Home Blog Page 542

Maré de Notícias #68

0

O jornal Maré de Notícias chega mais uma vez a suas mãos, nessa nova fase, recheado de informações e reportagens sobre temas de interesse direto dos moradores das comunidades da Maré. Nesta edição estamos destacando a grande conquista das mulheres organizadas do bairro que estão construindo uma sede para seus projetos, uma luta que começou lá atrás, nos anos de 1970, quando começara a se articular para construir a primeira creche na Nova Holanda. Veja agora o jornal inteiro:

 

Maré de Notícias #67

0

O Maré de Notícias volta à circulação nas dezesseis comunidades do bairro da Maré, depois de nove meses. De “cara” nova, com diagramação simples facilitando à leitura, nesta edição de número 67, o nosso jornal mensal ressalta a grande conquista dos moradores de terem a maioria de cerca de 62% das ruas do bairro finalmente incorporados ao mapa municipal do Rio de Janeiro. Veja o jornal inteiro:

 

Pensar a condição da Mulher a partir das favelas cariocas

0

POR #AGORAÉQUESÃOELAS

Por Eliana Sousa Silva*

As violências contra as mulheres, com ênfase para o abuso sexual que se materializa, em muitos casos, em estupro, estão na ordem do dia no Brasil. Diante da gravidade do fato, é positiva a atenção que o tema vem recebendo, assim como o esforço de muitas e muitos para romper com sua naturalização. A minha compreensão sobre essa questão foi construída a partir da favela onde cresci e residi por 28 anos: Nova Holanda, Maré, Rio de Janeiro.

Neste território, que não é diferente de outros da cidade, aprendi a reconhecer as relações sexistas como uma raiz central das violências direcionadas às mulheres, apesar de características peculiares às condições que a realidade da favela apresenta. Ali, a cultura do estupro se faz presente, historicamente, como em outras partes da cidade, mas foi sofrendo sanções diferenciadas durante os anos. Nesse sentido, remeto-me a um fato da década de 70, quando eu era criança: um morador próximo a minha casa ficou conhecido como tarado porque tinha como prática agarrar mulheres. Na ocasião, quando encontrávamos com ele, eu e algumas amigas gritávamos: “- Tarado!” e corríamos. Ele ficava procurando quem gritara, começava a vozear e nos xingar. Ele era hostilizado frequentemente e vivia sozinho, a mulher o havia deixado.

Já na década de 80, relembro de duas situações impactantes: um homem foi acusado de abusar de uma criança. Diante da situação, o chefe do grupo armado, à época, que era apenas um adolescente, mas com forte carisma, o vestiu de mulher e o aleijou, dando um tiro em cada joelho do abusador. A partir dali, ele ficou marcado e passou a ser objeto de ofensas e interdições. Na segunda situação, outro chefe de grupo armado teve uma postura mais extrema: um homem acusado de ter estuprado uma mulher foi aprisionado pelos traficantes, fortemente agredido, morto, o pênis cortado e exposto num carrinho de madeira. Nesse caso, há moradores que até hoje dizem que foi um castigo injusto, pois não teria sido essa pessoa a estuprar e, sim, o irmão. Tudo isso de forma exposta à execração pública a fim de servir como exemplo para outros. Dessa forma, desde aquela época, o estupro, assim como o roubo, o assalto ou o homicídio sem autorização do chefe do grupo armado, passaram ter como sentença a condenação à morte. O mesmo acontece em muitas favelas cariocas. Desse modo, o estupro numa via pública é fortemente inibido nessas regiões. Já os abusos sexuais, por sua vez, que acontecem em espaços privados e, muitas vezes, são realizadas por familiares, nem tanto.

