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Migrantes africanos preservam a origem e criam novas expressões culturais na Maré

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Edição #166 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

Dentro do bairro Maré, existe um outro bairro: o Bairro dos Angolanos. O local abriga a comunidade migrante no território que, de acordo com o Censo Maré (2019), conta com 278 moradores estrangeiros. A maioria absoluta desses migrantes são angolanos: 195 pessoas.

Segundo o Censo Maré, o número pode ser ainda maior e, dos africanos, ainda se destacam no território, pessoas oriundas de países como Moçambique, Quênia, Congo, Cabo Verde e Gana. Esses moradores são responsáveis por preservar a cultura do continente berço do mundo e por criar novas conexões inspiradas no encontro entre África e Maré.

A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional para Migrações (OIM), define hoje o migrante como qualquer pessoa que se mude ou se desloque através de uma fronteira nacional ou internacional, independentemente do estatuto legal da pessoa, do movimento ser voluntário ou involuntário, das causas do movimento ou da duração da estadia. Em 2017, o número de migrantes alcançou os 258 milhões no mundo.

Porta do Brasil

Mario Alexandre, de 42 anos, é presidente do núcleo Maré da União de Angolanos no Rio de Janeiro (Unaerj), e vive no território há 28 anos. “Viemos a busca de um sonho, de uma vida melhor, de estudos, e hoje já tem angolanos aqui que são avós. Eu criei minha família aqui”, conta. 

Mario é turismólogo e, embora tenha visitado outros pontos do Brasil, o local para ele é especial. “A Maré abriu as portas pra gente conhecer a sociedade brasileira. Dizem que a Maré só tem violência, mas não é isso. Fomos recebidos de braços abertos. É um povo hospitaleiro que tem quase a mesma cultura do povo angolano: gosta de festa, tem uma gastronomia forte, um povo sorridente, apesar de tudo”.  

Yannick Emanuel, de 22 anos, conta que a família chegou ao Brasil em 2014, para morar em São Paulo, mas ele veio para a Maré por influência do irmão. 

“Minha mãe sempre frequentou o Brasil e já tinha essa vontade de morar aqui. A maior diferença que senti ao chegar na Maré foi ter uma comunidade angolana fisicamente mais perto. A agitação, o bairro noturno e com bastante movimentação, parece muito com Luanda”, revela. Hoje, ele trabalha como secretário e assistente de produção na Areninha Herbert Vianna.

Similaridades

A influência cultural do continente africano aparece no Brasil com a chegada dos navios que traficavam pessoas escravizadas. Estima-se que mais de 5 milhões de pessoas foram forçadas a atravessar o oceano Atlântico e, a maioria delas, era da região onde hoje estão os países de Angola e da República Democrática do Congo. 

Em diversos aspectos, é possível observar as similaridades entre as culturas, como a gastronomia, a música, a dança e a religião. O samba, ritmo musical brasileiro conhecido mundialmente, têm raízes do semba, ritmo dos povos bantu. Atualmente, o semba resiste e é um dos ritmos mais ouvidos em Angola.

Capoeira Maré

Outro traço africano da cultura africana e “abrasileirado” é a capoeira, trazida pelos povos de Congo-Angola. A Capoeira Angola, conhecida como capoeira mãe, é praticada em vários pontos da Maré. 

O educador angolano Marco Rabi, de 26 anos, conta que teve o primeiro contato com a capoeira ainda em Angola. Hoje, ele dá aulas para crianças em escolas municipais da Maré. A atividade é uma iniciativa da Luta Pela Paz e da Prefeitura do Rio de Janeiro. 

“Dar aulas para crianças da pré-escola é interessante. Elas são muito genuínas, puras e espontâneas. Elas têm maior facilidade de receber, maior predisposição para aprender do que os adultos”, afirma. 

Embora a capoeira seja patrimônio histórico e esteja na identidade brasileira, Marco revela um dos principais impasses. “O pessoal correlaciona a capoeira com a religião e esse é um dos maiores desafios que a gente tem. É um trabalho árduo explicar para os responsáveis, mas é dessa forma que a gente consegue trabalhar.  Porque as crianças querem participar, mas o responsável fala que ‘não, que a capoeira é de religião de matriz africana’ e, por isso, não pode fazer”, explica.

