações coordenadas que se encaixem na realidade da vida na Maré. O nosso principal foco é o morador da Maré”, diz a Assistente Social Lidiane Malanquini, coordenadora do Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré.

O trabalho de conscientização de moradores | Foto: Elisângela Leite

Telefone para ajudar em dia de operação policial

Uma das ações mais importantes e que, ao mesmo tempo, têm dado resultados concretos é o plantão da equipe do Eixo em dias de operação policial nas comunidades da Maré, iniciado em 2016. Há um telefone disponível (99924-6462) e, caso os moradores peçam ajuda, uma dupla de profissionais se dirige ao local para mediar conflitos. A simples presença de profissionais como advogado e assistente social já costuma arrefecer a truculência dos policiais. As demandas vão desde a denúncia de arrombamento de casas até o pedido para acompanhamento de pessoas presas, que não são levadas imediatamente para a delegacia e correm mais risco de sofrerem violência.

“Fazemos uma mediação entre a polícia e a população. O clima de uma operação policial na favela é tenso, nada agradável, mas quando nós chegamos o trato é outro. Infelizmente, a polícia ainda tem a convicção de que a favela é um território sem lei, de que as pessoas não vão lutar por seus direitos”, explica a pedagoga Shyrlei Rosendo, da equipe do Eixo de Segurança Pública.

Como as ações de Segurança Pública são todas interligadas, um projeto ou uma campanha acabam se conectando de forma natural. Assim, os dados de violação colhidos durante o Projeto de Acompanhamento Permanente das Ações das Forças de Segurança Pública, por exemplo, muniram a primeira edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, lançado em 2017, com informações de 2016. Segundo a publicação, no ano passado aconteceram 33 operações policiais na Maré, com 17 mortes em decorrência de intervenção policial e 20 dias de atividades suspensas nos serviços públicos de educação e saúde.

Dados tão alarmantes confirmam a necessidade de trabalho contínuo junto aos moradores, como a campanha “Somos da Maré. Temos Direitos”, que tem como objetivo divulgar o que é legal e ilegal durante abordagens policiais. O projeto teve início em 2012 e ano passado, a partir da demanda dos próprios moradores, ganhou uma segunda edição. Como num trabalho semelhante ao de formiguinhas, a equipe do Eixo de Segurança sai sempre em duplas para visitar residências nas diferentes comunidades da Maré. Até hoje, já conseguiram visitar – e muitas vezes revistar – cerca de 50 mil domicílios.

“É um trabalho pedagógico, processual, não adianta ir somente uma vez, é uma conversa, porque é preciso absorver todas as questões, sentir que o morador está pronto para lutar pelos seus direitos e que ao mesmo tempo não está só”, diz a pedagoga Shyrlei.

Operação policial de 2009 foi marco

Historicamente, o Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré tem origem num trabalho de acompanhamento de famílias de alunos das escolas da região que participavam do Programa Criança Petrobras na Maré, nos anos 1990. Nos atendimentos, surgiam questões relacionadas às violações de direitos e violências domésticas. Até que, em 2009, uma operação policial na Maré deixou marcas muito fortes. Segundo se recorda Núbia Alves, Assistente Social e Advogada, a situação foi tão crítica que se percebeu a necessidade mais premente de um trabalho focado em Segurança Pública: “morreram 14 pessoas naquela operação, tudo foi fechado, foi uma situação nunca vivenciada aqui. Naquele momento, tivemos certeza de como o acesso à Justiça é difícil para quem mora na favela. Nós acompanhamos os moradores, os ajudamos a fazer o Registro de Ocorrência”, lembra Núbia.

Defensoria Pública

Neste processo, uma parceria importante é com o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública (NUDEDH) do Estado do Rio de Janeiro, firmada oficialmente em 2016, mas construída desde 2014. A Defensoria presta assessoria jurídica para os moradores vítimas de violência ou mesmo a parentes das vítimas, a partir das denúncias recebidas na Redes.

“Os abusos praticados pelos policiais, que são agentes do Estado, tornam-se uma violação grave. Se o Estado gerou a situação de risco, há direito à reparação.”, explica o defensor público Daniel Lozoya Constant Lopes, que ressalta que qualquer vítima de policiais durante uma operação pode pedir reparação ao Estado, até mesmo sem conseguir comprovar o abuso.

Esta parceria com a Defensoria também foi fundamental para uma liminar inédita que garantiu, em junho de 2016, a suspensão de operações noturnas de buscas em casas da Maré. A proibição de busca domiciliar durante a noite já é prevista na Constituição, mas frequentemente era desrespeitada nas favelas. A liminar deu início a um processo que visa traçar parâmetros jurídicos para as operações policiais nas favelas, com obrigatoriedade de prestação de contas e transparência.

O ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Pedro Strozenberg, afirma que todo o trabalho de garantia de direitos e os debates sobre a Segurança Pública promovidos, hoje, na Maré beneficiam e repercutem no Rio de Janeiro como um todo: “as propostas discutidas e formuladas pela Redes da Maré falam do Rio. A presença em conselhos de direitos, as articulações e campanhas trazem um pertencimento da Redes, que valoriza e afirma o território, mas dialoga com as políticas gerais.”