Em que pese à aberração de pensar que esse tipo de violação ocorra no Rio de Janeiro e haja grupos civis armados, que em determinados regiões da cidade possam exercer o tipo de prática apresentada, sem qualquer intervenção do Estado e do sistema de justiça; o interdito, na minha compreensão, daquele tipo de estupro é que a reparação não se deriva pelo reconhecimento do respeito ao corpo e a garantia de direitos das mulheres, longe disso. Na realidade, é comum o próprio companheiro, namorado ou marido de uma mulher ocupar, às vezes, o lugar do estuprador, sendo, em alguns casos, permitido, inclusive, se patrocinar estupros coletivos, como o que pode ter ocorrido no episódio que veio a público em 26 de maio do corrente ano.

Cabe salientar que essa violência é tão antiga e recorrente que foi criado um termo específico para defini-la, e que, raramente, tem sido utilizado nos debates: curra. A curra é tão antiga quanto às classes e se faz presente em toda a história feminina, legitimada desde a origem pelas interpretações religiosas, em particular as monoteístas, que colocam a mulher em posição inferior e como representação do mal, devendo, por isso, ser cerceada, controlada, punida, reprimida e castigada quando expressa posicionamentos autônomos, que escapam da autoridade masculina tradicional.

A palavra HOMEM para nos designar como espécie humana, que inclui o homem e a mulher, demonstra o não reconhecimento de que a mulher deveria ser pensada de maneira independente e na sua especificidade como gênero. Ou seja, como bem propalou a filosofa Simone de Beauvoir “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Nesse sentido, o que caracteriza a feminilidade não se relaciona com o que as mulheres carregam de biológico, mas sim pelo que foi acumulado do ponto de vista da cultura e das crenças semeadas historicamente.

É crucial reconhecer que se naturalizou historicamente a violência contra as mulheres, sendo essa um processo que se relaciona com as relações de poder estabelecidas na sociedade. As distintas ações/violências, com enfoque de gênero, que de forma proposital provocam numa mulher dor física, sexual e psicológica, seja no âmbito privado ou público, como é o caso do estupro, ocorrem como consequências de uma prática, essencialmente, masculina.

Fui adquirindo um juízo crítico ao sexismo em meu processo de ampliação do repertório cultural, social e educacional. Conheço muitas mulheres nas favelas que ainda não colocaram o machismo em questão e o naturalizam como inerente às relações homem-mulher. Nesse sentido, tenho clareza que há um imenso desafio para ampliar a compreensão da maioria das mulheres e, também, dos homens das favelas sobre os direitos femininos e a superação do processo de transformação da diferença de gênero em desigualdade. Assim como as lutas raciais, as lutas de gênero, como movimentos organizados, ainda são hegemonizadas, infelizmente, pelas mulheres dos setores médios. Isso, sem dúvida, precisa mudar e de forma urgente. Percebo, contudo, que há um movimento, ainda, incipiente, de muitas mulheres das favelas, principalmente as mais jovens, e a partir de novas referências culturais, colocarem em questão a supremacia do masculino e criticarem quando elas adquirem expressões hipervirilizadas.

A nossa busca deve ser pela incorporação de mais e mais mulheres para esse campo de luta, reconhecendo que os homens precisam ser questionados e trazidos para esse debate, pois eles são parte do problema e, também, da solução. Temos de formar nossos filhos, filhas, netos e netas numa perspectiva social e humana que tenha como base a empatia, a necessidade de reconhecer o direito, a dor e a alegria do outro, da outra. Apenas desse modo será possível desnaturalizar essa forma de opressão tão vil, criando formas de relacionamento nos quais mulheres e homens possam ser apenas pessoas, iguais nas suas diferenças, nos seus anseios e busca de uma vida plena, livre e segura.

* Eliana Sousa Silva coordena a organização não-governamental Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES). Formada em Letras pela UFRJ, com mestrado em Educação e doutorado em Serviço Social pela PUC/RJ, é diretora da Divisão de Integração Universidade Comunidade da Pró Reitoria de Extensão da UFRJ. Parte da sua trajetória é contada no livro Testemunhos da Maré (Editora Aeroplano, 2002).

Fuzil: no centro da cidade não, mas na favela sim?!