Recomeços

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola, em novembro de 1975, estreitando os laços diplomáticos entre as duas ex-colônias portuguesas. No mesmo ano, Angola sofreu com o início da guerra civil que acabou apenas em 2002. A guerra, que gerou milhões de refugiados, foi o principal motivo da migração angolana para o Brasil, na década de 1990.

Mario Alexandre conta que além da guerra, outro fator influenciou o fluxo migratório. “Se por um lado tinha a guerra, por outro também tinham as novelas brasileiras que passavam em Luanda, a capital, e mostravam a beleza das praias do Rio de Janeiro. Era um paraíso, e quem não quer morar no paraíso enquanto seu país está em guerra?”, diz.

Racismo à brasileira

A cultura brasileira era exibida para as famílias angolanas, mas a realidade era diferente das relações retratadas na TV. Mário relembra a violência sofrida pelos migrantes na Maré no fim dos anos 1990, quando o então governador Anthony Garotinho, acusou os angolanos de treinar grupos civis armados com táticas de guerra.

“Viemos fugindo da guerra. Quem vem fragilizado de Angola, a última coisa que quer é se associar a qualquer tipo de violência. Viemos por uma vida melhor, por oportunidades e não para causar mais guerra”, relembra Mário.

Na época, o diretor da Associação dos Angolanos no Rio, Francisco Cruz, caracterizou as falas do governador como ”racistas e preconceituosas”. Em 12 de fevereiro de 2000, a então vice-governadora, Benedita da Silva, se encontrou por sua própria iniciativa, com o cônsul de Angola no Rio de Janeiro, Ismael Diogo da Silva e, pediu desculpas em nome do governo.

Os anos passaram, mas pouca coisa mudou. Em 2022, o congolês Moïse Kabagambe foi brutalmente assassinado em um quiosque na Barra da Tijuca. O jovem foi espancado até a morte e, além dos agressores, foi constatada a presença de pessoas assistindo o crime, sem intervir. Os três acusados estão presos e aguardam a data do julgamento.

Longo caminho

Para Mario Alexandre, há um longo caminho a se percorrer quando se trata de políticas públicas para migrantes negros: “O que é difícil no Brasil é a violência com pessoas negras. O mercado quer aparência, né? Aparência branca. Essa parte do país foi um choque muito grande”, desabafa.

De acordo com dados da Polícia Federal, vivem mais de 42 mil migrantes de origem africana no Brasil, e o número aumenta a cada ano. Entretanto, somente em 2023, foi inaugurado um Centro de Atendimento e Referência para Imigrantes (CRAI), no Rio de Janeiro, uma parceria entre a Prefeitura e a Community Organised Relief Effort (Core). A  organização, criada pelos atores de Hollywood Sean Penn e Ann Lee, atua em países com populações em vulnerabilidade.

O turismólogo Mario Alexandre reforça a importância da atuação das associações em apoio aos migrantes: “O Brasil tem barreiras muito difíceis causadas pelo racismo. Na Unaerj, nós atuamos com diversas parcerias para cursos profissionalizantes, oportunidades de trabalho, jovem aprendiz, matrícula escolar para filhos de angolanos, EJA, ou seja, estamos atuando de frente para melhorar a vida dos angolanos que estão aqui”, conta.

Em 2016, os 193 estados-membros da ONU adotaram a Declaração de Nova Iorque para Refugiados e Migrantes (A / RES / 71/1), reconhecendo a necessidade de uma abordagem abrangente para a migração. O documento reconhece a contribuição positiva dos migrantes para o desenvolvimento sustentável e inclusivo e compromete-se a proteger a segurança, a dignidade, os direitos humanos e as liberdades fundamentais de todos os migrantes, independentemente de seu estatuto migratório.

Memórias que constroem identidades e resistência

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Valores civilizatórios afro-brasileiros marcam construção do Bairro Maré

Edição #166 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

Henrique Silva

Segundo o Censo Maré (2019), dos quase 140 mil habitantes, 61,2% se autodeclaram pretos ou pardos. Ou seja, a Maré é negra. Das comunidades, a Nova Holanda abriga a maior população autodeclarada preta, com 2.558, 18,5 % dos moradores. 