[vc_tta_tabs style=”modern” shape=”round” color=”white” spacing=”” active_section=”1″][vc_tta_section title=”Versão em português” tab_id=”1522935878736-b7412c26-ce18″]
Foto: Rosilene Miliotti

Por Eliana Sousa Silva (Diretora da Redes da Maré e da Divisão de Integração Universidade Comunidade PR-5 – UFRJ)

“Fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbana”.  Rodrigo Pimentel.

O comentário acima destacado é do consultor de segurança pública Rodrigo Pimentel no telejornal RJ TV 1ª edição de 18/06. Ele foi feito de forma natural, racional e equilibrada e é feito ao analisar a imagem de um policial militar com uma metralhadora atirando para o alto, mas na direção de manifestantes que praticavam ações violentas em frente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Ele ressalta o despreparo do profissional da segurança pública, chamando a atenção para o fato de que “o tiro, do mesmo jeito que vai para o alto, desce e pode atingir de maneira letal qualquer pessoa.”

A observação do atual comentarista da área da segurança pública da Rede Globo é extremamente pedagógico, pois demonstra de forma cabal o pensamento de parte significativa da nossa sociedade, com ênfase para os governantes, sobre como as políticas públicas são idealizadas e efetivadas a partir de uma visão hierarquizada da cidade e dos cidadãos. No caso da reportagem, a afirmação de que a metralhadora não poderia ser utilizada numa cena urbana de protestos,  mas na favela ou em situação de guerra, ilustra como o valor a vida na nossa cidade  vai depender do território ou das pessoas das quais estamos falando. Afinal, o que define a diferença fundamental para o uso do Fuzil, quando estamos falando de cidadãos da mesma cidade – e, ressalte-se, no caso das favelas, temos cidadãos que não têm garantido o direito elementar no campo de segurança pública.

É triste precisar afirmar algo tão óbvio: que não se justifica em passeatas ou nas favelas a utilização de armas pesadas, tampouco as violências policiais características das últimas manifestações pelo país a fora, e historicamente nas favelas. Porém, indago, quando foi diferente disso? Qual foi o momento da nossa história política em que tivemos atitudes dos poderes estatais de respeito e reconhecimento do direito da população se manifestar? Quando os mecanismos e meios democráticos foram legitimados por quem governa em nosso país? Quando e como somos estimulados no cotidiano a exercer o nosso direito de participação?

Rodrigo Pimentel entrou aos 18 anos para a polícia militar do Rio de Janeiro. Trabalhou como capitão do Batalhão de Operações Especiais, BOPE, durante 5 anos e ganhou notoriedade pela participação no  documentário “Notícias de uma Guerra Particular” e outros filmes vinculados à favela e aos grupos criminosos. Deixou a polícia para se dedicar ao trabalho profissional de analista da segurança pública, o que se tornou possível pela trajetória que teve como profissional desse campo. E, em particular, pela crítica profunda, no citado documentário de João Moreira Salles, à estratégia policial utilizada nas favelas contra o tráfico de drogas.

O que estarrece e não pode deixar de ser pontuado quando ouvimos o discurso do comentarista, é o fato de serem as opiniões/análises desse profissional consideradas um bom parâmetro para se entender o que acontece na segurança pública do Rio de Janeiro.  É a partir de visões como a apresentada por Rodrigo Pimentel que se sedimentam juízos perversos e estereotipados sobre as favelas e quem ali reside.

Quando realizei pesquisa de doutorado em 2009 no campo da segurança pública, tive como motivação entender as práticas dos policiais militares nas favelas, especificamente na Maré. As questões ali propostas, e várias ainda me acompanham,  se relacionam de maneira direta com a fala do citado comentarista.  O meu intuito e desejo como alguém que cresceu e se socializou na favela era o de construir um quadro interpretativo das práticas cotidianas presentes na Maré, em especial as violentas, que permitisse ir além das representações hegemônicas no mundo social carioca e brasileiro sobre a violência estabelecida nas favelas do Rio de Janeiro.  Dessas, duas estão diretamente relacionadas com a fala de Pimentel: “quais seriam as representações, valores, princípios e regras que têm orientado as práticas dos profissionais da segurança pública, quando se trata do trabalho junto às populações mais pobres da cidade do Rio de Janeiro?” e “as experiências e representações dominantes nas organizações do Estado, na mídia, na população em geral, estão centradas na idéia de que a única possibilidade de enfrentamento dos grupos criminosos passa, necessariamente, por uma opção sustentada em práticas também violentas?”