A educadora Azoilda Trindade desenvolveu o conceito de “valores civilizatórios afro-brasileiros”, uma reflexão sobre as contribuições culturais, éticas e filosóficas das populações afrodescendentes para pensar a formação da nossa sociedade. Os valores civilizatórios afro-brasileiros são princípios e práticas culturais que foram transmitidos e preservados pelas populações afrodescendentes no Brasil, originários dos povos africanos e adaptados ao contexto brasileiro. 

Esses valores são fundamentais para a compreensão das contribuições africanas à formação da identidade nacional brasileira, especialmente no campo da cultura, espiritualidade, sociabilidade e resistência. Esses valores também foram importantes para construção do território da Maré e vamos abordar alguns deles a seguir. 

Educação, oralidade e comunidade

A relação entre educação e cultura afro-brasileira é evidenciada em uma matéria de 1984 do jornal O Globo, intitulada: Escola também ensina a ler com atabaques e tamborins. A professora Ivanise Amorim, da Escola Nova Holanda, notou que alunos considerados “especiais” não se adaptavam aos métodos tradicionais de ensino, revelando frustração com a cartilha oficial. 

A professora viu na cultura do samba, especialmente, o exemplo do bloco Mataram meu gato, fundado na mesma favela, uma oportunidade para se aproximar desses alunos. Ivanise decidiu integrar a música ao processo educativo, e essa abordagem permitiu uma expressão mais natural, reforçando a conexão emocional e espiritual dos alunos com o aprendizado. A iniciativa promoveu também a oralidade e a coletividade, por meio do compartilhamento de histórias e práticas culturais, conceito presente na mandala dos valores civilizatórios afro-brasileiros, organizados por Azoilda.

Saúde e resistência

Na edição de abril do Maré de Notícias, destacamos a história de José Carlos, ex-presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda e o primeiro presidente do conselho distrital da CAP 3.1, nos anos 1990. Em entrevista ao jornal O Povo, em novembro de 1999, ele discutiu as atividades planejadas para o 20 de Novembro daquele ano. 

O ativista exemplificou os valores civilizatórios afro-brasileiros de resiliência e resistência ao organizar um evento no Dia da Consciência Negra na quadra da escola de samba Gato de Bonsucesso. José Carlos enfatizou a participação de grupos de música afro-brasileira e levantou a questão da saúde da população negra, mencionando as necessidades específicas dessa comunidade. Sua iniciativa não apenas promoveu a cultura afro-brasileira, mas também integrou os temas cultura e saúde enfatizando a luta por melhores condições de vida.

Corporeidade LGBTQIA+

A corporeidade da pessoa negra é representada de diversas maneiras, destacando a relevância da história do Conjunto de Favelas da Maré e do bairro Maré. Neste contexto, a população LGBTQIA+ se revela como parte fundamental da identidade favelada, e a intersecção com a raça confere ao povo negro um papel significativo na construção do território.

Os shows Noite das Estrelas, promovidos pela comunidade LGBTQIA+, sobretudo,por pessoas transexuais nos anos de 1980 e 1990, são exemplos notáveis de materialização dos valores afro-civilizatórios de resistência, corporalidade e axé. Os eventos eram integrados aos movimentos culturais populares do território, como bailes funks e festas juninas, principalmente nas favelas Nova Holanda e Rubens Vaz.  

Com o tempo, esses eventos ganharam espaço próprio e se expandiram por todo o território da Maré, e além. Graças a um trabalho de pesquisa realizado pelo coletivo Entidade Maré, em 2020, foi possível nos debruçarmos sobre essas histórias. 

Ancestralidade e tempo circular

A ancestralidade é um elemento fundamental na construção da identidade coletiva e pessoal na cultura afro-brasileira, a valorização e o respeito pelos ancestrais são centrais. A ancestralidade estabelece uma conexão com a história, com a origem e valores transmitidos pelos antepassados, influenciando a forma como se vive e se entende o presente.

A narrativa do Entidade Maré destaca como as vivências e lutas de corpos LGBTQIA+ negros no conjunto de favelas, ao longo das décadas, fazem parte de uma linhagem ancestral que transcende laços sanguíneos, sendo transmitida por meio da memória, da arte e da resistência. 

As histórias de figuras como, Derley, que era pai de santo, e outros artistas e lideranças LGBTQIA+ ,conectam-se com as gerações atuais como Dominyck Marcelina e as irmãs Lino. O trabalho honra e expande o legado, reforçando a continuidade e fazendo do tempo, não uma linha contínua, mas um círculo que abraça diferentes gerações. 

Vale ressaltar que, durante o processo de pesquisa para a construção do acervo de matérias jornalísticas sobre o Conjunto de Favelas da Maré, não foi encontrado nenhum registro nos jornais dos anos 1980 e 1990, referente aos shows da Noite das Estrelas

Esse fato reforça o preconceito histórico contra a população trans, preta e favelada, mas também sublinha o papel da memória comunitária. O esforço do coletivo Entidade Maré em resgatar e evidenciar essas histórias é um exemplo importante da resistência e preservação dessa memória.

Avançar em coletivo

Em uma entrevista realizada nos anos 1980 pela associação de moradores da Nova Holanda, durante a luta dos moradores do Duplex (Tijolinho) por novas moradias de alvenaria, Maria Poubel, figura histórica das lutas da Maré, descreveu como a comunidade se uniu para exigir melhores condições de vida.  No trecho transcrito do vídeo do projeto Coopman, dona Maria, conta como foi esse dia:

“Ah, essa luta nossa foi muito demorada, mas valeu a pena a gente lutar por ela, porque nós fomos na Caixa Econômica, e saímos daqui com as crianças. A comunidade, um bocado da comunidade. Teve gente que não tinha nem dinheiro. Porque nós ficamos lá o dia todo, não tinha dinheiro. A gente com fome, às crianças com fome e, o que tinha a mais, comprava um pão e dava pra outra criança que não tinha e pra mãe, que não tinha levado nada pra criança comer. E assim foi uma luta incrível. A gente ainda não conseguiu tudo não, mas ainda vamos conseguir muito mais”.
A ação destaca o valor civilizatório afro-brasileiro da coletividade, evidenciado na solidariedade e na ajuda mútua entre os membros da comunidade. A vida comunitária, a solidariedade e o compartilhamento são valorizados, refletindo uma visão de mundo que prioriza o coletivo em detrimento do individualismo. Ao mesmo tempo, a luta persistente por moradia digna reflete os valores de resiliência e resistência, com a comunidade permanecendo firme diante das adversidades e nutrindo a esperança de conquistar mais no futuro.

Terminamos por aqui esta série de reportagens que celebra as memórias da construção do bairro Maré. Em janeiro deste ano, o Conjunto de Favelas completou 30 anos e, ao longo dos últimos meses, foram abordados temas centrais como a construção do território. Encerrar essa série com foco na racialidade do conjunto, só comprova a espiritualidade, mas também o marco civilizatório afro-brasileiro como uma dimensão integradora da vida.

Por que a ADPF DAS favelas não pode acabar

Por De Olho na Maré

A ADPF 635, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), é um importante instrumento jurídico para garantir os direitos previstos na Constituição e tem como principal objetivo a redução da letalidade policial. Por essa razão, ficou conhecida como ADPF das Favelas, porque incide exatamente nos territórios mais vulneráveis que são os mais impactados pelas operações policiais, que deveriam ser exceção, mas viraram rotina.

Além de ter sido construída com participação popular e da sociedade civil organizada, ela trouxe resultados práticos na direção da redução da violência policial e, o mais importante, criou parâmetros para que a atuação do Estado na área da segurança pública seja fiscalizada. Mas para a consolidação dessas mudanças tão fundamentais para garantir o direito à segurança pública é necessário que a ADPF continue a valer e seja cada vez mais aprimorada. É nesse contexto que se dá a importância do julgamento desse tema, que teve sua primeira sessão no dia 13 de novembro.

Além de ter sido construída com participação popular e da sociedade civil organizada, ela trouxe resultados práticos na direção da redução da violência policial e, o mais importante, criou parâmetros para que a atuação do Estado na área da segurança pública seja fiscalizada. No Rio de Janeiro, de 2019 a 2023, houve redução de 52% no número de mortos em decorrência da ação das polícias. 

Mas para a consolidação dessas mudanças tão fundamentais para garantir o direito à segurança pública é necessário que a ADPF continue a valer e seja cada vez mais aprimorada. É nesse contexto que se dá a importância do julgamento desse tema, que teve sua primeira sessão no dia 13 de novembro.