A fala aparentemente equilibrada daquele comentarista é simplesmente a expressão de uma lógica perversa, violenta e irracional disseminada na sociedade e nas forças do Estado, que enxergam a sociedade civil e as populações das favelas como “problemas” a serem eliminados e não como sujeitos de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados.

 

Assista o vídeo em que Rodrigo Pimentel fala sobre o uso de fuzis:

http://globotv.globo.com/rede-globo/rjtv-1a-edicao/t/edicoes/v/especialista-em-seguranca-publica-comenta-acao-de-policiais-durante-manifestacao/2640971/

[/vc_tta_section][vc_tta_section i_type=”openiconic” i_icon_openiconic=”vc-oi vc-oi-exchange” add_icon=”true” title=”English version” tab_id=”1522935878756-4f6d8fba-0486″]

03/06/2016

Assault rifle: downtown, no; but in the slums, yes?!

June 21, 2013

By Eliana Sousa Silva (Director of Redes da Maré and the PR-5 University-Community Integration Division – Federal University of Rio de Janeiro [UFRJ])

“An assault rifle must be used in wars, in police operations in communities, and in slums. It is not a weapon to be used in urban areas”. Rodrigo Pimentel.

The comment highlighted above is from the public safety consultant Rodrigo Pimentel during the TV newscast RJ TV 1st edition, on June 18. It was made in a natural, rational and balanced manner and was made when analyzing the image of a military policeman with a machine gun firing into the air, but toward protesters who engaged in violent actions in front of the Legislative Assembly of Rio de Janeiro. He points out the lack of preparation of public safety professionals, drawing attention to the fact that “a bullet, just like it goes up, it comes back down and can hit anyone in a lethal way.”

The remark by the Globo Network’s current public safety commentator is extremely educational as it demonstrates adequately enough the mindset of a significant part of our society, with an emphasis on public leaders, about how public policies are idealized and put into effect from a hierarchical view of the city and its citizens. In the case of this news story, the claim that a machine gun could not be used in an urban scene of protests, but is adequate in the slums or in a war situation, illustrates how the value of life in our city will depend on the territory and the kind of people we’re talking about. After all, what defines the fundamental difference for the use of an assault rifle, when we are talking about citizens of the same city – and it is worth mentioning, in the case of slums, we have citizens whose basic right to public safety is not assured.

The need to state something so obvious is sad: that the use of heavy weaponry is not justified in protest marches or in slums, nor is the police violence characteristic of the latest protests throughout the country, and historically in the slums. However, I inquire, when was it any different from this? What was the time in our political history when we had attitudes, coming from the state powers, of respect and recognition of the people’s right to speak? When were the mechanisms and democratic means legitimized by those who govern our country? When and how were we stimulated, in our everyday lives, to exercise our right to participate?

Rodrigo Pimentel got into the Military Police of Rio de Janeiro at age 18. He worked as Captain of the Special Operations Battalion, BOPE, for 5 years and gained notoriety for his participation in the documentary “News from a Personal War” and other films linked to the slums and criminal groups. He left the police to devote himself to professional work as a public security analyst, which was made possible by the trajectory he has had as a professional in this field. And, in particular, thanks to the profound criticism in the aforementioned documentary by João Moreira Salles, to the police strategy used in the slums against drug trafficking.

What terrifies and must not be failed to be pointed out when we hear the speech by this commentator, is the fact that they are the opinions/reviews of this officer, who is considered a good parameter to understand what happens in the public safety of Rio de Janeiro. It is from views such as the one presented by Rodrigo Pimentel that wicked and stereotypical judgments about the slums and those who reside there were formed.