 De 2017 a 2023, o contexto político e acontecimentos pontuais influenciaram as estatísticas e comportamentos das operações policiais. Na tabela abaixo, há alguns desses marcos e hipóteses para essas variações ao longo dos anos. 

AnoVariação do Número de Operações PoliciaisContexto Político e Fatores Relevantes
2017Subiu 41%Olimpíadas e GLO (garantia da lei e da ordem) no governo Luiz Fernando Pezão
2018Caiu 61%Ação Civil Pública (ACP) – Maré
2019Subiu 143%Cenário Político: agenda eleitoral do Governo Wilson Witzel
2020Caiu 64%Pandemia / ADPF das Favelas
2021Subiu 25%Flexibilização das medidas da ADPF 635
2022Subiu 35%Ano Eleitoral: campanha de Cláudio Castro, baseada na segurança pública
2023Subiu 143%Continuidade do paradigma no governo estadual

Esses dados demonstram como diferentes eventos e contextos podem ter impactos variados nas operações policiais na Maré. Por exemplo, a queda significativa em 2018 e 2020 podem estar relacionadas às ações judiciais no campo da segurança pública. A primeira,  a Ação Civil Pública (ACP) da Maré que aconteceu no Tribunal de Justiça do Rio, primeira ação judicial coletiva que versa sobre segurança pública em uma favela brasileira.  Inspirada na ACP da Maré, acreditamos que a ADPF das Favelas e suas restrições no período da COVID-19 impacta na redução dos números em 2020 . 

A análise dos dados revela uma particularidade marcante em 2023: apesar do aumento no número de operações policiais na Maré em relação ao ano anterior, houve uma redução drástica na letalidade dessas operações, como mostramos no texto publicado na semana passada. Esse fenômeno contraditório sugere uma mudança, ainda que mínima, na abordagem da segurança pública na região, indicando uma possível priorização de estratégias do uso progressivo da força.

Essa dinâmica pode estar relacionada à busca da sociedade civil pela abertura de espaços de escuta e trocas sobre como se dá a atuação do Estado na favela.

Por que a ADPF 635 ainda é essencial para a segurança das favelas

A ADPF das Favelas permanece fundamental para a segurança das favelas do Rio de Janeiro e de outras regiões urbanas do Brasil onde a violência policial é a característica principal das intervenções policiais. No contexto de uma democracia ainda jovem e marcada por uma herança autoritária, o Brasil enfrenta o desafio de alinhar as normas legais que regem a atuação policial com práticas profundamente enraizadas de uso excessivo da força por parte do Estado. A ADPF das Favelas busca justamente conter esse tipo de abuso, ao promover maior fiscalização sobre as operações policiais e estabelecer limites para o uso da violência estatal, especialmente nas favelas, onde o impacto é devastador e os direitos humanos, frequentemente, negligenciados.

Além de estabelecer esses limites, a ADPF das Favelas exige a implementação de planos de redução da letalidade policial e o fortalecimento de mecanismos de controle externo das forças de segurança. Essa medida é um marco na tentativa de transformação do modelo de segurança pública, que, historicamente, utiliza operações policiais agressivas como principal estratégia de combate à criminalidade. Essas operações não apenas falham em resolver problemas estruturais de segurança, mas também reforçam o ciclo de violência e insegurança, colocando em risco a vida de milhares de pessoas que vivem em áreas de maior vulnerabilidade.

A ADPF 635 conseguiu diminuir os índices altos de letalidade policial no Rio de Janeiro e na Maré desde 2019, embora o número de operações na Maré tenha crescido muito nos últimos dois anos. Entretanto, ainda há um longo caminho para que ela seja implementada de forma plena, não apenas como diretriz legal, mas também na prática cotidiana das forças de segurança. A mudança de paradigma dentro das polícias se faz necessária para que o respeito aos direitos humanos e a proteção das vidas dos moradores de favelas se tornem prioridade. Contudo, ainda enfrenta barreiras significativas. Por essa razão, essa jornada de transformação não pode ser interrompida agora. A continuidade da ADPF 635 é essencial para impulsionar reformas estruturais no sistema de segurança pública e para reafirmar o compromisso com um modelo que valorize a dignidade e os direitos de todos e todas cidadãos desse país, independente de sua cor e local de moradia.

Iniciativa Negra realiza primeira formação sobre racismo e drogas na Redes da Maré 

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“Não existe recorte racial porque a raça está no centro”

A frase é de Dudu Ribeiro, co-fundador da Iniciativa Negra, organização que promoveu uma formação sobre Justiça Racial e Políticas sobre Drogas, na quinta-feira (14). Os próximos encontros acontecerão até 2025 (presenciais e on-line) e fazem parte do projeto Caminhos Normais/Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (SENAD), do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

O objetivo dos encontros é fomentar o diálogo sobre como o racismo impacta diretamente na criação de políticas públicas e na perpetuação da guerra às drogas. A realização é do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, e do Eixo de Direito à Saúde em parceria com a Iniciativa Negra.

Sobre o primeiro encontro

Dudu Ribeiro e Nathália Oliveira, co-fundadores e diretores executivos da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas que, desde 2015, atua no campo dos Direitos Humanos e na Políticas sobre Drogas.

Durante a manhã, os tecedores da Redes da Maré, outras organizações convidadas e parceiros do Espaço Normal foram recebidos com um café da manhã na Areninha Cultural Herbert Vianna. A Casa Preta da Maré, também um dos equipamentos da Redes, foi o local escolhido para a segunda parte do bate-papo.

Os temas discutidos foram: os impactos da guerra às drogas na vida dos moradores de favela e periferia; a história da criminalização das drogas no Brasil e no mundo; racismo estrutural e desigualdade social no Brasil.

“A formação com a Iniciativa Negra nos traz muitas reflexões sobre a relação entre política de drogas e racismo, principalmente por trazer essa discussão para dentro de um território favelado. Nós, enquanto moradores da Maré, precisamos pensar e nos colocarmos enquanto atores principais que sofrem diversas violações de direitos por conta da guerra às drogas. Acredito que, quanto mais a gente falar e dialogar sobre esse assunto, mais a gente vai se empoderar e defender os nossos direitos”, explica Vanda Canuto, coordenadora do Espaço Normal, equipamento do Eixo de Direito à Saúde.

Escutar o povo negro é fortalecer a democracia 

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Ministra Anielle Franco

Edição #166 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

É uma honra escrever no para o jornal Maré de Notícias, esse espaço de democracia, resiliência e potência transformadora. Mais ainda em novembro, mês da Consciência Negra, em homenagem ao grande líder negro Zumbi do Palmares e Dandara, vozes que seguem ecoando para garantir a todas as pessoas o direito de buscar o próprio sonho. 

Ninguém avança sem valorizar o chão que pisa, é assim que caminho e resisto. Essa é minha linguagem, meu método de fazer política. É preciso falar sobre o poder. Ele tem muitas camadas, artimanhas e armadilhas, mas é essencial ocuparmos todos os espaços para avançar na transformação social pela qual nos empenhamos em conquistar. 

A representatividade irradia transformação, teoria e prática num único movimento. São muitas as reflexões sobre a sabedoria ancestral de usar o poder em favor da luta por justiça social e por cidadania para as pessoas pretas do nosso país. A autoridade a mim conferida como Ministra de Estado da Igualdade Racial, a visibilidade e a audiência ao meu discurso como representante do estado, revestem de holofote tudo o que eu sempre disse antes de chegar aqui. 

Estar no poder – com poder – viabiliza que eu fale sobre as meninas faveladas como a que fui; que reforce os direitos da população migrante, como as que conheci tão de perto no meu trabalho como tradutora daquelas pessoas sofridas nos EUA; que traga ao centro dos debates a realidade da vida cotidiana das pessoas negras, especialmente das mulheres e famílias matriarcais. 

Que denuncie o racismo como uma urgência a ser enfrentada coletivamente, mirando a perspectiva positiva da igualdade e da dignidade, que só será viável a partir de políticas públicas consistentes e duradouras. O poder faz reverberar, situação oposta à invisibilidade que o povo negro vivencia, com a negação do acesso ao direito básico da escuta atenta, da narrativa de suas próprias vidas. 

Há 15 anos eu era moradora da favela da Maré, com muito orgulho. Não havia caminhos para tratar dos direitos violados, não existia escuta para fora. Minha irmã lutou para ser vereadora justamente para dar voz a todas nós, mulheres pretas, muitas vezes cidadãs sem cidadania. Foi preciso chegar neste espaço, que muitos consideram o topo, para poder trazer o que sempre trouxe como pessoa que está na base. 