When I performed a doctoral research in 2009 in the field of public safety, I had the motivation to understand the practices of the military police in the slums, especially at Maré. The issues proposed therein, and many still follow me, relate in a direct way with the speech of the quoted commentator. My intention and desire as someone who grew up and had a social life in a slum was to build an interpretive framework of the everyday practices present at Maré, particularly the violent ones, that would allow me to go beyond the hegemonic representations of Rio’s and Brazil’s social world on the established violence in the slums of Rio de Janeiro. Of these, two are directly related to Pimentel’s speech: “what would be the representations, values, principles and rules that have been guiding the practices of public safety professionals when it comes to working with the poorest layers of the population in the city of Rio de Janeiro?” and “the experiences and dominant representations in state organizations, the media, and the general population, are centered on the idea that the only way to confront the criminal gangs necessarily goes through a option also sustained on violent practices?”

The seemingly balanced speech from that commentator is simply the expression of a perverse, violent and irrational logic widespread in society and forces of the State, who see civil society and the population of slums as “problems” to be eliminated and not as subjects of rights that must be recognized and respected.

Watch the video in which Rodrigo Pimentel talks about the use of assault rifles:

http://globotv.globo.com/rede-globo/rjtv-1a-edicao/t/edicoes/v/especialista-em-seguranca-publica-comenta-acao-de-policiais-durante-manifestacao/2640971/

[/vc_tta_section][/vc_tta_tabs]

A autoemancipação das Mulheres

0

“É próprio da mulher o sorriso que nada  promete e permite tudo imaginar. ”   Carlos Drummond de Andrade

 

por Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré

O dia 8 de março, como data referência para lembrar a condição das mulheres mundialmente, deve ser reconhecido pelo seu sentido político e simbólico. Essa data, definida em 1977 pelas Organizações das Nações Unidas, uma instância criada por países que se reúnem voluntariamente para trabalhar pela paz, significou o reconhecimento de lutas históricas empreendidas por mulheres nos Estados Unidos, mas também da Europa. Temos registros de que no final do século XIX, nessas partes do mundo, movimentos femininos, basicamente de operárias, já protestavam contra as condições indignas de trabalho, com jornadas de até 15 horas diárias, mas também baixas remunerações e exploração de trabalho infantil.

No século XX, contudo, o processo de enfrentamento e organização das mulheres se intensifica naquelas regiões, forjando, mesmo que ainda como principio a ser alcançado na prática, o reconhecimento dos direitos das mulheres em igualdade com os homens. Um longo caminho que perseguimos até hoje que, como diz a filosofa da Polônia, Rosa Luxemburgo, requer “uma reflexão em movimento que se enriquece com a experiência histórica”. Nessa compreensão, o dia que lembra as lutas das mulheres no mundo deve ser reconhecido como um momento para visibilizar o papel de inferioridade imputado às mulheres e que está na gênese da formação de muitas sociedades.

No Brasil, o percurso de luta das mulheres não teve razões diferentes das que identificamos em outros países historicamente. Contudo, somente no início do século XX, determinados grupos de mulheres conseguem se afirmar e se mobilizar para garantir direitos básicos, como votar em eleições, o que somente ocorre em 1932, apesar do Brasil ter se tornado uma república em 1889. Como podemos perceber, é bem recente a ideia de igualdade de gênero em nosso país, sendo a discussão sobre a existência de desejos, a partir da condição do ser feminino, algo bem distante da nossa cultura.

Como sociedade, temos como uma de nossas heranças o fato de nos organizarmos a partir de uma ideia na qual a mulher tem, ainda, um papel secundário em relação ao homem. Em que pese alguns avanços em relação à condição das mulheres no Brasil, com a criação de políticas públicas e espaços de enfrentamento das violações cometidas contra as mulheres, temos um longo caminho para superarmos os preconceitos em torno do direito dessas de experimentar o mundo, a partir de seus próprios desejos e sensações.