É como ministra Anielle Franco que me dirijo ao povo negro do Conjunto de Favels da Maré e do Brasil como absolutamente uma igual. Fortalecer a democracia é fortalecer todo e qualquer espaço político. Nós fazemos política a partir do momento em que estamos vivas. Pessoas negras, quando vestem turbantes, usam guias e fios religiosos ou saem com suas vestimentas, quando se expressam com o próprio jeito de falar, de agir, de sorrir, elas fazem política. 

Da mesma forma, política se faz na ação de luta, negociação, planejamento e construção da mudança, nas universidades, dentro das favelas, nas penitenciárias, na quadra de vôlei, no mercado, nas bancas científicas, ao sair de casa para o mundo. Essas lutas cotidianas precisam ser visibilizadas e reconhecidas como relevantes para o desenvolvimento do país. Não é apenas num ministério ou no parlamento que se faz política. 

A representatividade opera este poderoso estado de mudança, simbólico, que ressignifica as referências, a autoestima, a postura frente ao mundo. Altera a voz de quem fala e a atenção de quem ouve. Por isso, é tão importante termos mais pessoas negras na tomada de decisão das empresas públicas, privadas, parlamentos. 

Nestes 20 meses de ministério, vivemos desafios e muitas conquistas, sempre abrindo diálogo com a população, com os movimentos. Conseguimos atingir o maior número de titulação de terras quilombolas numa gestão. Trabalhando junto com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), fizemos 65 titulações no Brasil, em menos de dois anos. 

Lançamos a primeira política para povos ciganos do Brasil, a segunda no mundo. Aprovamos a renovação da Lei de Cotas na universidades, estamos trabalhando para aprovar o aprimoramento das lei de cotas no serviço público, lançamos o Plano Juventude Negra Viva, vamos lançar o Plano de Comunicação Antirracista, fizemos incidência por emprego e renda para pessoas negras, avançamos Pacto de Equidade nas Empresas Estatais, atuamos por candidaturas femininas e negras, no enfrentamento à violência política e ao assédio na administração pública. 

Temos um sonho muito poderoso para o Brasil e sabemos que este governo sonha conosco ao recriar o ministério e trazer a agenda da equidade étinico-racial para o centro do debate público. E ainda que o desafio seja gigantesco, ouso dizer que sabemos como fazer o extraordinário: olhar para a trivial realidade da vida. Ouvir o que pensa nossa população nos permite buscar conjuntamente um futuro melhor para todas as pessoas, que garanta não o básico, mas a plenitude. Escutar o povo negro é fortalecer a democracia.

Redução da escala 6×1: um impacto social urgente nas Favelas

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*Flavinha Cândido

O debate sobre a escala 6×1 ganhou força nas redes sociais nas últimas semanas, impulsionado pela apresentação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que propõe a eliminação desse regime de trabalho. A proposta sugere a adoção de uma jornada de 36 horas semanais, divididas em quatro dias, o que seria uma mudança significativa em relação ao modelo atual, que prevê seis dias de trabalho consecutivos para apenas um dia de folga. A PEC já conta com 134 assinaturas e tem gerado discussões importantes sobre os direitos dos trabalhadores, especialmente aqueles que vivem em favelas e periferias.

A escala 6×1 é um modelo de jornada de trabalho regulamentado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que permite ao empregado trabalhar seis dias seguidos e descansar apenas um. Na prática, a jornada diária é de 7h20, totalizando 44 horas semanais. Este regime é comum em setores como comércio, hotelaria, bares e restaurantes, que demandam funcionamento contínuo e atendimento ao público todos os dias da semana. No entanto, para trabalhadores que residem em favelas, esse modelo representa um desafio ainda maior, uma vez que as condições de vida e de deslocamento impactam diretamente sua saúde e bem-estar.

De acordo com o IBGE, o Brasil tem atualmente 11.403 favelas, abrigando aproximadamente 16 milhões de pessoas. Nessas localidades, a maioria dos trabalhadores atua em setores informais ou em ocupações que frequentemente adotam a escala 6×1, como comércio e serviços gerais. Além disso, muitos desses trabalhadores enfrentam jornadas exaustivas e vivem longe de seus locais de trabalho, o que aumenta ainda mais o tempo gasto em deslocamentos diários. Para quem mora em favelas, o trajeto pode levar até três horas por dia, devido à precariedade do transporte público e à distância até o centro das cidades. Assim, o único dia de folga muitas vezes se torna insuficiente para descanso, atividades de lazer ou cuidados pessoais.