Sem dúvida, esse novo olhar vai exigir que as próprias mulheres se reconheçam na sua condição gênero e considerem o que se relaciona nessa perspectiva. Isso vai significar lidar, em certa medida, com as relações que estabeleceu na vida, com os repertórios acumulados a partir das suas vivências e, também, com os papéis que assumiu no seu percurso. Precisará olhar para as representações correntes do que significa ser homem e mulher na nossa sociedade e, ainda, como fundamental, nesse processo, deixar aflorar a sua dimensão subjetiva.

Não custa lembrar os 12 direitos que, de acordo a Organização das Nações Unidas, ONU, são direitos garantidos a todas as mulheres. Será que estamos conseguindo efetivar esses direitos? Como alcança-los em regiões como o conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, onde é parte do cotidiano ocorrem, de maneira significativa, violações contra as mulheres?

São esses os direitos que não podem ser esquecidos: 1. Direito à vida; 2. Direito à liberdade e à segurança pessoal; 3. Direito à igualdade e a estar livre de todas as formas de discriminação; 4. Direito à liberdade de pensamento; 5. Direito à informação e à educação; 6. Direito à privacidade; 7. Direito à saúde e à proteção desta; 8. Direito a construir relacionamento conjugal e a planejar sua família; 9. Direito a decidir ter ou não ter filhos e quando tê-los; 10. Direito aos benefícios do progresso científico; 11. Direito à liberdade de reunião e participação política; 12. Direito a não ser submetida a torturas e maltrato.

O valor da vida no Brasil

[vc_tta_tabs style=”modern” shape=”round” color=”white” spacing=”” active_section=”1″][vc_tta_section title=”Versão em português” tab_id=”1522941308783-0cb8888a-6d75″]

O que você estava fazendo no sábado à noite, em 28 de novembro 2015? Provavelmente, se divertindo  om familiares ou amigos. O mesmo faziam cinco adolescentes e jovens negros em um carro popular, em um bairro do subúrbio carioca, a caminho de uma pizzaria, até serem fuzilados por policiais militares.

Todos morreram pelo simples fato de serem negros, jovens e se encontrarem em uma região da cidade considerada perigosa?

O Mapa da Violência 2014 traz dados macabros: foram 154 homicídios diários, totalizando 56.337 assassinatos em 2012, sem levar em conta os desaparecidos que não entram nessa conta. Os números revelam uma face do Brasil oculta por uma invisibilidade derivada da naturalização: determinada parcela da população está tendo suas vidas brutalmente abreviadas.

Os versos de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, bem poderiam ilustrar esse genocídio: “Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas –a da minha nascença e a da minha morte”.

Afinal, se nos distanciarmos do contexto em que essa poesia foi criada, seus versos poderiam ser anunciados por qualquer adolescente ou jovem brasileiro entre 15 e 29 anos, negro, pobre e do sexo masculino. Eles representam 53,4% do total dos assassinatos, mas as forças sociais do país não enxergam a tragédia em toda a sua dimensão.

Um contraponto a essa situação é o enfrentamento da mortalidade infantil: a ação integrada de agentes o Estado, instituições de pesquisa e da sociedade civil, em particular a Pastoral da Criança e conselhos de defesa da criança e do adolescente, fez com que a mortalidade das crianças brasileiras tivesse significativa queda desde os anos 1980.

Dados do governo federal de 2015 mostram que a taxa de mortalidade das crianças abaixo de cinco anos apresentou queda de 65% entre 1990 e 2010, e o número de óbitos por mil nascidos vivos passou de 53,7 para 19.

Estamos cuidando das crianças, mas as deixamos morrer na adolescência ou juventude. No campo do imaginário social, há uma razão para isso: quando se vê uma criança pobre com demandas, ela provoca indignação e desejo de proteção; o jovem na mesma situação provoca medo e insegurança.

Logo, as mortes não ocorrem de forma natural, não são um “fato da vida”. Elas acontecem, antes de tudo, porque os assassinos se sentem impunes para matar e apoiados socialmente. É urgente superar esse imaginário terrível.

O consenso da sociedade em torno do tema da mortalidade infantil foi a base para a melhora dos índices, assim como o fato de o problema integrar uma agenda mundial definida pelas Nações Unidas. O mesmo deve ocorrer com o assassinato de jovens, e cabe ao governo brasileiro mobilizar-se para isso.

Precisamos reverberar a indignidade até que se torne parte do imaginário que essa violência não será mais aceita. Apenas pela mobilização poderemos pressionar canais legais, implicar Judiciário e Legislativo, pressionar para que a polícia seja mais eficiente e voltada para garantir a segurança pública de todos os cidadãos. Essa é a principal tragédia brasileira de hoje.

 

ELIANA SOUSA SILVA é diretora da Redes da Maré e da Divisão Universidade Comunidade da PR-5- UFRJ e integrante da Rede Folha de Empreendedores Sociais

[/vc_tta_section][vc_tta_section i_type=”openiconic” i_icon_openiconic=”vc-oi vc-oi-exchange” add_icon=”true” title=”English version” tab_id=”1522941308820-e1e53f7f-dc6e”]

Eliana Sousa Silva: The value of life in Brazil – 02/22/2016- Opinião – Folha de S.Paulo

The value of life in Brazil

What were you doing on a Saturday night, November 28, 2015?   You were probably having fun with relatives or friends. Five black adolescent and youth were doing the same in an economy car, in a district of Rio de Janeiro suburb, going to a pizzeria, until they were shot by military policemen.

Did they all die just for being black, young and for being in a region of the city considered dangerous?

The Map of Violence 2014 brings macabre data: 154 daily homicides, totaling 56,337 murders in 2012, without considering those who have disappeared. The numbers reveal a face of Brazil hidden by an invisibility that is consequence of naturalization: a certain part of the population is having their lives brutally shortened.

The verses by Alberto Caeiro, Fernando Pessoa heteronymous, could well illustrate this genocide: “If, after I die, they want to write my biography, nothing is simpler. There are only two dates – my birth and my death”.

After all, if we take a distance from the context where this poem was written, its verses could be announced by any Brazilian black teenager or youth, between 15 and 29 years old, poor and male. They represent 53.4% of the total of murders, but the country social forces do not see this tragedy in its whole dimension.

A counterpoint to this situation is the facing of infant mortality: the integrated action of State agents, research institutions and civil society, particularly the Pastoral da Criança (apostolate for children) and child and adolescent defense councils, has made Brazilian infant mortality significantly fall since the 1980s.

2015 data from the federal government show that mortality rate of children below five years old has fallen 65% between 1990 and 2010, and the number of deaths per each thousand born alive fell from 53.7 to 19.

We are taking care of our children, but we let them die in adolescence or youth. In the social imaginary field, there is a reason for that: when we see a poor child with demands, we feel indignation and a desire to protect; the youth in the same situation causes fear and apprehension.

So, deaths do not occur naturally, they are not a “fact of life”. They happen, first of all, because the murderers feel free to kill, unpunished, and they are socially supported. We must overcome this terrible imaginary, it’s urgent.

Society consensus around infant mortality theme was the basis for the improvement of rates, as well as the fact that the problem integrates a world agenda defined by the United Nations.  The same must occur with the murder of youth, and it is up to the government to do something about it.

We must spread the indignation until it becomes part of the imaginary and this violence will no longer be accepted. Only through mobilization will we be able to push legal channels, imply the Judiciary and Legislative, push to have a more efficient police, focused on ensuring public security to all citizens. This is the chief Brazilian tragedy of today.

 

ELIANA SOUSA SILVA is Director of Redes da Maré and of University/Community Division of PR-5 – UFRJ and member of  Rede Folha de Empreendedores Sociais (social entrepreneurs’ network)

[/vc_tta_section][/vc_tta_tabs]