A advogada trabalhista Maria Lucia Benhame, especialista em Direito Sindical, destaca que a escala 6×1 é especialmente prejudicial para quem vive em regiões periféricas. “Os trabalhadores dessas áreas já enfrentam uma série de desafios, desde a violência urbana até a falta de infraestrutura e serviços básicos. A escala 6×1 agrava essa realidade, pois consome grande parte do tempo e da energia dessas pessoas, deixando pouco espaço para o descanso necessário e para a vida familiar,” explica Benhame. Ela ressalta ainda que o modelo atual desconsidera a realidade dos trabalhadores que vivem em contextos de vulnerabilidade, onde as dificuldades cotidianas são amplificadas.

A proposta de Erika Hilton para abolir a escala 6×1 e implementar uma jornada semanal de 36 horas é vista como um avanço na modernização das leis trabalhistas e uma medida de justiça social. Países como Islândia, Japão, França e Nova Zelândia têm experimentado jornadas de trabalho reduzidas e observaram resultados positivos, como aumento da produtividade, maior satisfação dos empregados e redução do absenteísmo. No Brasil, a adoção de uma jornada mais curta poderia beneficiar especialmente os trabalhadores das favelas, que teriam mais tempo para o descanso, para cuidar da saúde e para buscar novas oportunidades de qualificação e lazer.

Nas favelas, a questão da jornada de trabalho não é apenas uma discussão sobre carga horária, mas também sobre qualidade de vida. Muitos desses trabalhadores são mulheres negras, chefes de família, que além da jornada formal de trabalho, ainda desempenham funções de cuidado em suas casas, cuidando de filhos, parentes idosos ou doentes. A sobrecarga de trabalho, aliada à escala 6×1, contribui para o aumento de problemas de saúde física e mental, como estresse, ansiedade e fadiga crônica. A redução da jornada poderia trazer alívio significativo e permitir uma reorganização do tempo, contribuindo para um equilíbrio maior entre vida profissional e pessoal.

A discussão sobre a PEC proposta também levanta questões sobre a necessidade de adaptação das empresas e sobre os possíveis impactos econômicos. No entanto, especialistas apontam que, em longo prazo, a mudança pode ser benéfica para empregadores e empregados. Estudos mostram que trabalhadores mais descansados tendem a ser mais produtivos, menos propensos a acidentes de trabalho e menos ausentes devido a problemas de saúde. Além disso, uma jornada de trabalho mais curta pode incentivar a contratação de novos empregados, contribuindo para a redução do desemprego.

Para a população das favelas, a aprovação da PEC seria uma forma de reconhecer a desigualdade existente nas condições de trabalho e vida. A mudança na legislação trabalhista representaria um avanço na luta por direitos e dignidade, especialmente para aqueles que mais sofrem com a precariedade do trabalho. É essencial que o debate sobre a redução da jornada de trabalho inclua a realidade dos moradores de favelas, considerando suas especificidades e demandas. Afinal, garantir um dia a mais de descanso pode significar mais tempo para a família, para o autocuidado e para a luta por um futuro melhor.

A proposta de redução da escala 6×1 surge como uma esperança para milhões de trabalhadores que enfrentam uma rotina extenuante e injusta. Ao repensar o modelo de jornada de trabalho, o Brasil tem a oportunidade de avançar em direção a um país mais justo e igualitário, onde todos possam usufruir de uma vida digna, com tempo para descansar, cuidar da saúde e buscar novos horizontes. A expectativa é que o Congresso Nacional leve em conta a realidade dos trabalhadores de favelas e aprove uma medida que poderá transformar para melhor a vida de milhares de famílias brasileiras.

*Mãe, moradora da Maré. Foi assessora de Marielle Franco, ativista no Coletivo Maré 0800 e Maré de Resistência, professora de Letras e Pós-Graduada em Letramento Racial, idealizadora do Racial Favelado (Instagram) e colaboradora em projetos como Dicionário de Favelas Marielle Franco e Plano Fiofavela.